Submarino vira modelo de parceria tecnológica entre França e Brasil
No enorme e altamente protegido estaleiro da empresa francesa Direction des Constructions Navales et Services (DCNS), em Cherbourg, a “Cité de la Mer” (cidade do mar), a 360 quilômetros de Paris, a mistura de português e francês tornou-se comum.
Aqui está tomando corpo o maior contrato militar internacional do Brasil: o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), estimado em R$ 15 bilhões (€ 6,7 bilhões) – superior em R$ 4 bilhões à licitação de 36 caças militares que continua indefinida e da qual todo mundo fala.
Desta vez, os brasileiros não estão só comprando, e sim procurando fazer. Equipes de técnicos e engenheiros brasileiros se revezam por etapas no estaleiro francês, vestindo um uniforme verde com a bandeira nacional.
O contrato entre a Marinha brasileira e o consórcio Bahia de Sepetiba (formado pela francesa DCNS e a brasileira Odebrecht) implica a construção conjunta de cinco submarinos, incluindo um submarino nuclear de ataque.
Na visita da presidente Dilma Rousseff a Paris, amanhã e quarta-feira, a ênfase da parceria estratégica na inovação terá como modelo precisamente o caso dos submarinos, considerado inédito tanto para a França como para o Brasil. Com a parceria, a França ganha escala e dinamismo, e o Brasil acelera sua capacitação tecnológica.
A expectativa é que a cooperação na área de submarinos estimulará a indústria brasileira de defesa, inclusive com investimentos de grupos franceses no Brasil. Analistas notam também a importância do financiamento externo. Dos € 6,7 bilhões, cerca de € 4,3 bilhões são crédito francês em 20 anos, o que ajudou a Marinha a não ter o projeto paralisado.
Depois de EUA, França, Rússia e China, somente duas nações têm no futuro previsível condições de ingressar no clube dos submarinos nucleares: Brasil e Índia. E, entre essas potências, só a França considera o Brasil como parceiro privilegiado, com quem a cooperação não tem limites, afirma o embaixador brasileiro em Paris, José Maurício Bustani.
O ministro da Defesa francês, o socialista Jean-Yves Le Drian, tem repetido que o acordo “é exemplo de uma parceria exemplar com transferência de tecnologia nunca atingida até agora”. E propõe adotar cooperação sem restrição também para vender os caças Rafale.
Ministério da Defesa francês propõe adotar cooperação sem restrição também na venda dos caças Rafale
A França teve de superar pressões de outros parceiros para compartilhar tecnologia de alta sensibilidade. Uma fonte nota que pela primeira vez Paris passou a “linha vermelha” na área nuclear, apesar de o Brasil não ter assinado protocolo adicional do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP).
Os franceses detêm todo o leque das indústrias de soberania, como espacial, defesa, nuclear, aeronáutica e construção naval. Mas sua condição é de potência média, enfrentando cada vez mais dificuldades para garantir sozinha as economias de escala necessárias para continuar na vanguarda tecnológica e industrial.
A analista Helene Masson constata, na revista “Géoéconomie”, de Paris, que os grandes grupos industriais de defesa estão privilegiando relações de parceria e divisão de riscos financeiros e tecnológicos. A transferência de tecnologia tornou-se um critério-chave e que se impõe nas compras de equipamentos de defesa. Hoje, Índia, Brasil, Coreia do Sul e Emirados Árabes Unidos são países particularmente agressivos para obter transferência de tecnologia, segundo Masson.
Os franceses procuram mostrar que o Brasil é mais do que um grande cliente de equipamentos, e sim um parceiro estratégico para dividir o custo da inovação tecnológica. Os dois governos querem estimular joint ventures para competir juntos no mercado internacional contra rivais dos Estados Unidos e da China.
Além disso, o Brasil tem um programa bilionário, estimado em pelo menos R$ 200 bilhões, de reaparelhamento das Forças Armadas nos próximos 20 anos. Os franceses querem ser escolhidos não só na venda dos caças (FX2), como na de porta-aviões (Pronae), navios de superfície (Prosuper), vigilância e controle marítimo (Sisgaaz). Outro interesse é o programa de grande satélite geoestacionário de telecomunicações (SBG), que vai pilotar toda a banda larga e ser usado em parte da defesa brasileira.
