RJ tem papel decisivo para retomada da competitividade naval
Contudo, especialistas alertam para carência de cursos e falta de investimento do estado
Jornal do Brasil
Pamela Mascarenhas
As políticas públicas implantadas nos últimos 10 anos foram definitivas para a retomada da indústria naval brasileira, que havia entrado em crise no final do último século e que hoje é responsável por 70 mil empregos diretos. O desafio, agora, é alcançar a competitividade que o país possuía nos anos 1970, quando ficava atrás apenas do Japão – este ainda entre os maiores do mundo no setor. O Rio de Janeiro, que serviu de principal cenário para a primeira fase da indústria no país, de “expansão e estruturação”, tem o papel mais importante também nesta nova fase, de busca pela competitividade, informam especialistas. O Estado fluminense, no entanto, ainda carece de quesitos que são determinantes para que o país reconquiste o topo da lista.
Para especialistas e profissionais do mercado, entre os principais entraves do Rio de Janeiro estão a oferta insuficiente de ensino técnico de qualidade e a ausência de investimento em tecnologia de ponta, para que a indústria possa competir em pé de igualdade com países como Cingapura e Japão. A Escola Técnica Estadual Henrique Lage, por exemplo, escola tradicional localizada em polo naval de Niterói, poderia vir a ser um centro de referência, sugere Floriano Pires Junior, professor do Programa de Engenharia Oceânica da Coppe/UFRJ.
A oferta de qualificação técnica no setor privado também apresenta empecilhos para o setor. Como reforça Marcos Porto, gerente de projetos da Naproservice Offshore Estaleiros do Brasil – empresa com base na Ilha da Conceição, em Niterói -, com a explosão da indústria naval nos últimos anos e a projeção de suas conquistas na mídia, como a grande promessa em oferta de trabalho, empresários enxergaram lucro na carência de cursos de qualificação. O empenho para atrair alunos, no entanto, não parece ter sido acompanhado de uma atenção à qualidade. Trata-se dos cursos “caça-níqueis”, como definiu o profissional em conversa com o JB, cursos de curta duração e pouco compromisso com a formação de qualidade. Marcos ressalta que os profissionais têm chegado ao mercado de trabalho sem a competência necessária para exercerem suas atividades.
De acordo com Floriano Pires, o Rio tem posição privilegiada porque abriga quase todas as empresas do setor, centros de pesquisa na área de petróleo, tem o melhor padrão de mão de obra e a experiência, já que a indústria naval está presente no estado há muito tempo e “nunca morreu”. “Não tenho notado nenhuma ação efetiva, nenhum movimento do governo do estado, no sentido de ‘vamos trabalhar forte nisso, favorecer a consolidação dessas áreas’. Acredito que, em breve, isso vai precisar acontecer. Existe uma clara lacuna. É preciso mais planejamento, ação. Se a indústria do país der certo, é porque a do Rio deu certo”.
O presidente da Associação Brasileira das Empresas do Setor Naval e Offshore (Abenav), Augusto Mendonça, todavia, faz questão de ressaltar que todas as ações do governo do estado têm sido importantes e que as perspectivas são positivas. “O governo do Rio sempre foi muito ativo nessa questão, tomou iniciativa de apoiar fornecedores da indústria”.
Claudiana Guedes, economista e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), apresentou uma tese de doutorado neste ano que trata da retomada da indústria naval no Brasil, com foco no mercado de trabalho e na tecnologia. Ela ajuda a explicar a importância do Rio de Janeiro para a indústria naval brasileira, antes e agora: “Historicamente, o setor esteve fortemente concentrado no Sudeste, particularmente no estado do Rio de Janeiro, berço dessa indústria no país, sendo responsável, nas décadas de 1970 e 1980, por mais de 90% da produção naval nacional. A maioria dos estaleiros está localizada no estado, que detém mais da metade da capacidade de produção da indústria”.
A trajetória da indústria e a importância do mercado fluminense
A indústria naval tem um papel muito importante na economia do país, destaca Claudiana, e teve momentos distintos. O primeiro período, de “expansão e estruturação”, durou de meados da década de 1950 até início da década de 1980 – quando o Brasil teve o segundo maior parque naval mundial, atrás apenas do Japão. O segundo momento, de meados da década de 1980 até a década de 1990, foi marcado pela crise, com fechamento de estaleiros e forte diminuição de indicadores de emprego. De fins da década de 1990 até 2012, veio o período de retomada, com grandes investimentos e ampliação da indústria. “Trata-se de uma indústria extremamente dependente do Estado, como é no mundo todo”, explica. Hoje, quem domina a indústria são os asiáticos – China, Coreia do Sul e Japão.
