Há 70 anos, o Brasil declarava ‘Estado de Beligerância’ contra a Alemanha…
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…e entrava na Segunda Guerra Mundial, respondendo ao afundamento de navios brasileiros em nossa costa, com a Marinha despreparada e atrasada na renovação de seus meios
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Vinte e dois de agosto de 1942: o presidente Getúlio Vargas reuniu seu Ministério para um exame da situação. E essa situação era grave. Nos dias anteriores, cinco navios mercantes brasileiros e uma barcaça haviam sido afundados na costa nordestina, resultando na morte de mais de 600 pessoas. A esses ataques alemães concentrados em poucos dias (entre 15 e 19 de agosto), que mais tarde soube-se que eram obra de um único submarino, somavam-se vários outros realizados mais esporadicamente nos primeiros meses daquele ano na costa americana, e até a um metralhamento e bombardeio de um navio de bandeira brasileira ainda em março de 1941, no Mediterrâneo.
As reações populares nas ruas e cidades do Brasil, traduzidas nas notícias e editoriais de jornais, eram claras: revolta e apreensão com a guerra chegando à costa brasileira, enquanto os náufragos sobreviventes relatavam os ataques por submarino e corpos chegavam às praias da Bahia e do Sergipe. Era esse o pano de fundo para a reunião ministerial daquele 22 de agosto. E o resultado foi a declaração de “Estado de Beligerância” com a Alemanha, fazendo o Brasil entrar de vez na Segunda Guerra Mundial, o que foi ratificado pelo Decreto 10358 do dia 31 daquele mês, oficializando o “Estado de Guerra” contra a Alemanha e a Itália.
A agressão veio do mar, então qual era a resposta que a Marinha poderia dar naquele momento? É certo que as relações diplomáticas com os países do Eixo já estavam cortadas desde 28 janeiro de 1942, como resposta dos países do Continente Americano (à exceção da Argentina e do Chile) ao ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, e à declaração de guerra pela Alemanha aos Estados Unidos. E, desde então, estavam sendo feitos entendimentos com os EUA para que a Marinha do Brasil recebesse unidades capazes de proteger o tráfego marítimo, lembrando que, em acordo firmado em 1º de outubro de 1941, era disponibilizada pelos EUA uma verba de 200 milhões de dólares em material militar, com redução de 65% no valor de tabela. Tudo isso, porém, só traria resultados concretos após a entrada do Brasil na Guerra: em setembro de 1942, os dois primeiros caça-submarinos seriam recebidos, em Natal, onde já operavam unidades da Marinha dos Estados Unidos (USN). Mas o que era possível fazer ainda naqueles primeiros dias, e o que a Marinha podia contrapor às agressões por submarinos?
Um exemplo veio dois dias mais tarde, em 24 de agosto, quando foi constituído o “Grupo Patrulha do Sul” e definida a sua primeira missão: escoltar pequenas embarcações que transportavam carvão de Imbituba (Santa Catarina) para São Paulo e Rio de Janeiro, onde essa matéria-prima era transformada no indispensável gás de cozinha. E os navios de guerra que iriam escoltar esses carvoeiros eram, coincidentemente, velhos navios com caldeiras alimentadas a… carvão!
Partiu do Rio de Janeiro o velho contratorpedeiro Santa Catarina (foto acima), unindo-se em Santos aos igualmente “velhinhos surdos e cegos” (MARTINS, 1985: 48) Piauí e Rio Grande do Norte. Os três já tinham participado da DNOG (Divisão Naval de Operações de Guerra) que partiu do Brasil rumo à Europa no final da Primeira Guerra Mundial, quando já podiam ser considerados ultrapassados como contratorpedeiros (deslocavam apenas 600 toneladas numa época em que os contratorpedeiros construídos em massa pela Inglaterra e EUA já deslocavam mais de 1.000t e tinham capacidade muito superior em potência e armamento).
Aqueles três velhos contratorpedeiros eram alguns dos remanescentes de um total de dez recebidos na chamada “Esquadra de 1910”, encomendada à Inglaterra em 1906, e cujo núcleo eram os encouraçados Minas Gerais e São Paulo, assim como os cruzadores leves (“scout cruisers”, usados no apoio aos ataques dos contratorpedeiros) Bahia e Rio Grande do Sul. E, naqueles primeiros dias da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, partiam para o sul do Brasil armados com canhões de 101mm e pequenas cargas de profundidade de 40 libras, e sem quaisquer meios de localizar submarinos sob a água. Suas tripulações, ao longo do caminho, iam se cobrindo da fuligem da queima do carvão.
