‘Sagres’ ruma ao Chile com doações portuguesas
Pela primeira vez, o navio-escola “Sagres” parte para uma missão solidária. E quis o destino que a comunidade portuguesa na Argentina fosse a co-autora de um dos capítulos que ainda está a ser escrito e que marcará a história do navio-orgulho nacional: a “Sagres” parte esta terça-feira do porto de Buenos Aires com cerca de uma tonelada de leite em pó, medicamentos e outras doações dos portugueses ao povo chileno, vítima recente de um dos mais ferozes terramotos.
“É uma missão solidária porque nós, marinheiros, somos muito solidários a bordo, somos muito solidários entre os navios e já agora vamos ser solidários com um povo que está a viver um momento muito triste. É uma missão nova realmente. É a primeira vez que o navio faz isso. De facto, tudo isso é possível porque temos uma comunidade portuguesa espetacular aqu, em Buenos Aires, e toda essa mobilização tocou-nos muito no navio”, explicou ao Expresso o comandante da “Sagres”, capitão-de-fragata Luís Pedro Proença Mendes.
O valor da carga não está no volume mas na representação simbólica. Foi o que a comunidade portuguesa na Argentina conseguiu juntar em poucas horas de mobilização, antes que o navio partisse. Um grão de areia perante as necessidades chilenas, de uma magnitude proporcional ao tremor de terra de 8,8 pontos que devastou o país.
Doacções facilitadas
“Começamos a colecta no domingo. A nossa comunidade mobilizou-se nas suas diversas associações e escolhemos um único produto para facilitar a colecta. As doações foram concentradas no Clube Português em Buenos Aires e levadas na segunda-feira à noite à “Sagres”. Se tivéssemos tido mais tempo, poderíamos conseguir mais. Vale o gesto de solidariedade”, descreve António Canas Antunes, conselheiro das comunidades, um dos responsáveis pela recolha de cerca de 600k kg de leite em pó.
Ernesto Felício, director da Câmara Argentina de Especialidades Medicinais e responsável pela colecta de medicamentos, concorda: “Começámos as gestões na sexta-feira, junto às empresas. O final de semana não nos ajudou. O que pudemos conseguir é simbólico, mas demonstra a nossa atitude emocional com os irmãos chilenos”. Em medicamentos, foram reunidos cerca de 300 tratamentos.
Além das doações locais, a própria “Sagres” deixará em solo chileno toda a carga que não for necessária até o próximo porto, no Peru, escala seguinte a ser visitada depois do Chile.
Guarnição vai ajudar com mão-de-obra
Para além das doações, a guarnição de 150 marinheiros da “Sagres” vai participar de actividades de reconstrução do país (escolas, desobstrução de estradas, reparações de instalações eléctricas, soldagens, etc.) enquanto permanecer no porto chileno de Valparaíso.
“Vamos disponibilizar o nosso pessoal para as necessidades chilenas. Vamos mobilizar a nossa mão-de-obra em tudo o que pudermos ajudar”, entusiasma-se o comandante do navio-escola.
Ainda no Chile, a tradição de pomposas recepções às autoridades e entidades locais – um costume dos navios-escola como embaixadas itinerantes – será substituído por uma recepção com comidas e festas para o povo chileno.
Animação à chegada ao Chile
“Primeiro aliviaremos o máximo possível as autoridades chilenas do apoio logístico que se requer nessas ocasiões como embarcar água, combustível e alimentos. Vamos tentar levar tudo feito do último porto argentino e reduzir a nossa carga no Chile. Em substituição à recepção que normalmente damos, vamos oferecer uma grande recepção à população que visitarmos, pondo à disposição um grande banquete organizado por todos os navios no cais”, planeia o comandante Proença Mendes. “Vamos tentar animar as pessoas.
Levar alegria e compaixão aonde há a dor”, sintetiza.
Essa intenção de animar o povo já começou. De forma simbólica, a “Sagres” parte de Buenos Aires nas próximas horas com cinco cadetes do navio-escola chileno “Esmeralda”, que participa na caravana que sulca o Atlântico em direcção ao Pacífico.
“A palavra que reflete isso tudo é camaradagem. Estarmos disponíveis quando alguém precisa de nós”, ensina o comandante aos seus homens.
Ideia nasceu em almoço
A ideia de doações e de participação na tarefa de reconstrução no Chile partiu do chefe do Estado Maior da Marinha argentina, almirante Jorge Godoy, do embaixador português na Argentina, Joaquim Ferreira Marques, e do comandante da “Sagres”, durante um almoço na quinta-feira da semana passada, quando o navio-escola chegou a Buenos Aires.
Em questão de horas, a ideia avançou e contagiou outros nove navios-escola de países iberoamericanos. Serão agora mais de 1000 marinheiros de 10 países a ajudar o Chile e doações de todos que seguirão nos veleiros. O Governo argentino aproveitou os navios para transportar toneladas de medicamentos e alimentos.
