Em busca de vida nas profundezas do Atlântico Sul
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Herton Escobar / O Estado de S. Paulo
Um seleto grupo de cientistas brasileiros e japoneses está embarcado em alto-mar neste momento com a missão de mergulhar nas regiões mais frias, remotas e até hoje inexploradas do universo marítimo brasileiro. Milhares de metros abaixo da superfície, espremidos dentro de um pequeno submarino de pesquisa, eles serão os primeiros seres humanos a contemplar a vida nas profundezas extremas do leito oceânico do Atlântico Sul.
O que vão encontrar lá, não há como prever. Pode ser um monte de rocha e areia, pode ser um monte de espécies novas. O que eles esperam encontrar são ecossistemas chamados quimiossintéticos, onde a fonte primária de energia para sustentação da vida não é a fotossíntese, como realizada pelas plantas na superfície, mas a conversão de elementos químicos que exsudam de fendas no assoalho oceânico, realizada por microrganismos especialmente adaptados às condições extremas de temperatura e pressão desses ambientes ultraprofundos.
A expedição faz parte de um grande projeto da Agência Japonesa de Ciência e Tecnologia da Terra e do Mar (Jamstec), chamado Busca pelos Limites da Vida (Quelle 2013), que vai prospectar ambientes ultraprofundos ao redor do mundo ao longo de um ano, principalmente no Hemisfério Sul, onde há uma grande carência de informações científicas sobre esses ambientes, em comparação com o Hemisfério Norte. O Brasil é um dos quatro pontos de pesquisa nesta jornada de um ano, que já passou pelo Oceano Índico Central e vai passar ainda pelo Mar do Caribe (região das Ilhas Cayman) e pelo Pacífico (região de Tonga).
“O plano é visitar ambientes extremos de águas profundas e observar a estratégia adaptativa de diferentes organismos. Com base nisso, queremos entender como a vida na Terra evolui e se diversifica, além de procurar por enzimas e outros compostos orgânicos que possam ser de interesse para os seres humanos”, disse ao Estado o cientista chefe do projeto, Hiroshi Kitazato, em entrevista por e-mail do navio oceanográfico Yokosuka, previsto para chegar ao Rio de Janeiro no dia 6 de maio, onde será aberto para visitação pública.
O navio saiu da África do Sul no início do mês (já com cientistas brasileiros embarcados), cruzou o Oceano Atlântico, e agora está sobre a região da Dorsal de São Paulo, um precipício submerso que começa a 2,5 mil metros e vai até 4,2 mil metros de profundidade, no limite extremo da plataforma continental brasileira, a cerca de 700 km da costa. Seis pesquisadores brasileiros estão à bordo, incluindo quatro biólogos, das Universidades de São Paulo (USP), Federal Fluminense (UFF) e Vale do Itajaí (Univali); e dois geólogos, do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e da Petrobrás.
Os mergulhos são feitos com o Shinkai 6500, um minissubmarino com capacidade para três pessoas (dois pilotos e um cientista) embutidas em uma esfera pressurizada de titânio com 2 metros de diâmetro, 3 janelinhas de resina transparente e paredes com 7,3 centímetros de espessura. É o submersível tripulado, ou “veículo operado por humanos” (HOV, na sigla em inglês), com maior limite de profundidade no mundo, podendo chegar a 6,5 mil metros abaixo da superfície. A montanha mais alta do Brasil, o Pico da Neblina, para se ter uma ideia, não chega a 3 mil metros de altura.
O primeiro mergulho foi feito na última terça-feira, a 4,2 mil metros de profundidade, com o biólogo brasileiro Paulo Sumida à bordo. “Foi o mergulho mais profundo e mais espetacular que já fiz”, disse Sumida ao Estado, por e-mail, pouco depois de voltar à superfície. “Tem um grande significado para mim e para a ciência oceanográfica brasileira”, completou o pesquisador, do Instituto Oceanográfico da USP. Não só isso, mas foi o mergulho mais fundo já realizado em todo o Atlântico Sul até então.
