Os 150 anos de Riachuelo e suas lições, parte 1:
Para lutar, é preciso se equipar
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Fernando De Martini
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Hoje são comemorados os 150 anos da Batalha Naval do Riachuelo, combate naval ocorrido em 11 de junho de 1865 na fase inicial da Guerra do Paraguai, também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança.
Para marcar este sesquicentenário, o Poder Naval preparou uma série de matérias focando algumas lições que se pode tirar, para os dias de hoje, do combate fluvial entre as esquadras brasileira e paraguaia que disputaram, em 1865, o controle da bacia dos rios Paraguai e Paraná. Mesmo após a passagem de 15 décadas, mesmo com as mudanças dramáticas da tecnologia naval em todo esse tempo, mesmo com as mudanças das relações do Brasil com seus vizinhos, com o mundo e as visões de sua defesa, não faltam lições a se extrair, para hoje, desse passado.
As circunstâncias da batalha, as manobras, os encarniçados combates e o seu resultado favorável ao Brasil, garantindo o estratégico controle daquelas águas e bloqueando definitivamente o Paraguai, já foram objeto de diversos artigos, muitos publicados aqui mesmo. Não cabe repetir esse conteúdo. Importa, para nossos objetivos de extrair algumas lições pertinentes à Marinha de hoje, lançar luz sobre certos aspectos nem sempre evidenciados pelos relatos e análises. Em especial, sobre as decisões e os cuidados para se especificar, projetar, construir, incorporar e manter esquadras que sejam úteis aos objetivos da nação e adequadas aos cenários de emprego previstos, a tempo de estarem prontas para a ação.
O primeiro ponto que trataremos aqui é sobre os esforços despendidos, desde pelo menos quinze anos antes, para adquirir no estrangeiro e também manter e construir, no país, navios de guerra capazes de atender aos interesses do então Império do Brasil na região do Prata, onde se travou o combate de 11 de junho de 1865.
O programa de 1850
Desde o final da década de 1840 a Marinha Imperial vinha incorporando pequenos navios de guerra com propulsão a vapor à sua frota (com deslocamento ao redor de 500 toneladas), boa parte encomendada ao estaleiro Ponta da Areia, de Irineu Evangelista de Sousa (barão de Mauá). Era o caso das corvetas Recife, D. Pedro II e Paraense, ainda dotadas do sistema propulsor com rodas de pás laterais. Em 1848, a Marinha também já havia mandado construir na Inglaterra a fragata de rodas Don Afonso, de porte mais significativo (cerca de 1.000 toneladas). É importante esclarecer que, quando nos referimos a navios a vapor daquela época, em geral isso significa navios com propulsão mista (vela e vapor). Os mastros e o velame ainda seriam, até cerca de 1880, importantes para as longas travessias oceânicas, poupando precioso combustível (carvão) nem sempre disponível em todos os portos.
Os novos navios a vapor da Marinha Imperial tiveram desempenho exemplar na guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852), com destaque para a “Passagem de Tonelero”, em que rebocaram navios mais velhos e de propulsão exclusivamente a vela usados para transportar tropas rio Paraná acima, ultrapassando fortificações instaladas pelas forças de Rosas na margem. O sucesso levou a um plano de aquisição mais amplo, na Inglaterra, o chamado programa de 1850, estabelecido no decreto 667 de 26 de janeiro daquele ano. Foram encomendados meios como a fragata Amazonas (aproximadamente 1.800 toneladas), ainda dotada de rodas de pás, e várias corvetas que já eram equipadas com hélices para a propulsão: Jequitinhonha, Magé, Beberibe e Viamão, e outras embarcações menores. O leitor mais atento já percebeu, entre os navios citados, alguns protagonistas da Batalha do Riachuelo, que seria travada quinze anos depois do programa que levou a essas aquisições.