“Trago o reconhecimento do Governo argentino aos portugueses pelo esforço de ajuda. É um orgulho para os nossos portos que a “Sagres” esteja aqui neste momento tão significativo”, disse ao Expresso o almirante argentino Jorge Godoy.
União ibero-americana
A “Sagres” está na Argentina junto com outros nove navios-escola iberoamericanos (da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Uruguai, Venezuela e Espanha). Os veleiros participaram na Regata e Encontro de Grandes Veleiros “Velas 2010”.
O navio-escola português acoplou-se aos seus pares latino-americanos como parte da terceira viagem de volta ao mundo na sua história. A frota comemora o bicentenário das primeiras revoluções de independência na região (Chile, Venezuela, Colômbia, México e Argentina, país cujo primeiro reconhecimento de independência partiu justamente de Portugal).
Emocionado, o embaixador português na Argentina, Joaquim Ferreira Marques, define o sentimento que permeia a comunidade nestas horas: “A “Sagres” é Portugal. É o que mais nos toca quando estamos no estrangeiro. Sentimo-nos em casa. É o sentimento mais profundo de ser português. É a nossa maior embaixada. É a nossa própria história”, desabafa.
Na passagem pelas cidades argentinas de Mar del Plata e Buenos Aires, os navios foram visitados por cerca de 500 mil pessoas.
Recorde de visitas da Expo’98 quase igualado
“Temos tido uma receptividade poucas vezes vista na história da “Sagres”. O nosso recorde nesta estadia em termos de visitas é o recorde dos últimos anos da “Sagres”. No sábado passado, foram 22.640 visitas num só dia. O recorde é de 25 mil durante a Expo’98, em Lisboa. Há muitos anos que não se recebia tanta gente na “Sagres”, destaca o comandante Proença Mendes.
As 22.640 visitas num só dia aconteceram em Buenos Aires, onde a Presidente chilena Michelle Bachelet estava ao lado da anfitriã argentina, Cristina Kirchner, para acompanhar a regata, quando, horas depois, o terramoto destruiu o seu país, no dia 27 de Fevereiro. Quando se soube da tragédia, a “Sagres” de imediato colocou a bandeira portuguesa a meia haste.
A grande acção solidária internacional de integração e de solidariedade mantém sintonia com os conceitos que guiam o espírito de formação dos futuros oficiais da “Sagres”.
“Normalmente, as pessoas pensam que estamos a ensinar navegação aqueles jovens futuros oficiais. Mas é muito mais do que isso. O que estamos a formar é homens. Costumo dizer que quanto pior for o tempo que apanharmos, quanto mais adversidades pelo caminho, melhores marinheiros teremos. Vamos ter melhores homens no final desta viagem”, garante, emocionado, o comandante Proença Mendes.
Portugal é destaque também entre os argentinos
Outro exemplo emocionante da comunidade portuguesa ocorreu no fim-de-semana. Num desfile entre os dez países que compõe o conjunto de veleiros, a comunidade portuguesa foi a mais numerosa, a mais animada e a mais colorida entre todas, arrancando a admiração e o reconhecimento dos argentinos e, curiosamente, superando outras tradicionalmente mais animadas como a brasileira e a uruguaia.
A música portuguesa, 200 bandeiras de Portugal e diversas minhotas vestidas a rigor misturaram-se aos homens do Sagres pelo Centro de Buenos Aires. Por algumas horas, Portugal comandou a festa com centenas de representantes.
“Foi incrível! Nunca vi isso. Nós ganhamos o desfile”, festeja o comandante.
Agenda no Fim do Mundo
O navio-escola Sagres, por sua vez, está na sua terceira viagem de volta ao mundo da história, sendo a actual a maior de todas.
Os navios partem nesta terça rumo à cidade de Ushuaia (na província argentina de Terra do Fogo), apelidada de “O Fim do Mundo” por ser a cidade mais austral do planeta, onde vão ficar entre os dias 20 e 23. Depois do desafio de cruzar o Cabo Horn, os navios partem ao Chile para um simbólico abraço fraternal a começar pelo porto de Punta Arenas no dia 27.
Nessa cidade chilena, às margens do estreito de Magalhães, o Sagres doará um busto em homenagem ao português Fernão de Magalhães, uma oferta da cidade portuguesa de Sabrosa, onde nasceu o navegador português, ícone no Fim do Mundo e o primeiro em atravessar o estreito que o homenageia.
A seguinte fase na cidade chilena na cidade de Talcahuano, devastada pelo terramoto, foi cancelada, assim como a regata do Pacífico. Não há clima para festas. Em vez desse porto que já não existe mais, os navios seguirão a Valparaíso (região central), onde a terra também tremeu. Os navios devem acrescentar mais um dia nesse maior porto chileno e somarão uma nova fase em outro porto chileno, o de Antofagasta, no Norte.
FONTE/FOTO: Expresso