FOTO: Vista do interior do Shinkai; a esfera pressurizada de 2 metros de diâmetro, que leva três pessoas. Crédito: Jamstec
Qualquer coisa que a expedição encontrar será inédita, já que ninguém nunca mergulhou a essa profundidades nessas regiões. “São áreas que nunca foram descritas, nem do ponto de vista biológico nem geológico”, destaca a pesquisadora Vivian Pellizari, também do IO-USP, coordenadora científica do lado brasileiro. Ela vai embarcar na segunda pernada da expedição, que incluirá mergulhos de até 3 mil metros na região do Platô de São Paulo, onde fica a Bacia de Santos. Nesta etapa, também participarão pesquisadores da Universidades Federais de São Paulo (Unifesp) e do Espírito Santo (UFES), que embarcarão quando o navio atracar no Rio de Janeiro. Ao todo, nove brasileiros terão a oportunidade de fazer ao menos um mergulho com o Shinkai 6500.
O mergulho será um sonho realizado para Vivian, assim como já foi para Sumida e deverá ser para todos os outros pesquisadores brasileiros envolvidos. Microbióloga marinha, ela está interessada principalmente nos micróbios (bactérias e arqueias) que vivem nesses ambientes quimiossintéticos de alta profundidade. “Não sabemos se esses ambientes existem aqui, quais organismos fazem parte deles, como eles vivem, se são diferentes dos organismos que compõem esses ambientes em outras partes do mundo; não sabemos nada”, diz ela, empolgada.
O exemplo mais famoso desses ambientes quimiossintéticos são as fontes hidrotermais, ou “fumarolas”, em que água fervente escapa do leito marinho como se fosse uma fumaça preta, através de “chaminés” formadas pela precipitação de compostos metálicos, como ferro e manganês. Mas não é o que os pesquisadores esperam encontrar por aqui. A expectativa é encontrar uma outra versão dessas estruturas, chamadas “exsudações frias”, em que gases vazam lentamente por frestas no assoalho oceânico, sobre as quais se formam ecossistemas quimiossintéticos baseados em micróbios que se alimentam de elementos inorgânicos, como metano e enxofre.
Há várias características geológicas que sugerem que essas exsudações frias podem existir nesses locais de pesquisa, mas ninguém até hoje foi até o fundo mesmo para conferir.Caso elas sejam encontradas com o Shinkai 6500, será possível coletar amostras (de rochas, sedimentos e organismos) e trazê-las à superfície para estudos. “Tomara que se descubra muita coisa, para estimular mais pesquisas nessa área”, diz a microbióloga Cristina Nakayama, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que também está ansiosa para mergulhar na segunda pernada da expedição. Ela espera coletar algumas dessas bactérias e arqueias quimiossintéticas das profundezas para tentar cultivá-las em laboratório na superfície. “São organismos que vivem em condições muito extremas, que devem ter adaptações fisiológicas muito interessantes”, diz.
Algumas descobertas importantes já foram feitas na Dorsal de São Paulo, pela equipe que está embarcada agora, mas os detalhes só serão divulgados após uma avaliação científica mais criteriosa dos achados.
O plano original era de fazer os primeiros mergulhos da expedição na Elevação do Rio Grande, uma grande “chapada” submersa localizada a mais de mil metros da costa, já em águas internacionais, mas o mal tempo na região obrigou o navio a seguir direto para a Dorsal de São Paulo. Kitazato disse estar “rezando” para que seja possível voltar lá antes de seguir para o Rio, pois o interesse de pesquisa na região é grande. É lá que deveria ser realizado o mergulho mais profundo, a 5,2 mil metros de profundidade.
Geologia. Do ponto de vista geológico, a pesquisa na Elevação do Rio Grande tem importância não só científica como econômica e geopolítica. O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) já realizou muito estudos na região – inclusive com o objetivo de identificar os melhores pontos de mergulho para o Shinkai –, que dão informações sobre os tipos de rocha que existem na Elevação, mas os mergulhos com o Shinkai permitiriam obter evidências diretas para determinar esse perfil geológico com uma precisão muito maior.
