Recursos naturais e soberania
JOSÉ GOLDEMBERG *
Foi publicado recentemente um longo depoimento de Roberto Archer, destacado líder nacionalista na década de 1960 e, posteriormente, ministro de Ciência e Tecnologia, que lança esclarecimentos sobre a política nuclear do Brasil após a 2.ª Guerra Mundial.
Essa política foi formulada pelo almirante Álvaro Alberto, professor de química na Escola Naval e que na época era considerado grande especialista no assunto. A atuação do almirante, desde o início, foi inteiramente política, porque o único centro onde na época se realizavam trabalhos em física nuclear era o Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. O departamento tinha entre seus pesquisadores o professor Gleb Wataghin, italiano que havia saído da Itália antes da guerra, além de vários cientistas considerados de “esquerda” pelo governo federal, e foi marginalizado.
Houve, portanto, desde o início, uma dissociação entre os técnicos que trabalhavam efetivamente em energia nuclear no País e os representantes do governo federal que formulavam as políticas nucleares.
Essa política na época se resumia à posse e controle de areias monazíticas (que contêm tório, um material nuclear) no litoral do Espírito Santo e eventualmente ao depósito de minerais de urânio ainda pouco identificado no País.
Álvaro Alberto se opunha fortemente à sua exportação, caso não houvesse “compensações específicas”, que não eram muito claras. Na época, o uso de energia nuclear para a produção de energia elétrica era um sonho distante e o domínio da tecnologia nuclear significava claramente a posse de armas nucleares. O que inspirava essa política era a oposição à políticas dos Estados Unidos, que tinham na época o monopólio mundial da tecnologia das bombas atômicas.
A União Soviética não havia desenvolvido ainda armas nucleares e as leis americanas proibiam a exportação de tecnologia nuclear, de modo que a política proposta pelo almirante Álvaro Alberto tinha características quixotescas.
A ênfase exclusiva na soberania sobre recursos minerais teve consequências negativas que persistem até os dias atuais. Passados 50 anos, o tório até hoje não é utilizado em reatores nucelares para produção de energia de armas nucleares e as areias monazíticas continuam nas praias do Espírito Santo. A tecnologia nuclear seguiu outros caminhos. Ainda são frequentes declarações de ministros de que o Brasil tem a 6.ª reserva mundial de minerais radioativos e que isso nos permitirá vir a ser uma grande potência nuclear, esquecendo que não se usam minerais in natura em reatores nucleares e que há todo um enorme caminho tecnológico (e enormes custos) a ser percorrido entre minério e produção de energia.
Algo parecido está ocorrendo atualmente na Bolívia, que tem os maiores depósitos mundiais de lítio, hoje um elemento químico importante para a produção de baterias de boa qualidade. O governo da Bolívia considera questão de soberania nacional proteger essas reservas contra as multinacionais, mas está fazendo muito pouco para usá-las. Como a tecnologia de baterias de boa qualidade está evoluindo rapidamente, o que provavelmente vai acontecer é que serão desenvolvidas baterias que não necessitam de lítio, tornando dispensáveis os grandes depósitos de lítio na Bolívia.
Cabe lembrar, aqui, a perspicaz observação do representante da Arábia Saudita na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) de que “a idade da pedra não acabou por falta de pedras”. O que ele quis dizer é que é prudente usar petróleo enquanto ele existe, e não guardá-lo para o futuro, porque provavelmente ele será substituído por algo melhor tanto do ponto de vista tecnológico como ambiental. Isso é o que aconteceu com as pedras na Pré-história, que foram substituídas por metais. O mesmo está acontecendo hoje com a produção de petróleo a partir de areias betuminosas no Canadá, que provavelmente será abandonada por causa das descobertas de gás de xisto, mais barato e menos poluente.
A política nuclear nacionalista adotada por Álvaro Alberto não ajudou o desenvolvimento tecnológico do País, que poderia ter-se beneficiado da colaboração internacional. É isso que a Índia fez, o que lhe permitiu dominar completamente toda a tecnologia nuclear em 25 anos, chegando até a produzir armas nucleares.
Depois de 1955 houve uma grande abertura no domínio de tecnologia nuclear com o plano Átomos para a Paz, do presidente Eisenhower, e o Brasil se beneficiou da instalação de um reator de pesquisas no câmpus da Universidade de São Paulo. Essas pesquisas, contudo, se dirigiram para a disseminação do uso de materiais radioativos na indústria, na agricultura e, sobretudo, na medicina, mas não para o planejamento e a construção de reatores com tecnologia nacional, como fez a Índia.
O presidente Geisel tentou corrigir esse problema em 1975, com um plano inteiramente inapropriado para a realidade nacional, em colaboração com a Alemanha, que nos tornaria dependentes de energia nuclear para a produção de eletricidade (como o Japão e a França), negligenciando o enorme potencial hidrelétrico brasileiro, que até hoje – passados 40 anos – supre grande parte da eletricidade que usamos.
Esse plano contribuiu pouco para o desenvolvimento tecnológico nacional e estimulou os programas nucleares “paralelos” conduzidos pelas Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e que eram vistos por muitos como uma tentativa de produzir armas nucleares. Apenas o trabalho conduzido pela Marinha levou a resultados concretos.
Poderíamos, portanto, estar hoje muito mais avançados do que estamos. Mais de meio século foi praticamente desperdiçado em razão da adoção de políticas equivocadas na área nuclear.
* JOSÉ GOLDEMBERG FOI MINISTRO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA.
FONTE: O Estado de S. Paulo