Satélites Nucleares Soviéticos
O programa US-A (Radar Ocean Reconnaissance Satellites – RORSAT)
Elizabeth Koslova
Nos anos 50 a marinha da URSS passou a desenhar uma nova estratégia de enfrentamento das forças de superfície do ocidente, baseada na neutralização dos porta-aviões norte-americanos e ingleses.
A ascensão de Nikita Khrushchev ao poder em 1957 marcou o início desta mudança, que visava o rompimento com a construção de grandes meios de superfície fortemente blindados por navios mais leves, com poder de fogo ancorado em mísseis de cruzeiro de longo alcance. Outras plataformas para estes mísseis também seriam submarinos e bombardeiros com grande raio de ação.
Uma estratégia audaciosa e moderna sem dúvida, mas que tinha um complicador. Como localizar o grupo tarefa com precisão suficiente para permitir o lançamento dos mísseis? E como fazer isto de forma coordenada?
A maneira mais eficiente para determinar remotamente a posição de um navio é o radar. Porém, este tem uma séria limitação, a linha de visada entre a antena e o alvo.
Uma antena de radar no topo de um mastro, a 49 metros de altura, tem um horizonte de radar de apenas 25 km. Radares aerotransportados permitem elevar o horizonte de radar para até 400 km, o que corresponderia a voar a cerca de 36.000 pés (teto operacional de uma aeronave de patrulha típica), embora dificilmente a situação tática permita uma aeronave atuar a esta altitude.
Uma ousada solução foi imaginada pelos estrategistas soviéticos: basear no espaço um sistema de radar com capacidade global de localizar e acompanhar navios de superfície. Algo que até hoje não teve paralelo na história da exploração militar do espaço (ao lado, uma ilustração do final dos anos de 1970, mostrando um satélite US-A. As órbitas de grande inclinação faziam o satélite cruzar os oceanos basicamente no sentido norte-sul, completando uma revolução a cada 104 minutos. A área de varredura do radar era estimada em 450 km).
Os trabalhos de análise conceitual começaram em 1958, apenas um ano depois do primeiro satélite artificial orbitar a Terra. No ano de 1960, sob a supervisão do prestigiado engenheiro Vladimir Chelomei, o projeto foi aprovado pela liderança política soviética, na forma do Decreto 715-296.
O programa sofreu alguns percalços políticos típicos da era soviética. Com a queda de Nikita Khrushchev, em 1964, o programa saiu da supervisão de Chelomei (favorito de Khrushchev) e foi para o OKB-41 de Anatoli Savin. Quando o programa iniciou a fase de ensaios em vôo no final de 1965, com quatro lançamentos (Kosmos 102, 125, 198 e 209), começaram a aparecer os problemas. Basicamente os dois principais componentes dos satélites (o seu radar ativo em banda X e o reator nuclear) não estavam prontos, pois ainda não haviam sido qualificados para voo. Os primeiros lançamentos foram utilizados apenas para qualificar os sistemas de estabilização ativa da espaçonave, bem como sua telemetria, objetivos simples demais diante da complexidade do projeto.
Diante dos problemas da equipe de Savin, o programa foi transferido em 1969 para o KB Arsenal, em São Petersburgo, sob o comando de Ye Ivanov. O projeto foi revisado e o ano de 1975 foi definido como meta inicial para a operacionalização do sistema. Naquele ano, nada menos do que três satélites desta série subiram ao espaço, dando início à fase de avaliação operacional da espaçonave.
De 1975 a 1979, depois de sete lançamentos, o sistema passou a ter capacidade operacional inicial, com parte dos oceanos monitorados e uma avaliação precisa de melhoramentos a serem implementados em futuros satélites. De 1980 até 1988 foram 19 lançamentos de satélites US-A, dando à URSS a capacidade de localizar navios civis e militares em praticamente qualquer oceano da Terra. O projeto já havia atingido sua maturidade técnica e operacional.
O satélite US-A
Colocar um radar em órbita implica em uma série de compromissos de difícil conciliação. O principal deles é a potência elétrica para operação do radar.
Sistemas de conversão fotovoltaica apresentam como grande vantagem a simplicidade, mas também possuem uma potência média relativamente baixa, uma vez que cerca de metade do tempo estão sob a sombra da Terra, sem gerar energia. Este déficit de potência faz com que satélites com esse sistema, equipados com radar, os utilizem durante alguns poucos minutos dentro de um período de 24 horas.
