Os 100 anos da Força de Submarinos e o Prosub – parte 6
A velha questão dos torpedos
Por Alexandre Galante e Fernando “Nunão” De Martini (adaptação e atualização da matéria publicada na revista Forças de Defesa número 11, em 2014)
A principal arma dos submarinos foi, e ainda é, o torpedo. Não é de se estranhar que, além da preocupação em construir as embarcações, a Marinha perseguisse também a fabricação de seus armamentos. No caso dos torpedos, a primeira iniciativa deu-se no início da década de 1940, quando a eclosão da Segunda Guerra Mundial tornou difícil (senão impossível) o fornecimento de mais torpedos para os nossos submarinos. Além disso, essas armas eram o principal meio ofensivo dos contratorpedeiros da época, dos quais nove estavam em construção no AMIC/AMRJ. Era preciso armá-los também.
Estabeleceu-se na Ponta da Armação uma Fábrica de Torpedos (assim como uma de artilharia fora estabelecida no Arsenal, para os canhões dos navios), a partir da criação da Comissão de Estudos de Torpedos, em 12 de dezembro de 1940. Componentes de exemplares em serviço foram estudados, outros fabricados a partir de planos que vieram para manutenção dos que equipariam seis contratorpedeiros ingleses encomendados (que, como vimos, não foram entregues e substituídos por mesma quantidade construída no Arsenal) e, em 1943, foi posta a funcionar uma máquina propulsora brasileira.
Quando o almirante Jonas Ingram, comandante da Quarta Esquadra dos Estados Unidos (sob a qual atuavam os navios brasileiras) visitou as instalações e viu a máquina, prometeu enviar planos de um torpedo norte-americano. Ele cumpriu a promessa, mas só no pós-guerra tudo estava pronto para fabricar os torpedos MkXV mod III de 21 polegadas, os mais modernos então disponíveis nos EUA.
Ao longo dos anos 1950, foram produzidas 20 unidades para emprego pelos contratorpedeiros e iniciou-se a adaptação para uso nos submarinos, mas essa iniciativa foi desestimulada pela bem mais fácil obtenção de armas e equipamentos diretamente dos Estados Unidos, conforme o Acordo de Assistência de 1952. A partir daí, foram décadas em que apenas se adquiriu torpedos no exterior.
A partir da incorporação dos submarinos classe “Oberon”, como vimos, a Marinha adquiriu e passou a operar o torpedo britânico GEC-Marconi Mk.24 Tigerfish guiado a fio, que também foi integrado aos submarinos da classe “Tupi”. Embora tenha sofrido diversos problemas na Marinha Real britânica (Royal Navy), o Tigerfish aparentemente se saiu bem na Marinha do Brasil, com diversos lançamentos de teste bem sucedidos.
Já à época da construção do submarino Tikuna, a Marinha buscava um novo torpedo, selecionando o sueco Saab Bofors Torpedo 2000 e assinando um contrato inicial em 1999, que incluía transferência de tecnologia para fabricação local. Porém, diversas dificuldades levaram o contrato a ser cancelado em setembro de 2004.
Com isso, o Governo do Brasil solicitou em 2006 aos Estados Unidos a venda de 30 torpedos Mk.48 Mod 6 AT (Advanced Technology). O Congresso dos EUA aprovou o negócio na modalidade de vendas militares ao exterior (Foreign Military Sales – FMS), assim como os equipamentos associados e serviços. Com o programa Prosub, de construção de submarinos classe “Scorpene” (assunto tratado logo à frente), o torpedo francês F21 passará a fazer parte do acervo da Marinha, embora para disparo exclusivamente pelos novos submarinos (enquanto o Mk.48 americano será empregado pelos submarinos atuais das classes “Tupi” e “Tikuna”). Recentemente, foram iniciados estudos e análises dos componentes e sistemas de torpedos desativados em estoque (tal como foi o caso na década de 1940) para se retomar a iniciativa de um torpedo nacional.
Uma arma letal
Quanto à letalidade dos torpedos ao longo da história, deve-se ressaltar que, na Segunda Guerra Mundial, praticamente dois terços dos afundamentos de navios se deveram a torpedos, a grande maioria lançada de submarinos (lembrando que o torpedo era também largamente empregado por navios de guerra como os contratorpedeiros e lanchas torpedeiras, além das versões lançadas por aeronaves). Em destaque no conflito, estão as campanhas da Alemanha contra os mercantes aliados e dos Estados Unidos contra os mercantes japoneses. Naquela época, os torpedos não eram guiados, e o alcance máximo variava entre 5 e 10km, com os modelos japoneses se destacando no limite superior.
