Neste 11 de junho de 2016, quando se comemoram os 151 anos da Batalha Naval do Riachuelo, o Poder Naval republica textos relacionados aos 150 anos daquele combate, celebrados no ano passado

Em 2015, comemoraram-se os 150 anos da Batalha Naval do Riachuelo, ocorrida em 11 de junho de 1865. Naquele mês em que se celebrou o sesquicentenário do combate, o Poder Naval publicou texto em duas partes (nos dias 11 e 24) de autoria do historiador e editor Fernando De Martini, elencando algumas lições daquele combate naval que podem ser úteis na atualidade.

Aproveitamos os 151 anos da batalha para republicar aqui, juntos, os dois textos publicados em junho de 2015, assim como os links para acesso a artigo do mesmo autor, publicado em dezembro do ano passado na revista de divulgação acadêmica Navigator da Marinha do Brasil, e que serve como complemento aos dois textos abaixo e também como terceira parte da série. Aproveite o final de semana e boa leitura!

Os 150 anos de Riachuelo e suas lições, parte 1:

Para lutar, é preciso se equipar

 
Batalha do Riachuelo - tela de Eduardo de Martino
Batalha Naval do Riachuelo – tela de Eduardo de Martino

Fernando De Martini (texto de 11 de junho de 2015)

Hoje são comemorados os 150 anos da Batalha Naval do Riachuelo, combate naval ocorrido em 11 de junho de 1865 na fase inicial da Guerra do Paraguai, também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança.

Para marcar este sesquicentenário, o Poder Naval preparou uma série de matérias focando algumas lições que se pode tirar, para os dias de hoje, do combate fluvial entre as esquadras brasileira e paraguaia que disputaram, em 1865, o controle da bacia dos rios Paraguai e Paraná. Mesmo após a passagem de 15 décadas, mesmo com as mudanças dramáticas da tecnologia naval em todo esse tempo, mesmo com as mudanças das relações do Brasil com seus vizinhos, com o mundo e as visões de sua defesa, não faltam lições a se extrair, para hoje, desse passado.

As circunstâncias da batalha, as manobras, os encarniçados combates e o seu resultado favorável ao Brasil, garantindo o estratégico controle daquelas águas e bloqueando definitivamente o Paraguai, já foram objeto de diversos artigos, muitos publicados aqui mesmo. Não cabe repetir esse conteúdo. Importa, para nossos objetivos de extrair algumas lições pertinentes à Marinha de hoje, lançar luz sobre certos aspectos nem sempre evidenciados pelos relatos e análises. Em especial, sobre as decisões e os cuidados para se especificar, projetar, construir, incorporar e manter esquadras que sejam úteis aos objetivos da nação e adequadas aos cenários de emprego previstos, a tempo de estarem prontas para a ação.

O primeiro ponto que trataremos aqui é sobre os esforços despendidos, desde pelo menos quinze anos antes, para adquirir no estrangeiro e também manter e construir, no país, navios de guerra capazes de atender aos interesses do então Império do Brasil na região do Prata, onde se travou o combate de 11 de junho de 1865.

O programa de 1850

Desde o final da década de 1840 a Marinha Imperial vinha incorporando pequenos navios de guerra com propulsão a vapor à sua frota (com deslocamento ao redor de 500 toneladas), boa parte encomendada ao estaleiro Ponta da Areia, de Irineu Evangelista de Sousa (barão de Mauá). Era o caso das corvetas Recife, D. Pedro II e Paraense, ainda dotadas do sistema propulsor com rodas de pás laterais. Em 1848, a Marinha também já havia mandado construir na Inglaterra a fragata de rodas Don Afonso, de porte mais significativo (cerca de 1.000 toneladas). É importante esclarecer que,  quando nos referimos a navios a vapor daquela época, em geral isso significa navios com propulsão mista (vela e vapor). Os mastros e o velame ainda seriam, até cerca de 1880, importantes para as longas travessias oceânicas, poupando precioso combustível (carvão) nem sempre disponível em todos os portos.