Esguio para minimizar o arrasto em órbita baixa, com suas grandes antenas de radar e com o reator formando o cone do nariz, o US-A é um satélite cujos padrões de projeto fogem do clássico e cujas soluções de engenharia até hoje não foram implementadas em nenhum outro programa. Fosse ele americano, sua imagem seria tão conhecida pelo ocidente como a dos satélites KH-9 (Big Bird), das aeronaves U-2 ou SR-71, ícones da capacidade americana de coleta de informações.
O US-A precisava de 3kW de potência na forma contínua para operação de seu radar. Embora isto possa ser relativamente fácil de 20 anos para cá (alguns satélites modernos chegam a ter 16kW de potencia de geração fotovoltaica a bordo), com a tecnologia disponível na época eram necessários painéis solares de cerca de 60m2, gerando problemas adicionais a serem compensados.
Para maximizar o desempenho do radar, o satélite deveria operar em órbitas baixas, com cerca de 250 km de altitude. Porém, órbitas tão baixas quanto esta quanto esta maximizam o arrasto da espaçonave com a porção mais elevada da atmosfera, e a espaçonave acaba reentrando na atmosfera caso não receba empuxo extra de seu propulsor Stepanov de 16Kgf. A adoção de uma grande área de painéis solares aumentaria em muito o arrasto do satélite, fazendo com que ele necessitasse de empuxos extras a cada 10 dias, tornando o consumo de propelente ainda mais crítico.
A solução adotada pelos projetistas soviéticos era até então inédita (e permanece única até os dias de hoje). Colocar a bordo dos US-A um reator nuclear para geração de energia elétrica.
Esta solução, sob muitos aspectos, era excelente. Afinal, permitia um suprimento de energia que tornava o tempo de utilização do radar adequado às funções táticas do satélite. Gerava menos necessidade de controle de atitude em função da posição de células solares, otimizando o posicionamento da antena do satélite, tornava o satélite mais aerodinâmico (pela ausência de painéis solares) minimizando o seu gasto de combustível para posicionamento periódico orbital, entre outras vantagens.
Mas ainda havia um problema a ser resolvido: como garantir que o reator nuclear BES-5 não reentrasse com o satélite uma vez que este estava sempre em uma órbita baixa, dependendo de seus impulsores para se manter voando, e cujo período de reentrada é medido em meses enquanto o tempo de decaimento do reator é medido em séculos?
Um US-A ejeta o núcleo do reator para a sua orbita cemitério. As gotas de fluido representam o refrigerante do reator (cerca de 13,5Kg de sódio e potássio) que são mantidos em estado líquido e retiram do núcleo cerca de 100kW.h de energia térmica para ser dissipada por radiadores de calor. Essas partículas formam bolhas de até 5cm de diâmetro, que são altamente radioativas. Ao reentrar na atmosfera, este material é pulverizado por uma grande aérea, o que não eleva os níveis de radiação no ambiente além dos níveis seguros. Porém, a colisão de outros satélites com estas gotas de metal pesado, em órbita baixa, sempre foi motivo de preocupação e de polêmica entre EUA e URSS.
A solução para isto também era inédita. Basicamente, o reator, um cilindro de cerca de 350Kg, deveria ser impulsionado por um foguete até uma órbita cemitério a cerca de 1000 km de altura, onde a reentrada não aconteceria antes de pelo menos 1000 anos. Esta solução teve um custo elevado, conforme veremos mais adiante.
Além de reatores nucleares e radares ativos baseados no espaço, as espaçonaves US-A tinham outros complicadores de engenharia a serem vencidos. Um satélite a 250 km de altura apenas tem visada para uma estação controladora em terra se esta estiver a um raio de 1600 km do satélite. Isto quer dizer que, na prática, os US-A vasculhando as imensidões dos oceanos não teriam como informar em tempo real as estações soviéticas de controle sobre os alvos que eles estivessem monitorando.
A partir da década de 198, tanto os EUA como a URSS montaram redes de retransmissão via satélites geoestacionários para permitir que seus satélites militares de órbita baixa, como os de foto reconhecimento, pudessem transmitir em tempo real, independentemente da posição da sua órbita naquele instante. Os US-A, porém, eram de uma geração anterior (anteriores inclusive ao primeiro satélite geosíncrono soviético, que é de 1975) e para solucionar o problema os projetistas soviéticos utilizaram a mesma solução clássica de comunicações de longa distância até o advento dos satélites: ondas curtas!
Operando um canal de telemétrica em 19Mhz, por meio de propagação ionosférica os US-A eram rastreados desde o território soviético em qualquer posição de seu plano orbital, o que daria a tão capacidade de cobertura global objetivada pelo programa.
