A história por trás de uma foto
Os Aviões T-34 da Armada da República Argentina e o Navio-Aeródromo Ligeiro ‘Minas Gerais’
Por: CC Mauro Olivé Ferreira (*)
As pessoas que visitam o Museu da Aviação Naval, localizado na Base Aérea Naval de São Pedro da Aldeia (BAeNSPA), podem observar no 2º andar um quadro que mostra a foto de um avião Beechcraft T-34C-1 Turbomentor da Armada da República Argentina (ARA) executando uma arremetida sobre o convoo do lendário Navio-Aeródromo Ligeiro (NAeL) Minas Gerais, no ano de 1997.
Nessa foto, há uma dedicatória em espanhol do então Chefe do Estado-Maior da ARA, Almirante Carlos Alberto Marrón, ao então Ministro da Marinha do Brasil, Almirante Mauro César Rodrigues Pereira, que diz: “Como testemunho da primeira operação realizada a bordo do NAeL Minas Gerais com aviões navais argentinos tripulados por pilotos navais brasileiros. Buenos Aires, 22/12/1997”.
Segue abaixo a história por trás desta singela, porém significativa lembrança.
Naquele ainda não tão distante ano de 1997, a MB enviou para a Armada da República Argentina (ARA) a terceira turma de aviadores navais que cursariam a Escuela de Aviación Naval (EAN), localizada na Base Aeronaval de Punta Índio, aproximadamente a 120 km a leste de Buenos Aires, bem na foz do Rio da Prata.
A turma era basicamente composta por dois aviadores navais já formados no ano anterior no Curso de Aperfeiçoamento em Aviação para Oficiais (CAAVO) da MB, os então 1º Tenentes Lucas Soares Fragozo e Mauro Olivé Ferreira.
Composto por dez estágios, o “Curso de Aviación em Ala Fija” tinha como aeronave de instrução o também lendário T-34C-1.
Iniciado em 30 de janeiro, o curso foi estruturado desde estágios básicos de aviação, culminando, em outubro do referido ano, com a aproximação real a Navio-Aeródromo.
A prática real viabilizou-se porque, naquele ano, o, hoje saudoso NAeL Minas Gerais se aproximou da costa da cidade argentina de Bahía Blanca, em razão da “fase argentina” da Operação UNITAS VII.
Àquela altura, outubro de 1997, o curso em Punta Índio já se aproximava de seus momentos finais e, dos 19 alunos que iniciaram o curso, somente 14 continuavam. Entre eles, os dois brasileiros.
Aproveitando-se da proximidade do referido NAeL à costa argentina, a ARA, por meio da EAN, selecionou seis oficiais alunos para serem deslocados para a Base Aeronaval de Espora, próxima à Bahia Blanca, que ao chegarem lá, deveriam executar a prática em terra de pouso em navio (PTPN), espécie de estágio preparatório para a aproximação real em alto mar.
Assim que chegamos, percebemos que não somente os alunos de Punta Índio, mas também grande parcela de toda a Aviação Naval da ARA aproveitaria para adestrar os seus pilotos em toque-e-siga no NAeL Minas Gerais.
Eram pilotos de S-2T Turbo-Tracker e caças Super-Etendard, que se preparavam em Espora para a aproximação real ao NAeL, acelerando ainda mais o já frenético movimento de aeronaves nas pistas daquela base.
Por esta razão, cabia aos pilotos da EAN aguardar todos os dias uma janela para treinamento, já que a prioridade, obviamente, era manter ou readquirir a qualificação dos aviadores navais argentinos dos Esquadrões operativos.
Assim sendo, logo na tarde do primeiro dia, iniciou-se o PTPN.
Para tanto, os 6 alunos (mais os seus 6 instrutores) foram deslocados de viatura até a cabeceira de uma das três pistas de Espora (de acordo com o vento reinante) e lá ficamos aguardando a referida janela de treinamento, entre os períodos destinados aos S-2T e Super-Etendard.
Lembro-me bem da surpresa que passei na primeira aproximação ao “convés de vôo” simulado do suposto Navio-Aeródromo, preparada em uma das cabeceiras de Espora.
Como a pista em Punta Índio era 20 metros mais estreita que a pista em Espora, havia uma falsa sensação de estarmos mais baixo do que na realidade estávamos.
A consequência foi que nos primeiros pousos levantávamos o nariz do avião para fazer o “flare” em uma altura superior à correta e, literalmente, “caíamos” de uma altura de dois a quatro metros, rendendo alguns sustos e, é claro, uma reclamação de nossos instrutores.
A partir daí, todos os dias, por volta das sete e meia da manhã, os 6 alunos executavam aproximadamente dez passes na pista que simulava o convoo do Minas Gerais, apurando a cada passe a técnica básica: ao entrar na curva base, procurava-se identificar a “bolinha” no espelho posicionado na lateral esquerda da pista.
Após isso, executava-se a aproximação final ao “convoo”, procurando manter a “bolinha” alinhada às luzes verdes do espelho (o que indicava que a rampa de aproximação estava correta), mantendo a velocidade correta (inacreditáveis 65 Knts), de olho no alinhamento da pista e no semáforo de ângulo de ataque, no painel da aeronave, para assegurar que tocaríamos na pista com a atitude correta: nem rápidos demais, nem ao contrário, próximos de um “stall”, ou seja, lentos o suficiente para perdermos sustentação naquele momento crítico, que era a aproximação à “popa” do NAeL simulado.
Sobre a velocidade, cabe aí um comentário. Para que o Mentor conseguisse manter o ângulo de ataque correto, a 65 Knts, sem estolar, só havia uma maneira: voar com a cabine aberta!