Vale citar um pequeno trecho das lembranças do então jovem oficial Hélio Leôncio Martins, sobre aquela missão:
“Eram uns 30 ou 40 pequenos barcos de umas 100 toneladas de carga, que navegavam sem cessar entre os centros de produção e de consumo. Na realidade, nenhum deles valia um torpedo, mas os receios eram grandes e, assim, o Comandante Araújo determinou que seguissem uma rota colada à costa, enquanto os contratorpedeiros executavam uma grega, de forma que, na pernada dirigindo-se para o litoral, fossem vistos pelos protegidos, com o que sentir-se-iam seguros, pelo menos psicologicamente.”
“Nós também não merecíamos o dispêndio de um valioso torpedo, mas esperávamos que um econômico submarinista alemão decidisse acabar-nos, e aos carvoeiros, com tiros de canhão, que poderíamos tentar responder à altura com nossa velha e cansada artilharia de 101mm.”
Em setembro, o Grupo Patrulha do Sul foi renovado com navios mais recentes: o contratorpedeiro Maranhão, de 1.000 toneladas, ex-veterano britânico da Batalha da Jutlândia adquirido na década de 1920 (uma das poucas belonaves recebidas após a aquisição da Esquadra de 1910, e visto na foto acima) e que já queimava óleo em suas caldeiras. O Maranhão estava acompanhado dos novos navios mineiros “classe C” de 600 toneladas Camocim e Cananéia, que foram adaptados para o serviço como corvetas antissubmarino, tendo as minas substituídas por bombas de profundidade – mais tarde, também receberiam sonar. A Cananéia é vista na foto abaixo.
No subtítulo desta matéria, falamos em renovação de meios. Pois era justamente o que representavam esses dois navios mineiros, de uma série de seis unidades recém-construídas pelo também recém-estabelecido Arsenal de Marinha da Ilha das Cobras (AMIC). Eles faziam parte de um Programa Naval aprovado em 1932 (e atualizado ao longo da década) e que só naquele início dos anos 40 começava a mostrar seus resultados, em importantes iniciativas de construção naval no Brasil – embora utilizando aço e equipamentos importados.
Nos dois anos anteriores à entrada do Brasil na Guerra, houve também três lançamentos bastante relevantes: três contratorpedeiros “classe M”, baseados no projeto da ainda recente classe “Mahan” norte-americana, e construídos a partir de 1937 com planos e materiais enviados pelos Estados Unidos. Mas só iriam ser incorporados em novembro de 1943, e ainda com armamento antiquado e provisório (canhões de 120mm retirados dos encouraçados da Marinha quando estes passaram por modernizações). As armas e os sensores modernos só viriam em 1944, instalados nos EUA. Na imagem acima, o Greenhalgh (M3) pronto para o lançamento, em julho de 1941 e, abaixo, os três contratorpedeiros em fase de acabamento no AMIC, tendo à frente dois de seus “avôs” da Esquadra de 1910.
Nas carreiras, estavam em construção nada menos que seis outros contratorpedeiros (a “classe A”, baseada em projeto inglês adaptado para receber maquinaria e equipamentos norte-americanos). Tivesse o Programa Naval sido iniciado um pouco antes ou cumprido com mais celeridade, talvez outros navios estivessem nas carreiras, pois aquelas obras em andamento eram justamente para substituir seis contratorpedeiros encomendados à Inglaterra e não recebidos: isso porque estavam sendo completados nos estaleiros ingleses quando a guerra eclodiu na Europa, em 1939, e foram adquiridos pela Marinha Real, conforme previsto em contrato. Vale lembrar que a Argentina foi mais rápida em encomendar e pagar navios similares, conseguindo recebê-los antes da guerra começar.
Resumo da história dessa importante iniciativa de construção naval: apesar dos grandes esforços, os seis contratorpedeiros “classe A” só ficaram prontos depois da guerra (na foto acima, o Amazonas após o lançamento em 1943, iniciando obras de acabamento que se estenderiam até 1949). Até o final do conflito, a Marinha teve que cumprir sua parte nas operações militares com os dois velhos cruzadores e contratorpedeiros remanescentes da Esquadra de 1910 (os primeiros recebendo sonar e calhas lançadoras de bombas de profundidade para escoltas de comboios, e os últimos usados para patrulha costeira).