Um programa controvertido politicamente
Durante a fase de ensaios, no começo dos anos 70, dois incidentes foram presságios do que seria o programa nos anos seguintes.
O Cosmos 367, um satélite do programa de ensaios de voo, perdeu contato com as estações de controle, mas seu sistema automático o conduziu a uma órbita mais elevada. Este satélite ainda não continha o reator BES-5 e sim baterias químicas que forneciam eletricidade durante o vôo de teste. O acidente surtiu efeito contrário ao esperado, mostrando aos engenheiros soviéticos que seu satélite nuclear poderia ser colocado fora de serviço em segurança caso houvesse uma falha técnica com a cadeia de controle.
Cerca de três anos mais tarde, um lançamento ocorrido desde Baikonur apresentou problemas de ignição no último estágio do foguete, causando a queda do satélite no Oceano Pacífico ao norte do Japão. Aviões de reconhecimento americanos sobrevoaram a área a procura de indícios de vazamento nuclear para caracterização do reator. Fontes ocidentais informaram a detecção de pequenos níveis de radiação na área da queda. Já os soviéticos nunca reconheceram este incidente.
Estatisticamente, de cada 20 ou 25 lançamentos de satélites, um apresenta problemas. Os riscos associados à segurança do programa US-A não estavam necessariamente no lançamento e sim no sistema de ejeção do reator para a órbita cemitério, que era uma das inovações do projeto. Ao contrário do problema do Cosmos 367, que encorajou a utilização do sistema de ejeção, por algumas vezes o sistema não funcionou como deveria e provocou a reentrada do reator (com sua carga de 30Kg de urânio altamente enriquecido) juntamente com o satélite (a ilustração ao lado mostra como era a mudança de órbita de ejeção do reator. Nem sempre isto funcionou, e o resultado foi a reentrada do material radioativo juntamente com o satélite).
Em janeiro de 1978, o acidente que se julgava impossível aconteceu. O sistema de ejeção do reator falhou e o Cosmos 954 reentrou na atmosfera com seu reator acoplado. A queda ocorreu na região noroeste do Canadá, gerando contaminação em milhares de quilômetros quadrados de superfície. O governo soviético indenizou o Canadá pelas despesas de buscas e de descontaminação da área. O programa US-A passou por um grande desgaste político na arena tensa da guerra fria.
Outro acidente similar ocorreu em 1983. O Kosmos 1402 separou-se de seu reator com sucesso, mas a ignição do foguete de ejeção falhou. O satélite caiu no Oceano Índico em janeiro de 1983 e o reator caiu duas semanas depois no Atlântico Sul.
O ultimo grande susto com este programa de satélites aconteceu em 1987. O Cosmos 1900 falhou ao ejetar seu reator, mas o sistema reserva obteve êxito e o reator foi para sua órbita cemitério em segurança. Este incidente só se tornou conhecido porque a URSS vivia a sua época de abertura política, durante o governo Gorbachev. Outros incidentes deste tipo podem ter sido sepultados pela história da Guerra Fria.
As capacidades dos satélites US-A
Como todo programa soviético da Guerra Fria, fontes precisas sobre as suas reais capacidades operacionais são bastante limitadas, porém existem alguns indícios reveladores quando boas fontes são consultadas.
Segundo o documento “Key Conclusions About Present and Future Soviet Space Missions”, da Central Intelligence Agency, (junho de 1983) e o “Soviet Dependence on Space Systems”, da Central Intelligence Agency (novembro de 1975) “…o sistema de radar operando em banda X, 8,2 GHz é capaz de detectar navios de transporte ou porta-aviões, e um destróier é altamente provável de ser detectado em mar calmo. A CIA também estima que o sistema não seja capaz de detecção em mar grosso e sob forte chuva, e que a faixa varrida pelo satélite é de 450 km para Leste e Oeste quando o mesmo descreve uma órbita polar no sentido norte-sul (…)”.
Segundo a Enciclopédia Astronáutica do editor Mark Wade, “… entre 1979 e 1989 a modernização progressiva do sistema foi realizada, proporcionando maior precisão, a localização de alvos e capacidade de observação. Toda a superfície do oceano do mundo foi monitorada continuamente, um feito não alcançado por qualquer outro sistema. A eficácia do sistema foi comprovada na Guerra das Malvinas de 1982, quando o sistema monitorou as forças britânicas e era capaz de aconselhar o Estado-Maior General da Marinha Soviética do momento exato do desembarque britânico.”
