‘Barrigada do ano’: em ‘O Globo’, jornalista chama de ‘conspirador’ almirante que ajudou a garantir a democracia
Roberto Lopes
Editor de Opinião da Revista Forças de Defesa
“Barrigada”, no jargão jornalístico, significa a veiculação de uma notícia falsa, ou eivada de erros, como se ela fosse verdadeira e inédita, um verdadeiro “furo de reportagem”…
Em um trecho do artigo principal de sua coluna do jornal “O Globo” desta segunda-feira (20.04) – intitulado “Trinta anos sem Tancredo, o presidente que nunca tomou posse” –, o veterano jornalista Ricardo Noblat – um dos mais festejados do país – distorce a realidade:
“Ao saber que Alfredo Karan, ministro da Marinha, conspirava contra sua candidatura a presidente, Tancredo convidou-o para continuar no cargo. Karan aceitou radiante. Às vésperas de tomar posse, Tancredo explicou-se a um amigo: ‘Karan tentou me dar um golpe e eu dei um golpe nele. Não será ministro’ ”.
Apresentado desta forma, engenhosa – com jogo de palavras –, o texto de Noblat pode parecer engraçadinho… mas está errado!…
Jantar – Em meados de 1984, o então ministro da Marinha, almirante-de-esquadra Alfredo Karam, encontrou-se com o então governador de Minas Gerais – e pré-candidato à Presidência da República – Tancredo de Almeida Neves em um jantar, no Rio de Janeiro, oferecido pelo casal Otávio Lima e Silva de Moraes e Maria Aguinaga. Os dois conversaram e Tancredo disse que, no caso de ser eleito, gostaria de manter Karam no cargo.
Karam havia assumido o Ministério da Marinha a 21 de março daquele ano, esvaziando a situação de desconforto que se criara no governo, devido à insatisfação do então presidente da República, general João Baptista de Oliveira Figueiredo, diante das repetidas declarações de teor político de seu ministro da Marinha, almirante-de-esquadra Maximiano da Silva Fonseca – oficial voluntarioso e querido na Força, mas de estilo pessoal um tanto opinativo.
Reservado e de pouca conversa, Alfredo Karam fez a Marinha retornar ao leito específico dos assuntos militares, o que lhe granjeou admiração no governo.
No segundo semestre de 1984, a candidatura de Tancredo cresceu de forma avassaladora. Seu adversário, Paulo Maluf, parecia incapaz de fazer-lhe frente. Nos quartéis e fora deles, começou uma boataria sobre a possibilidade de um golpe militar, que seria perpetrado por setores inconformados (mas nunca claramente identificados) com a possível derrota do governo na eleição indireta para a Presidência.
Depoimento – Na segunda-feira, 17 de setembro, o presidente Figueiredo resolveu reunir o staff militar de seu governo para uma conversa na Granja do Torto.
“Golpe coisa nenhuma!” Bradou o general-presidente. “Golpe só comigo deposto ou morto!”. Ouviu-se sussurros em apoio ao chefe.
Estavam presentes no Torto os ministros do Exército, general Walter Pires de Albuquerque; Karam, da Marinha; o ministro da Aeronáutica Délio Jardim de Matos; o ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, brigadeiro Waldir de Vasconcelos; o ministro-chefe da Casa Militar, general Rubem Ludwig; e o ministro-chefe do SNI, general Octávio Medeiros.
O almirante Karam, entretanto, decidiu ser mais ostensivo, e elevou o tom de voz: “Presidente, a Marinha segue as suas águas”.
Nesta segunda-feira a reportagem do Poder Naval procurou o ex-ministro Alfredo Karam.
Pelo telefone, ele informou que já tomara conhecimento da alusão ao seu nome no artigo de Ricardo Noblat, e que lamentava a história mal contada. Deu, então, o seguinte depoimento:
“Com o desenrolar da campanha presidencial, eu logo vi que o Dr. Tancredo não poderia manter em seu governo um ministro que pertencera ao governo militar. Isso me pareceu óbvio. No início de 1985 eu recebi em meu gabinete do Ministério da Marinha a visita do deputado Milton Reis, de Minas, que me levou um convite do presidente eleito para que eu assumisse a Portobras. Para provar que dizia a verdade, Reis me colocou ao telefone com o próprio Tancredo. Eu agradeci e respondi que iria pensar com carinho nessa oportunidade, mas decidi não aceitar, preferi ter um descanso. Eles, então, escolheram para o cargo um engenheiro, Carlos Teófilo de Sousa Melo”.
Complô – Estou a vontade para escrever sobre o episódio.
Sou co-autor do livro “O complô que elegeu Tancredo” (Ed. JB, 1985), lançado em Brasília dias antes de o país descobrir que o presidente eleito sofria de grave enfermidade.
Escrevi esse trabalho na virada de 1984 para 1985, em companhia de quatro dos mais importantes jornalistas brasileiros da época: Ricardo Noblat, que coordenou o texto final da obra, José Negreiros, Roberto Fernandes e Gilberto Dimenstein.
A mim coube, precisamente, investigar a reação da caserna à postulação presidencial de Tancredo Neves.
O livro mostra em detalhes o apoio cabal da Marinha à redemocratização do país, e, especialmente, os contatos frequentes de oficiais do seu setor de Inteligência com o senador Affonso Camargo Neto (PMDB-PR), um dos articuladores da candidatura Tancredo.
Quando as águas pareciam revoltas, a Marinha manteve a proa certa.