O programa de 1850 refletia uma postura mais ativa do Império do Brasil frente aos vizinhos, principalmente na região do Rio da Prata, levando a Marinha Imperial a se organizar para manter uma divisão permanente naquela bacia hidrográfica, visando principalmente ações de bloqueio a Buenos Aires, se necessárias. Vale lembrar que, décadas antes, a Guerra Cisplatina incluiu justamente esse tipo de ação. A aquisição dos meios foi aquém dos números julgados necessários, devido a limites orçamentários, mas aos poucos a quantidade de belonaves a vapor na Marinha Imperial cresceu, tomando o lugar da maioria dos velhos e já obsoletos navios exclusivamente a vela.
Os esforços para atualizar e capacitar o Arsenal de Marinha da Corte
Ao mesmo tempo, procurou-se melhorar a capacidade do Arsenal de Marinha da Corte, no Rio de Janeiro, para a manutenção dos navios a vapor, o que já vinha sendo feito lentamente desde décadas anteriores, com oficinas dotadas de equipamento e pessoal apto a trabalhar com metais, caldeiras e máquinas (principalmente contratando operários da Bélgica e maquinistas que traziam navios a vapor encomendados à Inglaterra). Vale lembrar que, desde a Independência, a importância do Arsenal na capital do Império crescia em relação ao estabelecimento que, no período colonial, era o principal responsável pela construção de navios de maior porte (no caso, para a Marinha Portuguesa), o Arsenal da Bahia, ou Ribeira das Naus. No Rio de Janeiro, apenas uma nau de grande porte havia sido construída no período colonial, e o foco do estabelecimento manteve-se nos reparos navais. Porém, com a Independência e a necessidade de se aprestar e até reconstruir rapidamente velhos navios abandonados, preparando-os para a luta contra os portugueses, as instalações da capital foram melhoradas e seus trabalhos de manutenção ganharam ritmo bem mais intenso. Já as atividades de construção naval no Arsenal de Marinha da Corte evoluíram de forma mais lenta.
Como uma das ações para melhoria nos serviços de manutenção e, principalmente, para viabilizar a construção de novos navios de guerra no Arsenal da capital do Império, passou-se a enviar pessoal qualificado para estudar na Europa a partir de 1850. Foi o caso do jovem e promissor construtor Napoleão Baptista Level que, na volta ao Brasil em 1852 após ter estudado a construção de cascos de desenho moderno, dirigiu os trabalhos da pequena corveta Ipiranga (350 toneladas), o primeiro navio de guerra a vapor com propulsão a hélice construído no país. No final daquela década, Level já projetava e dirigia a construção de navios bem mais complexos e de maior porte, como a corveta Niterói (maior belonave até então construída no Arsenal da Corte, com mais de 1.800 toneladas), da qual falaremos em outra parte desta série.
Também foram estudar no velho continente os militares Gomes de Matos e Carlos Braconnot, que na volta assumiram os trabalhos na chamada Oficina de Máquinas do Arsenal, projetando e fabricando ali as máquinas a vapor para os novos navios que Level construía. Já no início da década de 1860, o oficial Henrique Antônio Baptista, nomeado diretor de Artilharia, foi mandado à Europa para colher dados sobre os novos canhões raiados oferecidos por fabricantes franceses e ingleses, e em especial os modelos Armstrong e Whitworth britânicos, com o objetivo de se armar com a opção julgada mais moderna e capaz os novos navios que se construíam no Brasil.
À época em que Baptista foi mandado à Europa, Level mais uma vez foi estudar na França e Inglaterra, agora visando se atualizar sobre uma grande novidade que surgia: as belonaves protegidas por couraças de ferro, tanto as que ainda traziam atrás da blindagem os tradicionais cascos de madeira quanto os cascos também construídos com estruturas e chapas de ferro. Todo esse processo ocorreu com sua dose de problemas, algumas indecisões, seguidas de impulsos e investimentos. Mas, em geral, percebe-se uma clara insistência em manter a Marinha Imperial a par das tecnologias da guerra naval da época, em sucessivas administrações navais.
