Vice-almirante dá sua versão sobre a Revolta da Chibata

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Diretor de Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha contesta artigo sobre João Cândido

Armando de Senna Bittencourt*

A Revista de História da Biblioteca Nacional publicou, em seu número de maio de 2008 (ano 3, nº. 32), um artigo, “Salve o Almirante Negro!”, com o subtítulo: “Marinha libera documentação sobre João Cândido, só falta anistiá-lo”. Devo esclarecer que durante os quatro anos e cinco meses em que exerço o cargo de Diretor do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha, nunca impedi o acesso aos documentos disponíveis no Arquivo da Marinha. Simplesmente não houve consulta sobre o assunto, em certos tipos de documentos, por pessoa devidamente autorizada pela família, como determina a lei, para preservar a privacidade.

Esse artigo também inclui diversas conclusões que, em minha opinião, não se basearam em uma análise isenta dos fatos. O motim dos marinheiros de 1910, que é mais conhecido como a “Revolta da Chibata”, foi, para a Marinha e para o País, um acontecimento deplorável. Foi um motim planejado e premeditado, que causou mortes e sofrimento a pessoas que não eram criminosas, principalmente no Encouraçado Minas Gerais – onde o líder era o Marinheiro João Candido –, que foi o único dos navios em que o líder escolhido pelos revoltosos perdeu completamente o controle da situação a bordo.

No Minas Gerais, no momento da eclosão do motim, o futuro Almirante Álvaro Alberto – que mais tarde tanto fez como cientista para o Brasil, principalmente na área de energia nuclear –, então tenente e o oficial de serviço desse navio, foi atacado por um marinheiro armado, covardemente pelas costas, e bastante ferido. O Comandante do navio foi massacrado e seu corpo, em seguida, desrespeitado, inclusive tendo um dos marinheiros urinado sobre o cadáver. Os revoltosos mataram, também, alguns de seus companheiros, marinheiros e sargento; fato em geral omitido por muitos. Alguns deles apenas queriam fugir da barbárie que se instalara a bordo do Minas Gerais, em uma embarcação.

Nos relatos favoráveis à Revolta ocorrem, em geral, graves distorções dos fatos, ofensivas às vítimas e suas famílias, como a de dar a impressão de que se tratou de uma reação imediata, justa e apaixonada. No caso, à aplicação da pena de chibata a um marinheiro que havia ferido com navalhadas um companheiro que, anteriormente, quando estava de serviço, o havia apanhado trazendo bebida alcoólica para bordo do Minas Gerais. A Marinha, lamentavelmente, havia se acomodado a esse tipo ultrapassado de punição, quando deveria ter processado, por crime militar, e possivelmente expulsado esse marinheiro. A revolta foi premeditada e aguardava uma oportunidade favorável para eclodir.

O âmago do problema foi o não acompanhamento do progresso tecnológico e social das décadas finais do século XIX e inicial do século XX, pela Marinha. As pessoas, em sua maioria, não estavam preparadas para as mudanças que ocorreram nesse período. De navios mistos com propulsão a vela e a vapor, em que se navegava principalmente ao sabor do vento, passara-se para navios de guerra semelhantes aos do início da Segunda Guerra Mundial, os encouraçados do tipo “Dreadnought”. Esses navios precisavam de muitos técnicos a bordo: telegrafistas, eletricistas, mecânicos, entre outros. O perfil desses novos marinheiros deveria ser muito diferente do das pessoas que o processo de recrutamento de então obtinha, que era bom para navios veleiros, em que bastava ser forte e corajoso para enfrentar as agruras da vida no mar e das manobras com as velas, no alto dos mastros, algumas vezes durante tempestades. A brutalidade do ambiente a bordo dos grandes veleiros não era adequada para esses técnicos. A chibata que era mantida, de forma equivocada, como tradição do passado, para manter a ordem nesse ambiente de brutos e até tolerada por muitos deles, que às vezes se tratavam com igual rigor, era inaceitável para os técnicos. Muitos oficiais eram contra a chibata, mas tinham seus argumentos vencidos pelos que não viam outra forma de manter a disciplina, diante do que ocorria a bordo dos navios. A Marinha custou a perceber que não podia mais aceitar recrutas com o perfil que era adequado para os tempos que haviam ficado para trás. Havia, inclusive, o habito de receber malfeitores enviados pela polícia e algumas famílias até alistavam na Marinha os filhos que julgavam incorrigíveis.