Passagem de Tonelero - tela de Eduardo de Martino
Passagem de Tonelero – tela de Eduardo de Martino

 

Os novos navios a vapor da Marinha Imperial tiveram desempenho exemplar na guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852), com destaque para a “Passagem de Tonelero”, em que rebocaram navios mais velhos e de propulsão exclusivamente a vela usados para transportar tropas rio Paraná acima, ultrapassando fortificações instaladas pelas forças de Rosas na margem. O sucesso levou a um plano de aquisição mais amplo, na Inglaterra, o chamado programa de 1850, estabelecido no decreto 667 de 26 de janeiro daquele ano. Foram encomendados meios como a fragata Amazonas (aproximadamente 1.800 toneladas), ainda dotada de rodas de pás, e várias corvetas que já eram equipadas com hélices para a propulsão: Jequitinhonha, Magé, Beberibe e Viamão, e outras embarcações menores. O leitor mais atento já percebeu, entre os navios citados, alguns protagonistas da Batalha do Riachuelo, que seria travada quinze anos depois do programa que levou a essas aquisições.

O programa de 1850 refletia uma postura mais ativa do Império do Brasil frente aos vizinhos, principalmente na região do Rio da Prata, levando a Marinha Imperial a se organizar para manter uma divisão permanente naquela bacia hidrográfica, visando principalmente ações de bloqueio a Buenos Aires, se necessárias. Vale lembrar que, décadas antes, a Guerra Cisplatina incluiu justamente esse tipo de ação.  A aquisição dos meios foi aquém dos números julgados necessários, devido a limites orçamentários, mas aos poucos a quantidade de belonaves a vapor na Marinha Imperial cresceu, tomando o lugar da maioria dos velhos e já obsoletos navios exclusivamente a vela.

Maquete fragata de rodas Amazonas - imagem via NGB
Maquete da fragata de rodas Amazonas – imagem via NGB

 

Os esforços para atualizar e capacitar o Arsenal de Marinha da Corte

Ao mesmo tempo, procurou-se melhorar a capacidade do Arsenal de Marinha da Corte, no Rio de Janeiro, para a manutenção dos navios a vapor, o que já vinha sendo feito lentamente desde décadas anteriores, com oficinas dotadas de equipamento e pessoal apto a trabalhar com metais, caldeiras e máquinas (principalmente contratando operários da Bélgica e maquinistas que traziam navios a vapor encomendados à Inglaterra). Vale lembrar que, desde a Independência, a importância do Arsenal na capital do Império crescia em relação ao estabelecimento que, no período colonial, era o principal responsável pela construção de navios de maior porte (no caso, para a Marinha Portuguesa), o Arsenal da Bahia, ou Ribeira das Naus. No Rio de Janeiro, apenas uma nau de grande porte havia sido construída no período colonial, e o foco do estabelecimento manteve-se nos reparos navais. Porém, com a Independência e a necessidade de se aprestar e até reconstruir rapidamente velhos navios abandonados, preparando-os para a luta contra os portugueses, as instalações da capital foram melhoradas e seus trabalhos de manutenção ganharam ritmo bem mais intenso. Já as atividades de construção naval no Arsenal de Marinha da Corte evoluíram de forma mais lenta.

Como uma das ações para melhoria nos serviços de manutenção e, principalmente, para viabilizar a construção de novos navios de guerra no Arsenal da capital do Império, passou-se a enviar pessoal qualificado para estudar na Europa a partir de 1850. Foi o caso do jovem e promissor construtor Napoleão Baptista Level que, na volta ao Brasil em 1852 após ter estudado a construção de cascos de desenho moderno, dirigiu os trabalhos da pequena corveta Ipiranga (350 toneladas), o primeiro navio de guerra a vapor com propulsão a hélice construído no país. No final daquela década, Level já projetava e dirigia a construção de navios bem mais complexos e de maior porte, como a corveta Niterói (maior belonave até então construída no Arsenal da Corte, com mais de 1.800 toneladas), da qual falaremos em outra parte desta série.