Porém, mesmo esses modelos que hoje se pode considerar como relativamente simples frente à tecnologia atual, eram à época artefatos caros e de sofisticada (e delicada) tecnologia. Dependiam de sistemas de estabilização com giroscópios, relativamente sofisticados para garantir sua corrida reta em alta velocidade – acima de 40 nós para os que geravam vapor pela queima de propelentes armazenados internamente (aperfeiçoamentos dos sistemas iniciais de ar comprimido de Robert Whitehead, com a desvantagem de gerar uma trilha de bolhas), e de cerca de 30 nós para os de propulsão elétrica, mais discreta. No início das campanhas submarinas da Alemanha e dos Estados Unidos, as falhas foram comuns não só nos sistemas que garantiam a corrida reta a uma dada profundidade, quanto nas relativamente mais simples espoletas de impacto.
Foram necessários amplos programas de controle de qualidade para aumentar as taxas de acerto e garantir as fases de grande sucesso nas campanhas submarinas alemã e americana. Ao longo do conflito, a Alemanha também passou a desenvolver torpedos capazes de realizar manobras pré-programadas para aumentar suas chances de atingir navios mercantes em formação, além de versões guiadas pelo ruído e pelo campo magnético gerados pelos navios. Mas foi no pós-guerra que ocorreu a grande evolução na guiagem, tanto dos torpedos pesados empregados pelos submarinos quanto pelos leves, utilizados nos meios antissubmarino. Os modernos torpedos pesados são filoguiados (guiados por fio), permitindo a atualização da trajetória da arma a partir do submarino lançador, antes do torpedo entrar na fase terminal para o alvo.
Integração: eis a questão
A sofisticação cada vez maior dos torpedos e dos sistemas de direção de tiro dos submarinos têm causado muitos problemas de integração torpedo/submarino em algumas marinhas, principalmente naquelas que precisam importar seus torpedos de outros países.
Na Guerra das Malvinas (1982), o submarino nuclear britânico HMS Conqueror pôs a pique o cruzador argentino ARA General Belgrano usando antigos torpedos Mk.8 de corrida reta, mesmo dispondo de modernos torpedos Tigerfish Mk.24 guiados a fio a bordo. O comandante do Conqueror preferiu usar os velhos Mk.8 por causa da baixa confiabilidade que o Tigerfish gozava nos testes de avaliação operacional naquela época. Uma provável falha dos torpedos em tiro real poderia colocar em risco o sucesso da missão e até a sobrevivência do submarino.
Enquanto isso, no lado argentino, o submarino ARA San Luis, tipo IKL209, lançou modernos torpedos guiados a fio SST-4 de fabricação alemã contra navios ingleses, sem conseguir acertar nenhum alvo.
FAINA DE CARREGAMENTO DE UM TORPEDO TIGERFISH MK.24 NO SUBMARINO TAPAJÓ
Segundo entrevista do oficial que comandava o submarino argentino no conflito, capitão de fragata Azcueta, o primeiro ataque do San Luis ocorreu em 1º de maio de 1982, contra navios que estavam emitindo com sonar no momento do ataque. Três minutos após o lançamento, foi obtido o sinal de que o fio de controle do torpedo se partira. Um segundo ataque foi feito em 10 de maio contra dois navios ao norte do estreito das Falklands. O torpedo SST-4 foi lançado a apenas 4.500m do alvo e, mais uma vez, o fio partiu-se.
A Armada Argentina solicitou a análise pelas duas companhias alemãs, HDW, projetista do submarino e AEG-Telefunken, fabricante dos torpedos, para explicar porque um de seus submarinos tivera desempenho insatisfatório durante o conflito. Segundo um engenheiro da HDW, os argentinos estavam perplexos porque todos os torpedos disparados pelo San Luis, vários deles a curta distância e em condições ideais de ataque, não acertaram os alvos.
Quando esses engenheiros examinaram o San Luis, encontraram duas principais deficiências, que qualquer submarinista experiente perceberia. A primeira foi um desalinhamento de síncronos, que fez as informações de marcação fornecidas pelo periscópio chegarem com erro ao sistema de direção de tiro. A segunda deficiência, da equipe argentina responsável pela manutenção dos torpedos/sistema de direção de tiro, foi plugarem o cabo de alimentação dos torpedos de forma invertida, o que invertia o sentido de rotação dos giroscópios, fazendo com que eles perdessem a orientação após o lançamento.
O ARA San Luis reportou a realização de ataques contra três navios capitais, cada um deles seguido por uma manobra evasiva do submarino para avaliar a causa das corridas erráticas. Tivessem os ataques sido bem-sucedidos, a guerra poderia ter seguido outros cursos.
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