O impacto do combate de Hampton Roads, na Guerra Civil Americana
O novo envio de Level à Europa ocorreu na esteira de uma batalha que agitou os círculos navais no mundo: o combate de Hampton Roads, da Guerra Civil Americana, no início de 1862. O encouraçado confederado Virginia (ex-Merrimack, uma fragata de madeira e propulsão a vapor que foi apreendida pelos sulistas e depois extensamente modificada com a instalação de uma casamata encouraçada) atacou impunemente em 8 de março daquele ano os navios sem couraça da União, que bloqueavam a saída para o mar dos sulistas na Baía de Chesapeake. Esse ataque mostrou que os navios da época estavam praticamente indefesos numa situação de bloqueio contra novos encouraçados, mesmo improvisados como era o caso do Virginia.
Navios encouraçados, e de porte significativo para operações no oceano, já vinham sendo desenvolvidos e construídos pela França e Inglaterra desde 1859, mas a primeira ação bélica de um encouraçado foi a do relativamente pequeno e limitado Virginia/Merrimack. Este só não conseguiu seu intento de acabar com o bloqueio Ianque porque o Norte, sabendo meses antes das intenções do Sul, construiu às pressas seu próprio encouraçado, o famoso e inovador Monitor, que conseguiu chegar a tempo de confrontar seu oponente no dia 9 de março. A luta entre eles terminou sem vencedor, mas teve como consequências a manutenção do bloqueio nortista e a passagem da iniciativa para a União, nas futuras lutas rios acima.
A capacidade de realizar o bloqueio naval, como já mencionamos, era parte da estratégia da Marinha Imperial no Prata. A Administração Naval se deu conta de que, caso um dos vizinhos do Brasil pudesse se equipar com um encouraçado, mesmo pequeno, limitado e improvisado como o navio confederado, essa missão ficaria comprometida, e junto com ela naufragaria a superioridade naval brasileira e as pretensões de hegemonia na região. A não ser que o Império também tivesse navios protegidos por couraça. Por isso, Level trouxe de volta da Europa planos para a construção de três encouraçados de bateria central para a Marinha, um dos quais (do porte de corveta, com cerca de 1.500 toneladas) seria encomendado à França no início de 1864 e outros dois, menores (abaixo de 1.000 toneladas, do porte de canhoneiras) teriam a construção a cargo do Arsenal de Marinha da Corte, embora o início das obras destes demorassem mais de um ano em relação ao batimento de quilha do primeiro.
Uma boa dose de cautela para escolher o caminho a ser tomado precedeu essas decisões e encomendas, chegando-se mesmo a montar uma comissão de alto nível para discutir o problema do reequipamento naval, face à novidade dos encouraçados. Apesar do choque causado (e relatado em documentos oficiais) pelas notícias daquele combate de Hampton Roads, e apesar do aumento exponencial das tensões no Prata à mesma época (tema que trataremos agora), demandarem iniciativas rápidas, optou-se por não tomar decisões apressadas, e quase dois anos se passaram desde que a Administração Naval se mostrou impressionada pelos acontecimentos de Hampton Roads, nos primeiros meses de 1862, e o batimento de quilha do primeiro encouraçado encomendado, no início de 1864.
No curto prazo, a Marinha teria que contar, para as ações no Prata que se descortinavam naqueles conturbados primeiros anos da década de 1860, com os navios que encomendara e se capacitara a construir e manter ao longo do decênio anterior. Essas ações não tardariam.
A intervenção no Uruguai e o início da Guerra do Paraguai
O ano de 1864, que via começar na França a construção do primeiro encouraçado brasileiro, viu também nascer uma guerra civil no Uruguai. Subiu à presidência uruguaia, como consequência, um líder oposto à política Imperial, Manuel Aguirre. A resposta brasileira foi enviar 19 navios de guerra a vapor, comandados pelo vice-almirante Tamandaré, ao Prata, acompanhando uma missão diplomática – em outras palavras, a boa e velha diplomacia das canhoneiras. Nos meses seguintes, tropas foram concentradas na fronteira e acordos foram firmados com outras facções e países. Por fim, com a anuência da Argentina e os protestos do Paraguai, tropas brasileiras invadiram o Uruguai em outubro, apoiando outro líder uruguaio, Venancio Flores, disposto a derrubar Aguirre. Após combates apoiados pela Esquadra, o objetivo de colocar Flores no poder foi conseguido em 20 de fevereiro de 1865.