Entre as políticas que atuaram no resgate da indústria naval brasileira, Claudiana destaca, do final dos anos 1990, as mudanças nas políticas de compras da Petrobras, a Lei do Petróleo (Lei 9.478/97) e o Programa de Apoio Marítimo – Prorefam (1999). Em 2000, foi a vez do Programa Navega Brasil, que trouxe modificações nas condições do crédito a armadores e estaleiros. As principais, contudo, foram implantadas a partir do governo Lula, diz. Ela aponta o Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural – Prominp (2003), o Programa de Modernização e Expansão da Frota – Promef (2004) e o Programa de Empresa Brasileira de Navegação – EBN (2010).
“Essas políticas foram importantes porque começaram a se preocupar com o que se chama de fornecimento mínimo de produção realizada no Brasil, um índice mínimo de nacionalização. A Transpetro, subsidiária da Petrobras responsável pela compra dos grandes navios, especialmente agora, precisa de muitos navios, plataformas, navios de apoio. Hoje, o índice de nacionalização desses navios está em 55%”, explica.
A tese de Claudiana critica o investimento proveniente dessas políticas em outros estados, em detrimento do Rio de Janeiro. A questão é que, como o Rio de Janeiro possui as principais plantas, a especialização e a cultura naval de seus trabalhadores, sua capacidade de atender as demandas são maiores. Com a descentralização do mercado em diferentes regiões brasileiras, no entanto, o estado acabou perdendo participação. “Seus estaleiros estão, em sua maioria, com defasagem/decadência tecnológica. Ocorreu por parte dos estaleiros fluminenses crítica aos investimentos em outros estados.”
O presidente da Abenav, Augusto Mendonça, alega que o desenvolvimento de polos navais acabou virando uma necessidade, a medida que, no Rio, todos os estaleiros disponíveis foram ocupados e que o estado estava sem áreas adequadas, fazendo com que a indústria naval se expandisse para lugares como Pernambuco e Rio Grande. “Mas, sem dúvida, o Rio ainda responde por 50% das empresas da indústria. O percentual de empregos deve diminuir, contudo, por conta dos novos estaleiros”.
O Rio de Janeiro tem 22 estaleiros, que se concentram principalmente na capital, em Niterói, São Gonçalo e Angra dos Reis, e representam 50% da mão de obra e 55% do aço consumido nos estaleiros brasileiros, de acordo com dados do Sinaval (Sindicato Nacional da Indústria de Construção e Reparação Naval e Offshore). Possui a maior concentração de estaleiros, além de deter o maior volume de emprego na construção naval – eram 8 mil em 2002 e, no ano passado, 31 mil, segundo a Firjan. O número de empregados com carteira assinada praticamente quadruplicou na última década e o Rio de Janeiro voltou a ser o maior empregador brasileiro no setor naval, com 2/3 do mercado nacional. O PIB do setor no estado em 2010 foi equivalente a 2,5 bilhões, participação de 64% no Brasil.
“O que saiu do Rio foram as instalações industriais. A inteligência, a engenharia, o setor de serviço continuou aqui. O Rio ainda concentra as atividades, as empresas, que agregam valor. No futuro, o Rio precisa e deve continuar um centro de construção naval, os estaleiros estão aí, novos projetos estão sendo lançados, ainda há espaço para ser importante. Torço por novos investimentos para consolidar, e não dispersar. Quando eu falo que o Rio tem essa vocação, não quero dizer que não seja necessário avançar nos outros polos. Precisa, sim. Mas, para a indústria ser bem sucedida, é preciso um esforço concentrado, de um centro de pesquisa, apoio para desenvolvimento de tecnologia e gestão”, alerta Floriano Pires.
Apesar dos postos de trabalho da indústria de construção naval continuar concentrado no estado do Rio de Janeiro, esse teve pequena perda de participação no decorrer nos anos, segundo a economista. O estado que mais ganhou participação no período foi Pernambuco. Enquanto em 1995 o estado nordestino era responsável por 0,55% das vagas do setor, em 2010 o volume pulou para 12,61%.
