Surpreendido, general Figueiredo entregou condução da crise aos civis do Itamaraty

 

RIO E BRASÍLIA – Na tarde de quinta-feira, 1 de abril de 1982, a embaixada brasileira em Buenos Aires enviou uma mensagem para o Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. O telegrama passava ao largo da crise diplomática entre a Argentina e o Reino Unido, que crescia desde março e motivara uma reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Numa dúzia de linhas, o embaixador Carlos Frederico Duarte relatou a comemoração da noite anterior pelo 18º aniversário do golpe de 1964 no Brasil. E registrou sua homenagem ao governo local com a entrega — “em cerimônia solene”— das principais insígnias do Exército e da Marinha brasileira a seis oficiais argentinos.

Quatro dos condecorados pelo embaixador foram, recentemente, condenados por sequestros de bebês recém-nascidos, filhos de presos políticos, tortura, assassinatos e roubo de propriedades dos detidos. São eles: almirante Juan Lombardo (Mérito Naval brasileiro); general de divisão Juan Ricardo Trimarco (Mérito Militar); e os coronéis Mario Davico e Ángel Gómez Pola (Medalhas do Pacificador).
O telegrama foi recebido no Itamaraty às 18h, quando os fuzileiros Diego García Quiroga e Jacinto Eliseo Batista, sob uniformes de combate e rostos pintados com graxa, repassavam mapas e fotografias de alvos considerados estratégicos para os comandos de assalto. Quiroga viajava oculto na água, em um submarino. Batista deslizava na superfície do Atlântico Sul, a bordo de uma fragata. Atrás deles vinham 40 navios, com os milhares de soldados mobilizados em todo o o país e embarcados nas bases de Puerto Belgrano e Ushuaia, no sul. A frota avançava rápido na direção de um arquipélago a 500 quilômetros do continente.

Quando terminou de jantar, por volta das 22h30m daquela quinta-feira, o embaixador brasileiro recebeu um telefonema do chanceler argentino Nicanor Costa Méndez. O diálogo beirou a trivialidade — exceto por um detalhe: Costa Méndez avisou que no dia seguinte deveria haver “alguma novidade” sobre a crise diplomática com o Reino Unido. “Provavelmente”, ele disse, “algum enfrentamento no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas”.

Duarte anotou e pediu para ser avisado “sobre a evolução”. Não sabia, mas enquanto ouvia Méndez, o presidente da Argentina, general Leopoldo Galtieri, falava ao telefone com o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, que tentou fazê-lo recuar da invasão das Malvinas — sem êxito. Não sabia, também, que ao entregar uma insígnia da Marinha brasileira ao almirante Juan José Lombardo havia condecorado o comandante do Teatro de Operações do Atlântico Sul — designado em segredo três meses antes.

O embaixador desligou o telefone e compartilhou impressões com seu principal conselheiro, o diplomata Luiz Mattoso Amado Maia. Antes de dormir, eles enviaram mais um telegrama a Brasília comentando “o tom alarmista” da imprensa em relação à crise. Até o final de suas carreiras, Duarte e Maia não perceberam que haviam sido enganados pelo governo argentino e, sobretudo, por Méndez. O chanceler esteve diretamente envolvido no plano de invasão desde a posse, em dezembro de 1981. E estimulara a Junta Militar a antecipar o “Dia D”, originalmente previsto para maio.

O embaixador foi dormir quando a Argentina entrava em uma guerra com o Reino Unido
No fim daquela noite o ministro brasileiro das Relações Exteriores, Ramiro Saraiva Guerreiro, chegou a Nova York. Vinha da China e, exausto, foi dormir. Acordou na manhã de sexta-feira, 2 de abril, com o assessor Bernardo Pericás socando a porta do quarto, para avisar que jornalistas o esperavam no saguão do hotel. “Falo no Brasil” — resmungou, imaginando que o assunto era sua viagem à China. “Não, ministro”, replicou o assessor, “eles querem falar logo com o senhor, porque a Argentina invadiu as Malvinas”.

Aos 64 anos, Guerreiro se tornara um profissional do cálculo político. Detestava surpresas, assim como não surpreendia — falava com tom monocórdio e até parecia dormir durante os próprios discursos. Somava três décadas de experiência na diplomacia com a sagacidade adquirida no trabalho de comissário de polícia na zona do Mangue, efervescente área de prostituição do Rio de Janeiro nos final dos anos 30. Agora, estava ali, apanhado “de robe de chambre” num quarto de hotel — como registrou nas memórias—, absolutamente surpreso, perplexo e incrédulo. “Isso é maluquice!” — desabafou.

Vestiu-se, desceu e improvisou: 1) Desde 1833, no Império, o Brasil apoiava a reivindicação de soberania da Argentina sobre o arquipélago; 2) Sempre apostou em uma solução do problema pacífica, mas diante da ocupação das ilhas só restava esperar que a situação não se agravasse ainda mais.

A declaração ressoava cautela, pontuava coerência histórica no apoio, continha uma crítica velada à invasão e demonstrava senso de oportunidade na crise. O presidente João Figueiredo, incomodado porque também soube pelos jornais, decidiu que seria essa a moldura política das ações do governo na crise.

Guerreiro, que tinha laços de parentesco com o segundo homem-forte do governo, Otavio Medeiros, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), concordava com Figueiredo em qualificar como “privilegiada” a relação com a Argentina. Sobravam motivos: haviam superado o impasse sobre uso hidrelétrico da Bacia do Prata, tornando viável a Usina de Itaipu, em fase final de construção. Além disso, avançavam em negociações sobre um acordo nuclear.

O confronto com o Reino Unido se tornava irreversível e a diplomacia passou a caminhar no fio da navalha: o Brasil não podia correr risco de isolamento continental, com a impressão de que apoiava o Reino Unido -— até porque não apoiava; mas, também, evitava um alinhamento incondicional com a Argentina. Havia o temor de uma conflagração geral na América do Sul, caso os britânicos atacassem as bases argentinas no continente. E, pelas informações consolidadas no Conselho de Segurança Nacional, não existia espaço para recuo dentro da Junta Militar.
Um gesto de flexibilidade do presidente, general Galtieri, poderia ser percebido como “fraqueza” — dizia uma das análises — abrindo caminho para tentativa de golpe da Marinha na Junta, “em substituição ao Exército”.

Ao chegar em Brasília, na sexta-feira 3 de abril, o chanceler Guerreiro recebeu um pedido inusitado: rascunhar o “pensamento do senhor presidente” para “informação aos ministros”, inclusive os do Exército, Marinha e Aeronáutica. Escreveu algumas recomendações. Uma delas: evitar “declarações de autoridades militares”. Figueiredo aceitou.

Era uma trapaça da História: diante de uma guerra, o último general-presidente da ditadura brasileira subordinava os seus comandantes militares à condução civil da diplomacia.

FONTE: O Globo

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