Foram os técnicos que sentiram a necessidade de rejeitar a chibata, mas, como eram novos, foram buscar líderes para o motim na “velha guarda”. A revolta foi planejada, principalmente, em reuniões que fizeram fora dos navios. Tudo indica que o principal líder foi o Marinheiro Francisco Dias Martins, do Cruzador Bahia. Foi o Bahia que içou primeiro o sinal da revolta, na noite de 22 de novembro de 1910, dando início a ela. Foi, provavelmente, dele a autoria da carta anônima assinada como “Mão Negra”, anterior aos acontecimentos de novembro de 1910, e é possível que a carta anônima de 1949 também seja dele. Nesta carta, seu nome é exaltado como o líder e é evidente a inveja do autor com relação à fama que João Cândido obtivera da imprensa.

A importância de João Cândido na revolta se limitou aos poucos dias em que lhe coube negociar a anistia. Nesse período, a imprensa lhe imputou a liderança global da revolta. Não foi dele o sinal que deu início ao motim; ele não manteve o controle da situação a bordo durante a barbárie da noite de 22 de novembro; e, depois do regresso dos oficiais para o navio, perdeu a liderança para alguns radicais que foram chamados de “faixas preta”. Ele passou a cooperar com os oficiais, pediu para que desembarcassem “faixas preta” e solicitou permissão para atirar no quartel da Ilha das Cobras quando ele se revoltou, na segunda revolta, de dezembro. Esse segundo motim parece que nada teve a ver com o primeiro e, até hoje, desconhece-se sua motivação, além de pura desordem. Sem motivos evidentes, no entanto, as autoridades aproveitaram a segunda revolta para prender os envolvidos na primeira, apesar de anistiados, e imputar-lhes novas acusações referentes ao período posterior à anistia. O Conselho de Guerra, instalado em de 25 de junho de 1912, porém, os absolveu.

Os inquéritos abertos após a revolta de dezembro, a segunda, permitem que os historiadores tenham mais documentação disponível para suas pesquisas. Na de novembro, a primeira, devido à rápida anistia que foi concedida aos revoltosos, não houve inquéritos, o que exige pesquisar em Livros de Quarto e relatos.

O episódio da morte dos presos na prisão da Ilha das Cobras é horrível. A cela é suficientemente grande – existe ainda hoje –, mas era pessimamente ventilada. A limpeza com cal virgem, que era costume na época, provavelmente não tinha a intenção de matar os prisioneiros. João Candido foi um dos dois sobreviventes.

Não consta dos arquivos da Marinha que ele foi condenado por algum crime. Foi excluído do Serviço da Armada, “por ser inconveniente à disciplina, de acordo com o Decreto nº. 8.400 de 23 de novembro de 1910”. A perseguição que sofreu posteriormente, não obtendo permissão para exercer tarefas para as quais estava habilitado, foi, no entanto, desnecessária. Existe, no entanto, uma diferença entre reconhecer um erro e aceitar um heroísmo infundado.

* Armando de Senna Bittencourt é Vice-Almirante (EM-RM1), diretor da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha.

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Jorge

Por volta de 1982 adquiri um livro de história sobre a Guerra do Paraguai, cujo sub-título afirmava conter a verdade sobre os fatos alí acontecidos. Anos mais tarde, graças a um professor de história que apesar de formado na UNESP não sucumbiu à doutrinação marxista ali imperante, me alertou sobre a falta de critérios do autor do livro. Quem era o autor. Mais um marxista pseudo-historiador, que se deu o direito de usar de mentiras e distorções sobre quem elegem como “inimigos”, para atender aos planos comunistas de chegar ao poder (leia-se Gramsci e correlatos). Prefiro sem dúvida acreditar na… Read more »

Bosco

Muito esclarecedor o texto do Almirante Armando de Senna.

Mahan

Seria Dreadnought do inicio da I guerra mundial? Atraso na mentalidade existe…existia,mas não justificam motim. “Coincidência” é que aconteceram justamente nos recém adquiridos Encouraçados modernos da época, justamente os que tanta “discussão” provocaram com a chamada “corrida armamentista sul-americana”, tudo debaixo d´um pseudo motivo de “justiça social”. Engraçado é como “alguns”, hoje, estão torcendo os fatos e colocando-os sob uma perspectiva “racial”.Tragédia ou farsa? Será que no “cenário atual” a Marinha do Brasil correríamos algum risco com a incorporação de meios digamos…”de alta capcidade de combate”?