A Marinha tem cinco submarinos (Tupi, Tamoio, Timbira, Tapajó e Tikuna), inspirados no projeto de submarino alemão tipo 209 e que precisarão ser substituídos gradualmente. Isso ocorre num cenário em que o Brasil pleiteia junto às Nações Unidas estender sua área marítima, atualmente de 3,5 milhões de km2, até os limites de sua plataforma continental. Isso significa superar as 200 milhas náuticas de sua zona econômica exclusiva. Incorporando uma área adicional de 963 mil km2, a área marítima será o equivalente à quase metade do território terrestre.
Essa gigantesca área oceânica tem enormes interesses econômicos, incluindo concentração de minerais estratégicos. Também do subsolo marítimo o Brasil retira a maior parte de seu petróleo e gás. O especialista Eduardo Italo Pesce escreveu que, “apesar de possuir a sexta economia mundial, o Brasil é a mais vulnerável entre as potências emergentes”.
Nesse cenário, o Prosub inclui a construção de quatro submarinos convencionais diesel-elétrico; a fabricação de um submarino nuclear, cabendo ao Brasil o desenvolvimento do motor a propulsão nuclear e da “ilha nuclear” do estaleiro; fornecimento de torpedos e sistemas de combate; a construção de estaleiro e de base naval em Itaguaí (RJ), com capacidade de operar submarinos convencionais e nucleares.
Significa transferência de tecnologia por décadas, na concepção, projeto, fabricação e manutenção de submarinos convencionais e nucleares.
Parte da equipe de técnicos e engenheiros brasileiros que trabalham na construção do submarino em Cherbourg
Mas os brasileiros não se enganam com a expressão “transferência de tecnologia”. “Você pode transferir equipamentos e dados técnicos, mas tecnologia é capacidade de projetar e de fazer, e isso é adquirido, não transferido”, diz Bustani. “A melhor maneira de transferir tecnologia é projetando e fazendo coisas juntos.”
O chefe das operações pelo lado brasileiro em Cherbourg, o comandante Guilherme Dionísio, que chefiou a construção do último submarino no Brasil, o Tikuna, lançado em 2005, acrescenta: “Transferência de tecnologia é absorção. É preciso ter gente com capacidade de absorver, estudar, fazer perguntas adequadas e saber processar o conhecimento. Senão, será mero espectador. Por isso, muitas vezes a transferência de tecnologia falha.”
A maioria dos brasileiros que trabalha no projeto participou antes na construção dos cinco submarinos atuais da Marinha, diz o comandante Humberto Caldas da Silveira Júnior, chefe do Prosub na França e ex-comandante do submarino Timbira.
Desde agosto de 2010, quando começou a construção do primeiro submarino, em Cherbourg, mais de 220 brasileiros receberam cursos e programas de formação na França. A cooperação e transferência de tecnologia ocorrem através dos projetos de submarinos em Lorient, sistemas de combate em Toulon, sonares em Sophia-Antipolis e torpedos em Saint-Tropez. Cerca de 80 militares e engenheiros foram formados na França e voltaram ao Brasil para treinar pessoal suplementar.
Os cursos de engenharia em Lorient já ajudaram na concepção preliminar do submarino nuclear no Brasil neste ano. Além disso, desenvolve-se o estaleiro naval em Itaguaí, que será inaugurado provavelmente em janeiro.
Cherbourg já era um porto militar importante sob Luís XVI. É hoje conhecido internacionalmente por ter sido o principal objetivo das tropas americanas no desembarque na Normandia, em 1944, no assalto contra os nazistas.
Aqui era o antigo Arsenal da Marinha francesa, que foi privatizado, mas continua com influência do capital estatal. A verificação de acesso é discreta, mas firme. Existe uma preocupação constante com espionagem industrial.
A reportagem do Valor visitou a construção do submarino acompanhado do adido naval brasileiro em Paris, comandante Jorge Machado, e do chefe do Prosub na França, comandante Silveira Júnior, ambos com ampla experiência no acompanhamento dos projetos com os franceses.
A oficina de construção parece uma enorme caixa azul no centro do estaleiro. Lá dentro, o espaço é dividido por uma cortina branca que vai até o teto fechado. De um lado, está o “Espaço Brasil da Marinha brasileira”. Do outro, a construção da próxima classe de submarinos nucleares de ataque franceses, o Barracuda. Ninguém tem direito de atravessar a linha. Os raros visitantes, então, nem pensar.
“Não faça fotos, senão vou preso”, avisa um funcionário francês. A DCNS contratou uma fotógrafa para a visita. Menos para fotografar, na verdade. Nada de foto do que já existe do submarino. A explicação é que um olho especializado vai identificar segredos. No dia seguinte, fotos com o submarino foram encontradas em site da mesma empresa.