Também foram estudar no velho continente os militares Gomes de Matos e Carlos Braconnot, que na volta assumiram os trabalhos na chamada Oficina de Máquinas do Arsenal, projetando e fabricando ali as máquinas a vapor para os novos navios que Level construía. Já no início da década de 1860, o oficial Henrique Antônio Baptista, nomeado diretor de Artilharia, foi mandado à Europa para colher dados sobre os novos canhões raiados oferecidos por fabricantes franceses e ingleses, e em especial os modelos Armstrong e Whitworth britânicos, com o objetivo de se armar com a opção julgada mais moderna e capaz os novos navios que se construíam no Brasil.

À época em que Baptista foi mandado à Europa, Level mais uma vez foi estudar na França e Inglaterra, agora visando se atualizar sobre uma grande novidade que surgia: as belonaves protegidas por couraças de ferro, tanto as que ainda traziam atrás da blindagem os tradicionais cascos de madeira quanto os cascos também construídos com estruturas e chapas de ferro.  Todo esse processo ocorreu com sua dose de problemas, algumas indecisões, seguidas de impulsos e investimentos. Mas, em geral, percebe-se uma clara insistência em manter a Marinha Imperial a par das tecnologias da guerra naval da época, em sucessivas administrações navais.

 

O impacto do combate de Hampton Roads, na Guerra Civil Americana

O novo envio de Level à Europa ocorreu na esteira de uma batalha que agitou os círculos navais no mundo: o combate de Hampton Roads, da Guerra Civil Americana, no início de 1862. O encouraçado confederado Virginia (ex-Merrimack, uma fragata de madeira e propulsão a vapor que foi apreendida pelos sulistas e depois extensamente modificada com a instalação de uma casamata encouraçada) atacou impunemente em 8 de março daquele ano os navios sem couraça da União, que bloqueavam a saída para o mar dos sulistas na Baía de Chesapeake. Esse ataque mostrou que os navios da época estavam praticamente indefesos numa situação de bloqueio contra novos encouraçados, mesmo improvisados como era o caso do Virginia.

Navios encouraçados, e de porte significativo para operações no oceano, já vinham sendo desenvolvidos e construídos pela França e Inglaterra desde 1859, mas a primeira ação bélica de um encouraçado foi a do relativamente pequeno e limitado Virginia/Merrimack. Este só não conseguiu seu intento de acabar com o bloqueio Ianque porque o Norte, sabendo meses antes das intenções do Sul, construiu às pressas seu próprio encouraçado, o famoso e inovador Monitor, que conseguiu chegar a tempo de confrontar seu oponente no dia 9 de março. A luta entre eles terminou sem vencedor, mas teve como consequências a manutenção do bloqueio nortista e a passagem da iniciativa para a União, nas futuras lutas rios acima.

Combate de Hampton Roads - tela de J O Davidson
Combate de Hampton Roads, com o Virginia/Merrimack à esquerda e o Monitor à direita – tela de J. O. Davidson

 

A capacidade de realizar o bloqueio naval, como já mencionamos, era parte da estratégia da Marinha Imperial no Prata. A Administração Naval se deu conta de que, caso um dos vizinhos do Brasil pudesse se equipar com um encouraçado, mesmo pequeno, limitado e improvisado como o navio confederado, essa missão ficaria comprometida, e junto com ela naufragaria a superioridade naval brasileira e as pretensões de hegemonia na região. A não ser que o Império também tivesse navios protegidos por couraça. Por isso, Level trouxe de volta da Europa planos para a construção de três encouraçados de bateria central para a Marinha, um dos quais (do porte de corveta, com cerca de 1.500 toneladas) seria encomendado à França no início de 1864 e outros dois, menores (abaixo de 1.000 toneladas, do porte de canhoneiras) teriam a construção a cargo do Arsenal de Marinha da Corte, embora o início das obras destes demorassem mais de um ano em relação ao batimento de quilha do primeiro.

