Reflexões sobre o encontro dos caças russos SU-24 com o destróier USS Donald Cook

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Por Getúlio Cidade*

Nos dias 11 e 12 de abril, houve um incidente nas águas do Mar Báltico que foi amplamente noticiado pela imprensa internacional, gerando rumores e teses de conspiração em toda a web. Foi o sobrevoo repetidas vezes e a baixa altitude de dois caças russos SU-24 em relação ao Destroyer (ou contratorpedeiro, como chamamos na Marinha do Brasil) Donald Cook, da US Navy. O navio estava operando em águas internacionais quando houve as interações com as aeronaves russas, em variados perfis de voo, cruzando o navio pelo través ou no sentido longitudinal a baixa altitude, algumas passagens com cerca de 9 metros de distância apenas. O evento foi filmado por militares do navio e o governo norte-americano classificou o conteúdo como ostensivo, podendo este ser encontrado facilmente na internet. Houve muita polêmica sobre o ocorrido, tanto por parte da imprensa internacional, quanto nas redes sociais. Rotulou-se o evento como uma provocação desnecessária, uma ameaça contra um navio navegando em águas internacionais e até o prenúncio de um conflito iminente entre EUA e Rússia. O evento certamente foi uma provocação, mas nada além disso, não havendo nenhum objetivo tático ou operacional, mas sim político.

Para vermos o quadro com mais clareza, é importante ressaltar que essa era uma ocorrência normal durante a Guerra Fria. E continua sendo nos dias modernos, não somente com a Rússia, mas com outros países como China e Irã, potenciais adversários dos EUA. No ano passado, a Marinha iraniana lançou no Golfo Pérsico uma réplica idêntica de um porta-aviões da US Navy e realizou um exercício com operações de ataque sobre o mesmo, em um claro ato de provocação, especialmente se considerarmos que o mesmo foi realizado nas proximidades do Estreito de Ormuz, passagem de cerca de 35% do petróleo comercializado no mundo e via considerada de estratégia vital para os EUA. Acrescente-se o fato de que tal exercício ocorreu em meio às negociações nucleares entre os dois países. O próprio USS Donald Cook, há exatos dois anos antes desse incidente no Báltico, fora alvo também de diversos voos rasantes e próximos do navio por outro caça russo SU-24 quando navegava no Mar Negro. Na ocasião, a aeronave teria usado MAE (Medidas de Ataque Eletrônico) que teriam supostamente derrubado o sistema AEGIS do navio (sistema integrado de armas), o que não foi confirmado pelo Pentágono, e soa mais como um rumor, uma vez que, se a Rússia tivesse essa real capacidade, não exporia seu segredo militar a troco de nada.

Su-24 flyby 6

Houve um consenso na mídia de que as manobras dos caças eram seguidos ataques simulados, o que não deixa de ser verdade. Mas há uma importante ressalva a se fazer aqui. Um ataque desse tipo atualmente apenas ocorreria se a aeronave estivesse armada somente com bombas, como na Segunda Guerra Mundial, e seria um ataque praticamente suicida. Salvo engano, o último conflito naval onde houve um engajamento assim foi o das Falklands, mas em uma situação tática completamente distinta, quando os caças A-4 Skyhawk da Fuerza Aérea Argentina (FAA) surpreenderam os navios britânicos fundeados próximos às ilhas, surgindo por detrás das montanhas e mergulhando rápido para lançar as bombas sobre as belonaves inimigas, reduzindo sobremaneira o tempo de reação. Tais ataques exigiam, além de extrema perícia, muita coragem e mereceram até mesmo elogios do Comandante da Força-Tarefa britânica, Rear Admiral Sandy Woodward, após a guerra. A própria Marinha do Brasil, quando operando com a FAB e outras Forças Aéreas, em operações internacionais, como a UNITAS, treina à exaustão ataques desse tipo, até porque eles podem vir a ocorrer em um conflito real, embora com remotas possibilidades. Mas sabemos que, nas condições normais de um engajamento, uma aeronave jamais se aproximaria tanto de um navio de guerra, dado o alcance dos mísseis disponíveis de ambos os lados, tanto ar-superfície, quanto superfície-ar. Se assim é, por que ainda conduzimos exercícios desse tipo? Em primeiro lugar, por que é uma excelente oportunidade de adestrar todos os envolvidos: o piloto, em suas diversas corridas, perfis e procedimentos de ataque; a equipe de vigilância, que são os militares que guarnecem na área externa ao navio e são responsáveis por reportar o contato visual, reconhecer o tipo de aeronave pela silhueta, verificar se está armada ou não, altitude estimada, etc.; a equipe do COC (Centro de Operações de Combate) do navio que irá fazer o acompanhamento com o radar, designação do alvo para o sistema de armas e os engajamentos simulados com o devido armamento; e a equipe da manobra (passadiço) que irá testar os procedimentos de comunicação, interagir com o COC, manobrar o navio para desmascarar baterias, etc. E, em segundo lugar, porque também esta é uma valiosa oportunidade para testar os equipamentos, em especial os sensores e as armas, de ambas as partes envolvidas.