O T-34 tinha que voar com o seu Canopy todo recuado, com o piloto sentindo, efetivamente, o vento no rosto para que a atitude correta de aproximação, à velocidade tão baixa, fosse alcançada.
Chegou, então, o grande dia. Todo aquele esforço em Espora serviria para aquele momento único, quando duas esquadrilhas de três Mentor, uma de manhã e outra à tarde, fariam a aproximação real ao lendário e notável Minas Gerais.
Os seis alunos e seus respectivos instrutores foram divididos. Na esquadrilha da manhã, Fragozo e cinco colegas argentinos (dois alunos e três instrutores) e, à tarde, eu e outros cinco pilotos argentinos (também cada Mentor com um aluno e um instrutor).
O instrutor mais antigo decidiu que os brasileiros seriam os alunos das aeronaves líderes, formando os pilotos argentinos na ala de nossas aeronaves.
Ao se aproximar a minha hora de decolagem, recebi no hangar a tripulação da primeira esquadrilha. O sorriso exultante do meu colega brasileiro respondia qualquer pergunta do tipo “e aí, como foi o voo?”
Chegou a minha vez! Decolamos em ala de Espora e logo direcionamos nossa esquadrilha na direção da imensidão do Atlântico Sul.
O instrutor mais antigo (que estava na minha aeronave) determinou-me manter a fonia em espanhol (mesmo após entrar em contato com o controle de aproximação do Minas Gerais), para que todos os pilotos argentinos da minha esquadrilha pudessem entender a comunicação com o NAeL e assim cumpri.
Após poucos minutos de voo, tive uma das mais marcantes visões da minha carreira: avistei, na imensidão azul, o majestoso Grupo-Tarefa (GT) nucleado no NAel Minas Gerais.
Tive de segurar as lágrimas, pois, após nove meses de sacrifício, em um curso naturalmente desgastante, realizado longe de casa, voltava a operar com navios da Marinha do meu querido Brasil.
Mas ainda faltava fazer a minha parte e, desta forma, entrei em contato com o controle de aproximação para passar a mensagem de apresentação da nossa esquadrilha (em espanhol, como determinado).
Não deixou de ser curioso, já que o controlador se esforçava para falar em espanhol sofrível com o piloto que suspeitava ser argentino.
Como o navio sabia que na minha esquadrilha estaria vindo o outro brasileiro que, além do tenente Fragozo, estava cursando em Punta Índio, o controlador acabou perguntando: “O Tenente Olivé se encontrava a bordo de alguma das aeronaves da esquadrilha?”.
Pedi, então, permissão ao meu instrutor e me apresentei em português ao mesmo: “Afirmativo, quem está falando é o Tenente Olivé.”
O controlador passou, então, a fonia para o então Comandante do NAeL Minas Gerais, o CMG Vallin, também aviador-naval, que me deu as boas-vindas e desejou bons passes.
Rompi a formatura e me aproximei como número um do Minas Gerais e ao entrar na “perna do vento”, no través do espelho observei que na ilha do Minas Gerais, militares se espremiam para ver a aproximação da esquadrilha de T-34, também contando com um piloto brasileiro como líder.
Como o trem do Mentor não era preparado para pouso a bordo, só poderíamos executar um toque eventual no convoo.
De fato, deveríamos dar potência na aeronave quando estivéssemos próximos de tocar, seguindo os sinais do Oficial de Sinalização e Pouso (OSP) do NAeL. Porém, à medida que fui executando os passes, com o vento em meu rosto, fui cada vez mais me aproximando do convoo, quando lá pelo quinto ou sexto passe (não me lembro ao certo), acabei tocando sem querer no convoo do Minas, quase de surpresa.
Em seguida ao toque, novamente dei potência e arremeti para o passe seguinte e, no final, e aí não mais “sem querer”, repeti o toque mais duas vezes.
O trem, sem qualquer problema, deu prova da sua resistência e no décimo passe, fui para o circuito de reunião e aguardei as outras duas aeronaves que concluíam também os seus passes.
Então, reuni a esquadrilha, me despedi, em português, do NAeL Minas Gerais e, mais uma vez como aeronave líder, tomei a proa de Espora na costa argentina.
Somente dias após a minha chegada em Espora é que fiquei sabendo que a ARA daria um jantar para a MB, ocasião para qual os dois alunos brasileiros também seriam convidados.
Inicialmente não entendi bem o porquê, mas o fato era que eu não sabia que nós dois tínhamos acabado de nos tornar os primeiros aviadores navais da MB, em algumas décadas, a tocar no convoo de um Navio-Aeródromo brasileiro pilotando um avião.
Somente entendi o significado deste momento histórico, quando naquela distante noite em outubro de 1997, no jantar ofertado pela ARA à MB, foi passada ao CGT brasileiro uma foto do meu Mentor se aproximando do NAel Minas Gerais.
Durante anos, esta foto decorou um dos corredores próximos à Praça DÁrmas do NAeL e com a baixa deste, a foto foi transferida para São Pedro da Aldeia e, anos mais tarde, passou a compor o honroso acervo do Museu da Aviação Naval, como mencionado acima, passando a ser um dos poucos registros históricos daquele momento, plantando mais um pequeno passo na retomada da aviação de asa fixa pela MB.
NOTA DO EDITOR: agradecemos ao CC Olivé pelo privilégio do Poder Naval ser o primeiro meio a divulgar esta importante passagem da história recente da nossa Aviação Naval.
(*) O autor é o atual Encarregado do CAAVO, no Centro de Instrução e Adestramento Aeronaval Almirante José Maria do Amaral Oliveira (CIAAN).