Uma boa dose de cautela para escolher o caminho a ser tomado precedeu essas decisões e encomendas, chegando-se mesmo a montar uma comissão de alto nível para discutir o problema do reequipamento naval, face à novidade dos encouraçados. Apesar do choque causado (e relatado em documentos oficiais) pelas notícias daquele combate de Hampton Roads, e apesar do aumento exponencial das tensões no Prata à mesma época (tema que trataremos agora), demandarem iniciativas rápidas, optou-se por não tomar decisões apressadas, e quase dois anos se passaram desde que a Administração Naval se mostrou impressionada pelos acontecimentos de Hampton Roads, nos primeiros meses de 1862, e o batimento de quilha do primeiro encouraçado encomendado, no início de 1864.

No curto prazo, a Marinha teria que contar, para as ações no Prata que se descortinavam naqueles conturbados primeiros anos da década de 1860, com os navios que encomendara e se capacitara a construir e manter ao longo do decênio anterior.  Essas ações não tardariam.

 

A intervenção no Uruguai e o início da Guerra do Paraguai

O ano de 1864, que via começar na França a construção do primeiro encouraçado brasileiro, viu também nascer uma guerra civil no Uruguai. Subiu à presidência uruguaia, como consequência, um líder oposto à política Imperial, Manuel Aguirre. A resposta brasileira foi enviar 19 navios de guerra a vapor, comandados pelo vice-almirante Tamandaré, ao Prata, acompanhando uma missão diplomática – em outras palavras, a boa e velha diplomacia das canhoneiras. Nos meses seguintes, tropas foram concentradas na fronteira e acordos foram firmados com outras facções e países. Por fim, com a anuência da Argentina e os protestos do Paraguai, tropas brasileiras invadiram o Uruguai em outubro, apoiando outro líder uruguaio, Venancio Flores, disposto a derrubar Aguirre. Após combates apoiados pela Esquadra, o objetivo de colocar Flores no poder foi conseguido em 20 de fevereiro de 1865.

Por aquela época, o Paraguai havia reagido a essa intervenção brasileira, que atrapalhava seus planos de se expandir rumo ao Uruguai e dominar o Prata, invadindo Mato Grosso no final de 1864. Já no novo ano, tropas paraguaias atacavam o Rio Grande do Sul e as províncias argentinas de Corrientes e Entre-Rios.

Começava a Guerra do Paraguai, que devido aos acordos feitos entre Brasil, Argentina e Uruguai para confrontar os paraguaios, também é conhecida como Guerra da Tríplice Aliança. Um conflito gestado ao longo de 15 anos de aumento gradativo das tensões na região, acompanhado pela Marinha Imperial com um lento, porém insistente, movimento para se reequipar e se capacitar na nova tecnologia dos navios de guerra a vapor, dos cascos modernos (embora ainda de madeira, tornada obsoleta em belonaves de primeira linha já às vésperas da guerra) e dos avanços na artilharia.

Nos primeiros meses de 1865, uma divisão da Esquadra que já operava no Prata iniciou a subida do rio Paraná sob o comando de Barroso, com o objetivo de bloquear os contatos do Paraguai com o exterior. Sua capitânia era a já mencionada fragata de rodas Amazonas, incorporada em 1852, cujo calado estava no limite para navegar e combater nos estreitos e rasos canais daquela bacia. As demais corvetas, entre elas algumas das citadas no início deste texto, calavam menos, pois foram pensadas desde o início para ações na região. Canhões recém-adquiridos, raiados no sistema Whitworth (que foi o selecionado pela Marinha após o estudo das opções existentes na Europa), já equipavam parte desses navios, complementando as peças mais velhas, de alma lisa.