Su-24 flyby 3

Esse não era o caso dos caças russos com o Donald Cook, que não estavam realizando nenhum exercício programado entre si. Em uma situação real, se houvesse a intenção de uma aeronave atacar um navio de guerra, ela dispararia seu míssil ar-superfície a uma distância eficaz, certamente muito maior que a distância visual, e tomaria um rumo para fugir do contato, esperando não entrar no alcance do armamento do navio. No caso de um navio estar navegando sob um ambiente de ameaça aérea, seus radares de busca estariam configurados para interceptar contatos aéreos o mais longe possível. A distância de detecção do contato depende da capacidade e características do radar, bem como do tamanho da aeronave e da altitude de voo, podendo ser estimada em dezenas e dezenas de milhas náuticas. Ao ser detectada e classificada como hostil, a aeronave seria acompanhada pelo sistema integrado de armas que culminaria com o lançamento de um míssil superfície-ar, tão logo ela entrasse no alcance do armamento. Ambas as partes, antes, durante e depois do ataque, também fariam uso da Guerra Eletrônica (medidas de apoio, de ataque e de proteção) a fim de otimizarem seus lançamentos e se autoprotegerem. No caso do Destroyer, se a aeronave inimiga chegasse a lançar o míssil, este poderia ser detectado a tempo de se lançar outro míssil do navio para destruí-lo. E, em caso de falha, entraria em ação o sistema Phalanx, que é uma plataforma de autodefesa composta de canhões automáticos de 20mm, com capacidade de cerca de 3 mil tiros por minuto, usados para destruir mísseis disparados contra o navio. Trazendo para a realidade mais uma vez, um Destroyer da classe do Donald Cook dificilmente estaria sozinho em uma área marítima conflituosa, mas como parte de um CSG (Carrier Strike Group), escoltando um porta-aviões que, por si só, carrega consigo entre 80 e 90 aeronaves que, por sua vez, compõem a PAC (Patrulha Aérea de Combate), responsável por dar o primeiro combate contra uma aeronave hostil detectada na Zona de Vigilância Aérea. Como vemos, um cenário realístico envolveria diversas camadas de defesa aérea antes que uma aeronave inimiga pudesse sobrevoar um navio de guerra norte-americano. Neste cenário mais próximo da realidade, também não faz sentido em se falar em uma ou duas aeronaves atacantes, mas em uma vaga atacante composta por muitas outras, caso se deseje obter algum sucesso.

Su-24 flyby 2

Assim, em uma situação de conflito, uma aeronave desse tipo seria detectada e destruída muito antes de um contato visual, considerando a força de um Destroyer dotado de sistema AEGIS. Daí depreende-se que os sobrevoos dos SU-24 no Donald Cook não podem ser interpretados como ação hostil, com alguma intenção de confronto militar, mas, sim, como uma mera provocação. A própria US Navy contempla ações desse tipo em seus manuais táticos para operação com marinhas aliadas, como, por exemplo, na publicação Allied Maritime Tactical Instructions and Procedures, mais conhecido como ATP na Marinha do Brasil, de uso restrito, ou da publicação Multinational Maritime Tactical Signal and Maneuvering Book, ou MTP, para uso da OTAN. Em ambas, há um capítulo específico para lidar com o que, no jargão naval, é conhecido como harassment, o que bem poderia ser traduzido como provocação tática. Esse capítulo trata de todas as ações desse tipo, sendo devidamente catalogadas e iniciadas com o código HA, sendo empregadas também em tempo de paz. Então, o incidente do Báltico não foi nenhuma ocorrência excepcional para a US Navy, estando previsto no compêndio de ações militares sobre harassment.