Segundo o livro “Fidel, futebol e as Malvinas”, do escritor russo Sergey Brilev, os soviéticos teriam fornecido informações de inteligência aos argentinos durante a guerra das Malvinas. Ainda segundo o livro, a localização do HMS Sheffield, que possibilitou o lançamento da missão de ataque bem sucedida que resultou no seu afundamento, teria sido possível porque o satélite Cosmos 1365 teria fornecido a posição precisa do navio.
Provavelmente os soviéticos forneceram informações de inteligência aos argentinos na guerra das Malvinas, da mesma forma com que os chilenos colaboraram com ingleses. Mas teria a URSS fornecido posições precisas e em tempo real da frota inglesa para permitir ataques navais por parte da aviação argentina? Houvesse realmente este canal de informação, porque a posição real dos porta-aviões foram um mistério durante quase todo conflito?
Por que as posições e rotas de abastecimento da esquadra não foram passadas também, permitindo aos submarinos argentinos atacar nos momentos e pontos mais vulneráveis de resuprimento da esquadra inglesa no Atlântico Sul?
Estes e outros mistérios da Guerra Fria infelizmente jamais serão conhecidos em detalhes, além de versões e interpretações de fontes de domínio publico.
O fim do programa
Os anos da década de1980 marcaram o ápice da capacidade operacional dos satélites US-A. Ao todo, 19 satélites foram lançados, todos com aperfeiçoamentos em relação à primeira série do final da década de 1970. A URSS possuía um sistema sem similar no mundo para monitoramento dos oceanos.
No final da década de 1980, uma nova série de satélites deveria substituir a família US-A. Seriam os satélites da série PIRS-2 com algumas inovações importantes como:
- Aumento da potência elétrica de bordo de 3kW para 10kW com a adição de um novo reator modelo Topaz.
- Elevação da altitude orbital padrão de 250 km para 520 km, graças à maior potência elétrica disponível ao sistema de radar, reduzindo o risco de reentrada acidental do reator.
- Rastreamento por meio de satélites geoestacionários, melhorando a capacidade de fornecimento de informação em tempo real.
- Radar mais preciso e com processamento digital, permitindo maiores alcance, resolução e resistência a contra medidas.
Estes satélites faziam parte de um novo pacote soviético de sistemas militares espaciais, uma resposta ao programa “Guerra nas Estrelas”, desenvolvido pelo governo norte-americano de Ronald Reagan.
Outros sistemas soviéticos desenvolvidos na mesma época eram tidos como impressionantes e inovadores, destacando-se dois deles. O programa Naryad, destinado à destruição de satélites até a órbita geoestacionária (36.000 km), era algo sem paralelo no mundo. Comparando com o sistema norte-americano ASAT (Anti-Satellite Missile), os testes realizados com este sempre limitaram a destruição de satélites até 1.000 km (sistemas de foto reconhecimento basicamente), deixando de lado os sistemas de comunicação, navegação e alerta de lançamento de mísseis (sistemas estes que formam a base da moderna doutrina americana). Com o programa Naryad, os soviéticos poderiam “calar” os principais satélites dos EUA, reduzindo qualquer vantagem inimiga.
Alem do Naryad, havia o programa Polyus, uma estação de batalha espacial de 80 toneladas. A Polyus seria lançada em maio de 1987, em Baikonur. Gorbachev era o convidado de honra para o primeiro lançamento do foguete “Energia” e os generais soviéticos trataram de fazer uma grande exposição para mostrar ao seu governante os progressos dos projetos militares espaciais soviéticos.
A idéia do General Dimitry Zavalishin, responsável pelos programas militares espaciais naquela época, era pedir a Gorbachev a retomada dos testes ASAT orbitais para comprovação do sistema Naryad. O General Zavalishin foi didático, lembrou dos esforços americanos em sistemas militares espaciais e mostrou um plano para encobertar os testes ASAT de modo que isto não gerasse maiores protestos do ocidente.
Gorbachev foi evasivo em suas respostas, prolixo e pouco interessado nos planos de seus engenheiros espaciais para a dominação militar do espaço. Um ano depois, os programas de satélites nucleares estavam todos cancelados por ordem direta de Gorbachev.
Quais seriam os reais motivos do líder soviético para esta decisão? Os desgastes políticos causados pelos acidentes nucleares com satélites anteriores? Uma nova política para a utilização de meios nucleares após o desastre de Chernobyl? A política de aproximação com o ocidente? A crise econômica que já se fazia sentir na URSS?
Provavelmente todos estes fatores em uma escala que provavelmente jamais saberemos.
NOTA DO BLOG: o Poder Naval agradece à colaboradora Elizabeth Koslova pelo texto.
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