 

A primeira lição de Riachuelo

O encouraçado mandado construir na França também já estava flutuando desde dezembro do ano anterior, e se encontrava em fase de finalização. Esperava-se que, em poucos meses, pudesse se reunir à frota – assunto que, como já dissemos, será tratado posteriormente. Quilhas de novos navios, que se pretendia proteger por couraças de ferro, enfim eram batidas no Arsenal de Marinha da Corte naquele início de 1865. Estes eram os cenários e as expectativas. Mas o fato é que aquelas ações dos primeiros meses do ano ainda dependeriam da força adquirida e construída ao longo dos 15 anos anteriores, desde o programa de 1850. E daí vem a primeira lição de Riachuelo, antes mesmo da batalha:para lutar, é preciso se equipar. Lição óbvia, mas que muitas vezes se percebe, na História, que é esquecida.

A aquisição de equipamento naval, a capacitação para operá-lo e mantê-lo, e também para construí-lo no país, não se faz do dia para a noite. E, mesmo quando feita da melhor forma possível, os avanços tecnológicos não cessam, e é preciso continuar na atualização, sob pena da obsolescência. No exemplo em pauta, mesmo com problemas, mesmo com algumas demoras para decisões que contrastam com o choque das inovações da época, diversas ações decisivas foram implementadas ao longo dos 15 anos que antecederam a Batalha do Riachuelo, visando essas finalidades.

Porém, ficam as perguntas: as últimas ações tomadas para atualizar a Esquadra, já no início da década de 1860, trariam resultados a tempo? E como era mantida e prontificada para o combate esta força que subiu o rio Paraná e montou um bloqueio no primeiro semestre de 1865? Estes são assuntos para as próximas partes desta série comemorativa dos 150 anos da Batalha Naval do Riachuelo.

Os 150 anos de Riachuelo e suas lições, parte 2:

Quando o inimigo está à vista, o embargo ataca além do horizonte

corveta encouraçada Brasil - maquete Museu Naval RJ - foto A Galante
Maquete da corveta Brasil, primeiro encouraçado da Marinha Imperial, exposta no Museu Naval do Rio de Janeiro – foto Alexandre Galante

Fernando De Martini (texto publicado em 24 de junho de 2015)

Nesta segunda parte de nossa série comemorativa do sesquicentenário da Batalha Naval do Riachuelo, combate fluvial da Guerra do Paraguai (1864-1870) em que a vitória brasileira ajudou decisivamente a tirar os paraguaios da ofensiva e transferir a iniciativa à Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai), continuaremos focando em fatos que precederam aquele combate de 11 de junho de 1865. Em especial, as decisões relacionadas às especificações, projetos, aquisições e construção dos navios que se destinavam a atender aos interesses do Império do Brasil na região do Prata.

Como mencionamos na parte anterior, após ser impactada pelas notícias do primeiro combate entre encouraçados ocorrido em 9 de março de 1862 em Hampton Roads, na Guerra Civil Americana, a  Marinha Imperial buscou adequar seus planos de reequipamento a essa novidade que trazia implicações fundamentais na sua capacidade de manter um bloqueio naval frente a seus vizinhos do Prata.

É hora de entender com mais detalhes como se deu esse processo que poderia permitir ao primeiro encouraçado brasileiro, construído no exterior, reunir-se à divisão da Esquadra que protagonizou o combate com a frota paraguaia. É hora de falar sobre um embargo, assunto que volta e meia ressurge nas discussões sobre reequipamento naval, que hoje mesmo tem exemplos gerando manchetes de jornais pelo mundo, e que bloqueou há 150 anos a rota do nosso primeiro encouraçado rumo a Riachuelo.

 

Os planos apresentados em março de 1863, visando colocar o Brasil entre os países operadores de encouraçados

O interesse da Marinha pelos encouraçados levou, como vimos na primeira parte desta série, ao segundo envio à Europa do então primeiro construtor e capitão tenente honorário Napoleão Level, do Arsenal de Marinha da Corte, com o objetivo de novamente estudar os desenvolvimentos recentes da construção naval militar. Desta vez, o foco da viagem à França e à Inglaterra foi o estudo das novas belonaves encouraçadas. Em março de 1863, Level já estava de volta ao Brasil. Na bagagem, trouxe planos e orçamentos para três navios: uma corveta e duas canhoneiras, todas protegidas por couraças.