König

Realmente desconhecia esse lado da Moeda.
Hoje em dia essa cambada de mesquinhos ficam elvando tudo para o lado Racial realmente parece que sofrem de alguma crise de inferioridade ou algo assim so digo uma coisa qualquer coisa que uma pessoa tenha feito acima de tudo ela é um ser humano.
Saudações

José da Silva

Wr … o navio seria o Minas GeraEs … aspenas a titulo de acresdcentar o nome correto do navio

MO
(Usando o computafdor do The “Jaca Head”)

Farragut

Um post bastante apropriado se entendemos que a evolução material não pode ocorrer à revelia de mudanças na gestão de recursos humanos.
Há distorções graves na condução de nosso pessoal. As maiores parecem ser a fuga de servir em navios (exceções aos que viajam muito ao exterior) e a avaliação como MUITO BOM ou EXCELENTE do que antes era considerado medíocre e por aí vai…
Meu humilde blog (http://tinta-sobre-ferrugem.blogspot.com/) está aberto a discussões como esta.

Leonardo

“O fenômeno é mundial — ou, se quiserem, é “universal” no mundo ocidental. Diante da falência óbvia da economia socialista e da vitória inequívoca do capitalismo, o pensamento antimercado voltou-se para a afirmação de “identidades”, de sorte que se incentiva a radicalização de visões particulares de mundo, que seriam sufocadas pelo discurso de um homem universal, que seria, então, mera construção ideológica. É por isso que se debate tanto, hoje em dia, “a questão da mulher”, “a questão do negro”, “a questão dos homossexuais”, “a questão disso e daquilo”… O resumo da ópera é o seguinte: como o corte de… Read more »

McNamara

O nosso Presidente da República precisa tomar conhecimento dos dois lados da moeda, antes de falar asneiras em público. Nada melhor que isso, ao analisarmos fatos históricos.

Gunter

O Reinaldo Azevedo é o tipo de pessoa que nossa elite adora endeusar, um pseudo intelectual que tem como função, é pago para isso, atacar a esquerda e defender o PSDB.
Quem o ler com cuidado vera que seu blog é cheio de elogios a si mesmo e aos seus patrões. Só um momento de total falta de cultura e debates pode justificar a atenção que uma NULIDADE VENDIDA destas pode obter.

andre de poa

Parabens pela divulgação das informações sem o “ranço” ideológico. Creio que esta faltando isso neste Brasil. Caso parecido ocorreu aqui em Porto Alegre quando supostos descendentes de escravos reinvidicaram o primeiro assentamento quilombola urbano do Brasil (casualmente numa área valorizadissima). Pois bem, ONGS, MP e politicos “provaram” por A mais B a veracidade histórica daquela ocupação e o pessoal ganhou a propriedade da terra. Só que os antigos (antigos MESMO) falam que praticavam manobras do exército naquela área e não tinha ninguem morando por lá. O problema é que a verdade histórica sempre “apanha” das necessidades politicas e fisiologicas dos… Read more »

André

É prezado, andré de poa.
Isso ocorre aqui também no RJ, na questão que envolve a ilha da marambaia, onde funciona o CADIM – Centro de Intrução da Ilha da Marambaia, do CFN.

BVR

Muito esclarecedor o artigo do Diretor do Patrimônio Histórico da Marinha. “O âmago do problema foi o não acompanhamento do progresso tecnológico e social das décadas finais do século XIX e inicial do século XX, pela Marinha”. Ou seja, a Marinha não percebeu que a escravidão havia terminado. Que seus navios pediam uma tripulação com outro perfil, que as sanções físicas deveriam cumpridas na faina diária de bordo (boca podre)e que, praça não era bicho. É uma pena que seja preciso iniciativa de outros para que só então, e reforço o só então, a MB tomasse uma posição através do… Read more »

BVR

Errata:

“uma vez que vinha se pretendia modernizada”.

Leia-se:”uma vez que se pretendia modernizada”.

Desculpe. è a pressa.

Leonardo

Gunter, sou do tempo em que a palavra elite significava o melhor.

E PSDB não é direita. Não dá para escrever “a esquerda e o PSDB” na mesma frase, a não ser que você não saiba NADA sobre a origem da social democracia.

Temístocles

Então, sr. Jorge, nos idos de 1982 V. Sa. comprou um livro sobre a guerra do Paraguai, de um autor sem critérios! fiquei maravilhado com a quantidade de informações.Já que o sr. acredita no Almirante, respnda essa questão: quantas chibatadas levou o “Mão Negra” por ter ameaçado de morte o comandante do Bahia?

Rasrio

Se foi Candido ou não que liderou a revolta isso não interessa mais, ele representa o espirito de luta do brasileiro oprimido, negro, explorado, se foi outro marinheiro, ou cabo, representará para nós a mesma coisa. Se morreram pessoas nela isso é lamentável, porém em todas as batalhas ocorrem perdas, dos dois lados.
Quem terá coragem de dizer que foi uma luta injusta?

edson miranda

gostaria de saber quantos oficiais negros alcançaram o posto de almirante na amarinha do brasil ou se continua como antigamento sendo açoitados pala chibata deo preconceito na hora das promoções.