Outros aspectos a destacar são: não havia uma situação de guerra declarada entre EUA e Rússia; não houve detecção de emissão eletrônica que indicasse que o navio estava “trecado” por algum míssil; e os SU-24 estavam desarmados, o que foi identificado visualmente pela tripulação do Donald Cook. É bem verdade que o Comandante do navio poderia ter se sentido ameaçado com os caças e ter tomado medidas de autodefesa o que, taticamente falando, poderia até encontrar algum ponto de sustentação. Porém, a repercussão de um possível abate das aeronaves russas teria sido a pior possível, totalmente desfavorável a ele e ao governo norte-americano, com uma perda de capital político inestimável, sem abordar os desdobramentos advindos disto, podendo deflagrar uma rápida escalada de crise com desfecho imprevisível. Talvez, para retribuir à provocação dos pilotos russos, o Comandante do navio poderia ter determinado que se iluminasse as aeronaves com o radar de direção de tiro (DT), função esta executada através de seu poderoso radar AN/SPY-1, tipo MPAR (Multi-Function Phased Array Radar), que é o coração do sistema AEGIS, capaz de detectar, acompanhar, trecar e engajar com mais de 100 alvos simultaneamente, o que certamente seria percebido pelas aeronaves em seus equipamentos de Guerra Eletrônica. Sim, seria uma resposta à altura. No entanto, o radar de DT de um navio é como um cofre secreto. Quando se emite com ele, expõe-se dados sigilosos do sensor como frequência exata de emissão, LP (largura de pulso), FRP (frequência de repetição de pulso) e tipo de varredura, por exemplo. Valeria a pena? Depende da situação tática. Se o caso é uma ameaça real, não se deve pensar duas vezes. Ilumina-se o contato e deixa-se o armamento pronto para emprego. Se não há ameaça, e não havia realmente, a exposição dos dados de track do radar, ao adquirir o alvo para engajamento, poderia ser justamente o que os pilotos estavam querendo e a provocação teria se transformado em um grande trunfo para os russos, pois teriam captado dados de alta relevância tática a respeito dos sensores dos navios com sistema AEGIS. É algo semelhante a um jogador de futebol que fica provocando o adversário até que ele o agrida e seja expulso pelo juiz. Então, o que deveria ser feito em um caso como esse? A resposta é NADA! Exatamente como fez o Comandante do USS Donald Cook, ação esta (ou inação), em minha opinião, acertada.

Su-24 flyby 1

Mas o trunfo para os russos veio de qualquer maneira e fora do nível tático, como também desejavam. A repercussão da filmagem dos caças a poucos metros do Destroyer em voo rasante foi grande e percorreu todos os telejornais do mundo e ainda ecoa nas redes sociais e web sites. Gerou grande controvérsia e polêmica, dentro e fora dos EUA. Em protesto, o Secretário de Estado em pessoa, John Kerry, desaprovou formalmente a atitude dos pilotos russos, o que acrescentou mais lenha à fogueira, havendo um excesso de reação. A meu ver, o protesto poderia ter sido feito em um degrau abaixo, no nível estratégico-operacional, talvez pelo próprio Comandante do EUCOM, que é um Oficial-General de quatro estrelas responsável pelo emprego conjunto das Forças Armadas dos EUA na região da Europa. Seria o suficiente para um evento que não é inédito e ocorre com certa regularidade. Por outro lado, a reação exagerada dos EUA atingiu em cheio o efeito desejado da propaganda russa. Conseguiram transmitir a mensagem que desejavam, alcançando simultaneamente o público interno e externo, em especial, a OTAN. E a mensagem é: “Não venham brincar no nosso quintal! Estamos atentos aos seus movimentos e prontos para atacá-los e aniquilá-los se for preciso”. Foi uma aparente demonstração de força, embora a realidade esteja longe disso, mas essa é a leitura que a maioria, sem o conhecimento técnico suficiente para efetuar uma análise mais acurada, poderia fazer do evento.

Por fim, o incidente no Báltico reitera como uma simples ação no nível tático, mesmo em tempo de paz, pode repercutir rápida e vigorosamente no nível político, à semelhança de um tremor que origina um tsunami, que vai ganhando amplitude, à medida que se afasta do epicentro, até formar uma onda de proporções avassaladoras. Por essa razão, muito bem escreveu o General Carl von Clausewitz, ilustre prussiano, um dos maiores pensadores e estrategistas militares de todos os tempos, que o poder militar deve estar sempre subordinado ao poder político que, por sua vez, deve ser o responsável por seu emprego, pois “a guerra é a continuação da política por outros meios”.

*É Capitão-de-mar-e-guerra da reserva da Marinha do Brasil, com 32 anos no serviço ativo, comandou o navio-patrulha Guaporé e a corveta Jaceguai.

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