As únicas amostras de rocha da região são obtidas por meio de dragagem. “A dragagem é importante, mas quando as amostras chegam à superfície elas estão todas misturadas; não dá para saber de que ponto exato veio o material ou qual era a configuração original das rochas”, explica Roberto Ventura, diretor de Geologia e Recursos Minerais da CPRM, que é uma das instituições parceiras da Jamstec no projeto, junto com a USP.
Apesar de a Elevação estar em águas internacionais, o Brasil está numa posição estratégica para explorar suas eventuais riquezas minerais – e precisa da informações científicas para assegurar essa vantagem. Segundo Ventura, o País pretende fazer uma solicitação ao órgão responsável da ONU (aInternational Seabed Authority) pelo direito de exploração mineral dessa formação. “França e Rússia, por exemplo, já requereram áreas no Atlântico Sul; e China e Coreia está fazendo pesquisas”, afirma Ventura. “A missão do Shinkai nos ajudará a visualizar com alta precisão algumas feições geológicas que já estamos estudando.”
Os dados biológicos são igualmente importantes, segundo Ventura, porque para fazer a solicitação de exploração mineral à ONU é preciso apresentar um detalhamento dos ecossistemas marinhos associados à região e um plano de gerenciamento dos eventuais impactos ambientais da atividade.
Abaixo, o relato do primeiro mergulho realizado pelo pesquisador Paulo Sumida, do IO-USP, cientista brasileiro com a maior experiência em submersíveis e pesquisa em águas profundas. O mergulho (quinto da sua vida, e o mais profundo até agora) chegou a 4.200 metros na Dorsal de São Paulo, o que fez de Sumida o primeiro cientista brasileiro a mergulhar com o Shinkai e o primeiro cientista no mundo a atingir essa profundidade no Atlântico Sul:
“O mergulho foi espetacular. Mergulhei numa área cuja paisagem parecia ter saído de um ambiente alien, muito remoto, sem luz e com pouquíssimo alimento. Descer 4.2 km e saber que toda essa água pesa sobre sua cabeça é incrível e nos mostra como somos pequenos (sem querer ser piegas).
O local é formado por rochas vulcânicas capeadas por crostas cobaltíferas, que também são conhecidas como crostas de Fe-Mn. Às vezes formam nódulos, que são conhecidos como nódulos polimetálicos ou nódulos de Fe-Mn. Estas áreas têm importância econômica, porém são ainda inexploradas mesmo em nível mundial. A paisagem alternava de sedimentos bem finos para áreas com rochas vulcânicas ou uma mistura de ambos.
Durante a descida, pude observar os organismos bioluminescentes entre 200 e 1000 metros de profundidade, que é chamada de mesopelágica ou twilight zone. É interessante também observar as mudanças nas massas de água, alternando na superfície de água tropical quente para massas mais frias como a Água Intermediária Antártica, a Água Profunda do Atlântico Norte e a Água Antártica de Fundo. Esta última foi a que banhou a esteve presente na parte do mergulho próxima ao fundo com cerca de 0,4˚C. Essas massas de água são importantíssimas para a distribuição de calor pelo globo e por levar O2 para as profundezas, onde não há produção primária e, por consequência, O2.
A fauna de fundo é super-diferente. As adaptações são incríveis. Pepinos-do-mar transparentes e bioluminescentes que são capazes de nadar. PEixes de aparência esquisita, sempre movimentando-se lentamente para não gastar energia nesse ambiente escasso em alimento. Nestas profundidades há muitos camarões de coloração vermelha. Isso para que eles passem despercebidos em áreas onde apenas a luz azul é capaz de chegar (mesopelágico). A fauna é escassa, mas adaptada após milhões de anos de adaptação.”
FONTE: O Estado de S. Paulo