Claudiana cita o desempenho de dois estaleiros, um em Pernambuco, o Atlântico Sul, e outro no Rio de Janeiro, o Estaleiro Mauá, na entrega de navios que marcaram a retomada da indústria naval. O navio símbolo deste novo momento, diz a economista, acabou sendo o entregue pelo estaleiro Mauá, devido ao atraso do pernambucano. O navio Celso Furtado foi lançado ao mar em junho de 2010, no Estaleiro Mauá, em Niterói (RJ), o primeiro navio construído no Estado do Rio em 13 anos. O navio construído em Pernambuco, o João Cândido, acabou sendo entregue em maio de 2011.
“Quem mais demonstra que tem capacidade são os estaleiros do Rio de Janeiro, que são os principais do Brasil. As principais encomendas estão em Angra dos Reis e em Niterói”, diz Claudiana. Segundo pesquisa da economista, em 2010, a capacidade produtiva dos estaleiros fluminenses correspondia a 51,3%, a de Pernambuco, 28,5%, Santa Catarina, 8,4%, e Rio Grande do Sul, 5,3%.
Com as promessas do setor, novos estaleiros abrem e outros se tornam obsoletos, como o de Eike Batista, destaca. “Demandas e encomendas previstas e contratadas pela Petrobras até 2022 garantem crescimento. A gente sabe que, nesta década e na próxima, a indústria naval no Brasil vai continuar crescendo. Os investimentos são gigantescos e a base é a indústria naval. Isso é algo muito importante, porque o Brasil pode voltar a ser uma das grandes potências, como já foi na década de 1970. Nisso, estado do Rio é o mais importante, sem dúvida. Não tem como falar na indústria naval no Brasil, sem falar no Rio”, explica Claudiana.
Nesta semana, o presidente da Braskem, Carlos Fadigas, disse que o futuro do setor petroquímico passa certamente pelo Rio de Janeiro. Segundo estudo encomendado à consultoria Maxiquim para identificar os cenários para a indústria petroquímica fluminense, a capacidade de produção de matéria-prima petroquímica no Rio (eteno, polipropileno e polietileno) com a entrada da segunda fase de investimentos no Comperj passará dos atuais 1,54 milhão de toneladas por ano para 4,6 milhões de toneladas por ano, tornando o Estado o maior polo petroquímico do País e beneficiando também a indústria naval.
Alexandre Gurgel, diretor de Política Industrial e Novos Negócios da Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro (Codin), em conversa com o JB por telefone sobre o potencial da indústria fluminense, salientou que este é um momento diferente do vivido nos anos 1970. Naquela época, informa, o mercado do Rio lidava com navios de guerra e navios mercantes. Agora, a indústria naval é offshore.
“Claro que o primeiro ciclo deixou raízes, deixou traços, para este segundo. Nós hoje estamos vivendo este momento de consolidação, de retomada, que acontece no primeiro governo do Lula. Essa diversificação em outras regiões brasileiras, com certeza, agrava a curva de aprendizado. Porque o Rio é que tinha a tradição, os estaleiros e a mão de obra. Nós tivemos um bom desempenho, mas poderia ser melhor. Temos que consolidar a cadeia produtiva, trazer fabricantes de acessórios, como hélice, turbina. Além disso, a gente precisa, para seguir no processo da consolidação, garantir a mão de obra qualificada, intensificar os programas de formação profissional”, declarou Gurgel.
O vice-presidente executivo do Sindicato Nacional das Empresas de Navegação Marítima (Syndarma), Luis Fernando Resano, informa que hoje há mais de 200 embarcações de bandeira brasileira e outras quase 250 de bandeiras estrangeiras operando na costa brasileira. A projeção completa é de que em 2020 haja mais de 600 embarcações operando nas atividades de apoio marítimo na nossa costa.