Para os brasileiros, Cherbourg une a atividade de transferência de tecnologia e o acompanhamento e construção do submarino.
Croqui do submarino brasileiro que está sendo construído em Cherbourg, inspirado no modelo francês Scorpène
Mas aqui só será feita a primeira parte do primeiro submarino, que inclui a proa e a vela, já em fase final. A segunda parte e os outros submarinos vão ser construídos no Brasil. A expectativa é incluir cada vez mais equipamentos brasileiros de firmas que estão se capacitando, podendo criar um importante polo industrial naval em Itaguaí.
O primeiro submarino deve ser lançado em 2017, o segundo, 18 meses depois. E a grande novidade, o submarino nuclear, em 2021.
Técnicos e engenheiros brasileiros discutem animadamente em torno de gráficos e desenhos. Os documentos vêm em inglês e francês. Eles contam com a ajuda de uma tradutora francesa que morou na Bahia. Todos assinaram cláusula de confidencialidade.
Os submarinos brasileiros não serão uma cópia exata do modelo Scorpène, que a França exporta para o mundo todo. A embarcação francesa tem 60 metros e 1.700 toneladas. Já o brasileiro SBR será mais longo, com 71 metros e 1.850 toneladas, incluindo uma seção desenhada por técnicos brasileiros, que dará mais autonomia e raio de ação ao submarino.
A jovem capitão-tenente Luciana Verissimo tem uma tarefa precisa em Cherbourg: aprofundar-se no planejamento da construção de submarino. Como o espaço é muito confinado, é preciso ter clareza sobre a sequência da fabricação. Com 32 anos na Marinha, o engenheiro naval Alberto Dumont Pinto Ferreira chefia a inspeção de material comprado dos franceses.
Solda, pintura, amortecedor. Os mínimos detalhes são estudados e aperfeiçoados. Um aço especial torna a resistência mais elevada e a espessura do submarino mais leve. E isso faz a soldagem mais complicada e exige mais qualificação. Pedro, Galvão, Vagner e outros técnicos dizem que precisam aprender o método francês de construir submarino, e também garantir a rastreabilidade, para saber onde fazer no futuro um reparo de maneira correta.
Numa área cercada por cortinas, os seis tubos de torpedos estão sendo desmontados por brasileiros também como aprendizado. Em outra área, está em preparação o chassi que vai conter equipamentos e será montado sobre calços amortecedores. Isso para o submarino diminuir o nível de ruídos, no desafio de ser o mais discreto possível quando mergulhado.
Área militar restrita combina com sigilo. Mas sabe-se que, com a experiência conjunta na França, o Brasil já teria conseguido a independência no ciclo completo de produção do casco do submarino. Os técnicos também aprenderam a fabricar calotas para os tubos de torpedos, que envolvem processo artesanal, além dos próprios tubos de torpedos. No acordo com a Alemanha, o Brasil recebia os tubos de torpedos prontos.
Nos meios militares, a experiência com os franceses na área do submarino é ainda mais interessante quando se considera o drama de o país não ter seu programa espacial, com satélites, atribuído ao fato de não conseguir sequer comprar peças sensíveis por causa da desconfiança de parceiros.
Para o embaixador Bustani, a parceria de indústrias estratégicas de defesa brasileiras com companhias francesas representa “oportunidade de economizar décadas de trabalho e dezenas de bilhões de reais”, comparada a tentativas de chegar aos mesmos resultados sozinho.
A transferência de tecnologia francesa ocorre também pela aquisição de 50 helicópteros EC-725. A produção está sendo incorporada pela Helibras, filial brasileira da Eurocopter, com crescente aumento de conteúdo nacional. A fábrica de Itajubá está sendo duplicada. O objetivo é criar um segundo polo de competitividade aeronáutica e exportar helicópteros para a América do Sul.
Em Paris, a visita da presidente Dilma deve começar a examinar, mas provavelmente não decidir, novas frentes de parcerias na indústria de defesa. E outros europeus estão de olho. David Cameron, primeiro-ministro britânico, quando esteve recentemente no Brasil ofereceu tudo que era possível para atrair contratos militares para o BAE Systems, que procura reduzir sua dependência do mercado dos EUA.
Já em Paris, o anfitrião François Hollande tem sinalizado aos brasileiros que considera o Brasil o parceiro mais importante da França entre os emergentes e quer relançar a parceria estratégica sem ficar bloqueado na questão da compra dos aviões de combate.
FONTE: Valor Econômico via Revista Portos e Navios