Além desses, somavam-se os seis navios-mineiros adaptados como corvetas antissubmarino, traineiras e navios auxiliares transformados também em corvetas e, é claro, embarcações provenientes da ajuda norte-americana: nada menos do que vinte e quatro navios de escolta recebidos entre 1942 e 1945, desde pequenos mas bem armados caça-submarinos de madeira, até os mais sofisticados contratorpedeiros de escolta diesel-elétricos dedicados à guerra antissubmarino, ligeiramente menores que os contratorpedeiros que eram construídos aqui no Brasil.
Hoje está fazendo 70 anos desde que a agressão vinda do mar, resultando em afundamentos seguidos e centenas de mortos, levou o Brasil à Segunda Guerra Mundial. Depois de amanhã, serão 70 anos desde o início das escoltas do “Grupo Patrulha do Sul”, com velhos navios alimentados a carvão e cuja substituição já era necessária desde meados da década de 1920. E, ao longo dos três próximos anos, outras datas completarão 7 décadas, marcando tragédias e sucessos relacionados àquele conflito.
Datas menos conhecidas por serem simples registros de monótonas e incessantes missões de escolta aos inúmeros comboios, mas que escondem desde os tensos momentos de lançamento de bombas de profundidades a possíveis alvos no fundo do mar, até o cansaço dos intermináveis dias de patrulha, a maioria das vezes em navios menores do que o recomendável para as longas missões em alto-mar (na foto abaixo, um caça-submarino enfrentando as ondas).
Ou datas pouco divulgadas como o início da operação de novas bases navais como a de Natal, estabelecidas quase a partir do zero, contando com o recrutamento de pessoal local que em breve já apoiava a operação de navios brasileiros e aliados.
E também as datas de missões que ganharam notoriedade, como a escolta ao longo da costa, pelos três primeiros contratorpedeiros construídos no Brasil, ao Primeiro Escalão da FEB (Força Expedicionária Brasileira) que partia para a Europa. As escoltas dos escalões seguintes, cruzando o Atlântico até Gibraltar. O afundamento de um submarino alemão por um avião da FAB (Força Aérea Brasileira). As vitórias e reveses da FEB e da FAB contra os alemães, nos campos de batalha italianos.
Tudo isso irá completar 70 anos em breve, mas o que vai ficar é a reflexão, especialmente sobre uma guerra que chegou ao Brasil vinda do mar. Nossa Marinha hoje está em melhor ou pior situação para enfrentar os desafios do presente e do futuro, quando comparada àquela das vésperas da Segunda Guerra Mundial? Nosso atual reequipamento naval, longamente planejado mas iniciado há relativamente pouco tempo, será bem-sucedido? Se uma nova ameaça chegasse hoje às nossas costas, nossa Marinha teria novamente que contar com ajuda externa para cumprir suas missões?
Bibliografia e leituras recomendadas:
- BITTENCOURT, Júlio Regis (1882 – 1964). Memórias de um engenheiro naval: uma vida, uma história. Rio de Janeiro, Serviço de Documentação da Marinha, 2005.
- CÂMARA, Eduardo G. A construção naval militar brasileira no século XX. Rio de Janeiro: edição do próprio autor, 2011.
- HISTÓRIA NAVAL BRASILEIRA. Quinto volume, tomo II. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1985.
- MARTINS, Hélio Leôncio e CASTRO, Antonio Augusto Cardoso de. Estórias navais brasileiras. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1985.
- MIRANDA, Veiga. Quatorze mezes na pasta da Marinha. São Paulo: Secção de obras d´ O Estado de S. Paulo, 1923.
- MONTEIRO, Marcelo. U-507: o submarino que afundou o Brasil na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Schoba, 2012.
FOTOS via NGB
NOTA: conheça mais sobre a construção de navios de guerra no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial na Revista Forças de Defesa 5, onde essa história faz parte de um extenso artigo sobre a construção das fragatas classe “Niterói” no mesmo Arsenal, 30 anos depois (imagem abaixo). Clique aqui para adquirir o seu exemplar.