Por falar em Coronel e em ‘Good Hope’, os reparos do ‘Glasgow’ no Brasil, em 1914
Aproveitando a discussão sobre a Batalha de Coronel, trazemos aqui para os leitores do Poder Naval alguns trechos de um interessante relato sobre o destino de um dos navios ingleses sobreviventes da batalha, o cruzador HMS Glasgow. O navio recebeu reparos de emergência no Brasil, e o assunto é parte das memórias de um então capitão-tenente que, cerca de duas décadas depois, tornou-se um dos grandes responsáveis pela retomada da construção naval militar aqui no Brasil, Júlio Regis Bittencourt (que fala de suas próprias ações na terceira pessoa, não estranhem).
No início daquele ano de 1914, Júlio Regis havia voltado ao País após se formar no curso de engenharia naval na Inglaterra. Alguns meses depois, como capitão-tenente que acabara de ingressar no Corpo de Engenheiros Navais, passou a servir no Arsenal de Marinha como ajudante de construção naval e encarregado dos dois diques secos da Ilha das Cobras e do dique flutuante Afonso Pena, adquirido para docar os encouraçados Minas Geraes e São Paulo da Marinha do Brasil. O Afonso Pena ficava fundeado no fundo da Baía de Guanabara, próximo à Ilha do Rijo.
Como encarregado dos diques, o capitão-tenente teve muito trabalho com os reparos dos navios ingleses que aqui aportavam, durante a Primeira Guerra Mundial. O cruzador Glasgow foi um deles e a narrativa a seguir é dos acontecimentos de logo após a Batalha de Coronel, em novembro de 1914.
“Foi uma tarde chamado ao gabinete ministerial e, em caráter secreto, recebeu ordem de estar sempre alerta e pronto a prestar qualquer serviço que fosse solicitado pelo adido naval inglês, guardando a maior reserva no que tivesse que praticar.
Surpreendentemente, uma manhã foi procurado pelo adido naval inglês e seguiu com ele em condução própria para bordo de um cruzador inglês fundeado nas proximidades da Ilha do Viana.
Era um barco cinzento de quatro chaminés baixas, aparentemente nada revelando. Era o Glasgow, de 4.800 toneladas, cruzador ligeiro, armado com canhões de 6″ e 4″. Era uma vítima da guerra e que testemunhara uma terrível tragédia! Comandava-o o Captain John Luce, um homem de alto estilo e temperamento. Imediatamente entraram em decisões.
Partiu para o fundo da baía, enquanto a Companhia Nacional de Navegação Costeira, dos estaleiros da Ilha do Viana, fornecia o pessoal necessário para dar início aos reparos de que o navio precisava. Tudo foi quase miraculosamente executado, quer com presteza com precisão.
Na câmara do comandante, o Captain Luce (creio que já era da Reserva e fora professor numa escola naval da China), diz: “Take a chair and listen to me: poor Cradock!” E não saía de sua lembrança a imagem do chefe querido, sacrificado de modo tão cruel!”
(segue-se uma página e meia da narrativa da batalha, feita pelo comandante do Glasgow a Júlio Regis Bittencourt. Em seguida, o autor retoma o relato sobre os reparos no navio britânico)
“O Glasgow aqui chegou com um imenso rombo na popa, próximo ao compartimento do leme a boreste; uma carvoeira avante foi atingida por uma granada, que caiu dentro do compartimento, sem explodir, e outra, também a boreste, penetrou na câmara, devastando tudo.
Numerosas pequenas avarias sem prejuízo na eficiência do navio atingiram as superestruturas e as partes elevadas.
O Captain John Luce pediu urgência e todos desdobravam-se para dar-lhe o navio pronto o mais rápido possível.
Tudo se fazia. Uma noite, necessitou-se de tubos de caldeira e tijolos refratários para as suas paredes. Com autorização do oficial de serviço no Arsenal de Marinha, foi aberto o depósito da oficina de máquinas e retirou-se de lá o necessário para que ficasse o navio pronto na data combinada.
O Captain Luce, com a fisionomia preocupada, disse que precisaria sair no dia seguinte, pois recebera instruções do Almirantado.
Fez-se o milagre! Na madrugada de 21 de novembro, o navio foi posto a flutuar e com suas máquinas deixou o dique.
Febrilmente, tomou carvão no canal em suas proximidades e, horas depois, a todo vapor, deixou o porto do Rio de Janeiro envolto em fumo e seguiu rumo ao seu destino.”
Os reparos no Brasil permitiram que o Glasgow participasse da Batalha das Falklands, onde os cruzadores do almirante alemão Graf Spee, que tanto estrago haviam causado a suas contrapartes inglesas em Coronel, encontraram seu fim. O Glasgow teve papel importante na perseguição ao cruzador alemão Leipzig.
FONTE: BITTENCOURT, Júlio Regis, 1882-1964. Memórias de um engenheiro naval: uma vida, uma história. Rio de Janeiro: SDGM, 2005. p. 76-81.
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