Por aquela época, o Paraguai havia reagido a essa intervenção brasileira, que atrapalhava seus planos de se expandir rumo ao Uruguai e dominar o Prata, invadindo Mato Grosso no final de 1864. Já no novo ano, tropas paraguaias atacavam o Rio Grande do Sul e as províncias argentinas de Corrientes e Entre-Rios.
Começava a Guerra do Paraguai, que devido aos acordos feitos entre Brasil, Argentina e Uruguai para confrontar os paraguaios, também é conhecida como Guerra da Tríplice Aliança. Um conflito gestado ao longo de 15 anos de aumento gradativo das tensões na região, acompanhado pela Marinha Imperial com um lento, porém insistente, movimento para se reequipar e se capacitar na nova tecnologia dos navios de guerra a vapor, dos cascos modernos (embora ainda de madeira, tornada obsoleta em belonaves de primeira linha já às vésperas da guerra) e dos avanços na artilharia.
Nos primeiros meses de 1865, uma divisão da Esquadra que já operava no Prata iniciou a subida do rio Paraná sob o comando de Barroso, com o objetivo de bloquear os contatos do Paraguai com o exterior. Sua capitânia era a já mencionada fragata de rodas Amazonas, incorporada em 1852, cujo calado estava no limite para navegar e combater nos estreitos e rasos canais daquela bacia. As demais corvetas, entre elas algumas das citadas no início deste texto, calavam menos, pois foram pensadas desde o início para ações na região. Canhões recém-adquiridos, raiados no sistema Whitworth (que foi o selecionado pela Marinha após o estudo das opções existentes na Europa), já equipavam parte desses navios, complementando as peças mais velhas, de alma lisa.
A primeira lição de Riachuelo
O encouraçado mandado construir na França também já estava flutuando desde dezembro do ano anterior, e se encontrava em fase de finalização. Esperava-se que, em poucos meses, pudesse se reunir à frota – assunto que, como já dissemos, será tratado posteriormente. Quilhas de novos navios, que se pretendia proteger por couraças de ferro, enfim eram batidas no Arsenal de Marinha da Corte naquele início de 1865. Estes eram os cenários e as expectativas. Mas o fato é que aquelas ações dos primeiros meses do ano ainda dependeriam da força adquirida e construída ao longo dos 15 anos anteriores, desde o programa de 1850. E daí vem a primeira lição de Riachuelo, antes mesmo da batalha: para lutar, é preciso se equipar. Lição óbvia, mas que muitas vezes se percebe, na História, que é esquecida.
A aquisição de equipamento naval, a capacitação para operá-lo e mantê-lo, e também para construí-lo no país, não se faz do dia para a noite. E, mesmo quando feita da melhor forma possível, os avanços tecnológicos não cessam, e é preciso continuar na atualização, sob pena da obsolescência. No exemplo em pauta, mesmo com problemas, mesmo com algumas demoras para decisões que contrastam com o choque das inovações da época, diversas ações decisivas foram implementadas ao longo dos 15 anos que antecederam a Batalha do Riachuelo, visando essas finalidades.
Porém, ficam as perguntas: as últimas ações tomadas para atualizar a Esquadra, já no início da década de 1860, trariam resultados a tempo? E como era mantida e prontificada para o combate esta força que subiu o rio Paraná e montou um bloqueio no primeiro semestre de 1865? Estes são assuntos para as próximas partes desta série comemorativa dos 150 anos da Batalha Naval do Riachuelo.
Nota – Esta série de textos não segue padrões acadêmicos, portanto optamos por não inserir notas de rodapé ou entremear a narrativa com citações e referências à bibliografia e documentação consultadas e analisadas. Estas serão listadas na última parte dessa série.