“Outro segmento que tem realizado significativos investimentos na aquisição de novos ativos é a cabotagem, tão desconhecida pela população em geral. Nos últimos cinco anos, entraram em serviço 15 novos navios, seja em substituição a navios antigos, seja para ampliação da frota. Ainda que a demanda de transporte de cargas tenha ligação direta com o crescimento da economia, a cabotagem tem crescido a taxas superiores a 10% nos últimos 10 anos, uma taxa muito superior ao crescimento do PIB. Apesar deste crescimento significativo da cabotagem, permanece o desequilíbrio da matriz de transporte no país, o que significa que há necessidade do setor continuar investindo para aumento de sua participação nesta matriz. Isto vem ocorrendo com a construção de navios maiores”, explica Resano.
Capacitação e tecnologia, maiores desafios do estado
Quando questionada sobre os principais desafios e obstáculos para a consolidação do mercado naval fluminense, Claudiana aponta a questão tecnológica e a insuficiência de cursos de formação técnica, para atender a alta necessidade da indústria nesta e nas próximas décadas. Em relação à questão tecnológica, aponta a economista, o mercado fluminense vem tentando realizar convênios e associações com multinacionais. Um exemplo seria que muitos estaleiros do Rio são de empresas multinacionais – como o BrasFELS de Angra dos Reis, que é de um grupo da Cingapura. “Eu acho que esse é um dos grandes problemas dos estaleiros brasileiros, tentar recuperar o tempo perdido nessa questão tecnológica, acompanhar a tecnologia perdida no período da crise.”
Sobre a formação de profissionais técnicos, ela diz que realmente é preciso investir em mais cursos técnicos direcionados ao setor, já que a oferta atual é pequena frente a quantidade de profissionais que se pretende contratar. “Deve haver uma maior quantidade de cursos técnicos para esses profissionais. Além disso, eu acho que é importante o estado fazer um lobby, uma pressão maior com o governo, para essas encomendas virem para o estaleiro do Rio, que tem capacidade para isso.”
Floriano Pires comenta que, na área de engenharia, de pesquisa, na formação de recursos humanos, os investimentos são tímidos. Falta, acredita, um sistema de formação de técnicos de nível mais elevado e com formação mais longa. Atesta, todavia, que um centro de formação técnica não é um investimento simples.
“É mais fácil criar um curso de engenharia naval do que um curso técnico. A Escola Técnica Estadual Henrique Lage, em Niterói, que oferece curso na área, certamente seria candidata a principal centro de formação do país. Não é possível imaginar que o mercado vai ter o contingente de trabalhadores que precisa treinando gente em Cingapura, no Japão. Os programas federais estão nessa linha, priorizando o ensino técnico. Pronatec é barato, criar um centro de capacitação técnica, não. A educação tem que partir do governo do estado”, sugere.
O JB entrou em contato com a assessoria Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), vinculada à Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, para verificar investimentos previstos no ensino técnico no estado, mas não recebeu as informações até o fechamento desta reportagem.
De acordo com o Ministério da Educação, um curso técnico de Máquinas Navais, por exemplo, que forma mão de obra para diversos segmentos da indústria como para estaleiros e oficinas de manutenção de navios, precisa oferecer biblioteca com acervo específico e atualizado; laboratório de automação; laboratório de máquinas hidráulicas e bombas; laboratório de informática com programas específicos; laboratório de metrologia; laboratório de refrigeração; laboratório didático: unidades de caldeiras, de turbinas e de motores; além de oficina de manutenção.
Com base nessas recomendações, é importante que o candidato a técnico da indústria naval se atente para a oferta dessa estrutura nos cursos, tanto nos oferecidos pelo Estado quanto nos da iniciativa privado. O Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro, que gera os registros aos profissionais técnicos do Rio de Janeiro e também gera cadastros para cursos e instituições de ensino, informa em seu website que, para obter o registro profissional, é preciso que técnico possua diploma ou certificado registrado no MEC.
“Nós temos no Rio a vocação, a tradição da indústria marítima. A Marinha está aqui, a Petrobras e toda a engenharia da Petrobras está aqui. Temos o maior centro de pesquisa naval e oceânica, a Coppe. Temos o Henrique Lage, uma escola única, com especialização na área naval, com inserção no mercado e bem localizada. É preciso consolidar este negócio, criar mecanismos, centros de pesquisa especializada, como aconteceu sem muita intervenção com o petróleo, setor que tem muitas empresas fazendo centro de pesquisa, criando parque tecnológico. Isso tem efeito em termos de tecnologia, de desempenho”, conclui Floriano.
FONTE: Jornal do Brasil