Segundo os planos apresentados à Administração Naval naquele início de 1863, a corveta teria cerca de 60 metros (200 pés) de comprimento entre perpendiculares, com boca de 10,6m e calado de 3,6m. Sua bateria de oito canhões, quatro por bordo, seria abrigada numa casamata à meia-nau com aproximadamente 16 metros de extensão. Este era o sistema de bateria central que se tornava preferível, à época, em relação à tradicional distribuição dos canhões ao longo de todo um costado de borda livre alta. Isso porque permitia maximizar a proteção blindada numa área menor. O projeto da casamata era creditado aos construtores Turner e Reed, com modificações realizadas por Level. A couraça de ferro, cuja espessura era prevista em 4,5 polegadas (cerca de 114mm), deveria tanto proteger a casamata quanto se estender por todo o costado (este de borda livre mais baixa que o sistema anterior), desde a linha d’água até a altura do convés principal e, no sentido oposto, até cerca de 90cm da parte submersa do casco. Essa proteção seria assentada num enchimento de madeira com espessura de 9 polegadas (aproximadamente 229mm) sobre um casco que Level recomendava que fosse construído com ferro.

É importante fazer aqui um parêntesis histórico e técnico. Era para os navios de guerra com cascos de ferro, de maior durabilidade que os de madeira (mas que necessitavam de novos métodos, máquinas e ferramentas para construir e manter), que as potências navais vinham direcionando seus esforços de desenvolvimento e construção, em especial a Inglaterra. A França já construía seus primeiros encouraçados com o casco, e não só a couraça, fabricados de ferro, embora fatores como o volume de produção do metal e a capacidade técnica de alguns de seus estaleiros fizessem demorar a transição para cascos totalmente metálicos nos navios franceses. Vale lembrar que o primeiro encouraçado britânico, o Warrior (finalizado em 1861) já tinha casco de ferro, e era uma resposta aoGloire francês (completado em 1860), cujo casco era de madeira. O primeiro encouraçado francês construído com casco também de ferro foi o Couronne, cuja construção começara ainda antes que a do Warrior, mas que só foi completado em 1862.

Encouraçado francês Gloire
Pintura do encouraçado francês Gloire (também chamado La Gloire), a primeira belonave protegida por couraça de ferro na história, ainda que seu casco fosse construído em madeira. Percebe-se que, apesar da novidade da proteção blindada, o navio mantém a tradicional distribuição dos canhões ao longo de todo o costado (sendo assim classificado como “broadside ironclad”) que seria em breve substituída pelo sistema de casamata ou bateria central. A borda livre alta (da linha d’água até o alto das amuradas) parece indicar um bom desempenho oceânico, mas o fato é que as portinholas dos canhões ficavam a menos de 2 metros da superfície, gerando embarque de água quando abertas e prejudicando o desempenho e segurança em mar aberto.

 

A França continuaria equipando sua frota com encouraçados tanto de casco de madeira quanto de ferro, ao longo dos anos seguintes, para conseguir manter um ritmo de incorporações, nessa fase de transição, que não a deixasse muito atrás dos números da frota britânica (ao final da década de 1860, a Marinha Francesa estava chegando perto, com vinte e seis encouraçados, frente aos vinte e nove da Marinha Real). Mesmo na primeira metade da década de 1870, parte dos novos encouraçados da Marinha Francesa ainda era construída com cascos de madeira protegidos por couraças de ferro, como a classe “Océan”, enquanto na Inglaterra a madeira era utilizada apenas para assentar as couraças sobre cascos (revestimento e estrutura) totalmente em ferro e, mais tarde, em aço. Posteriormente, esse enchimento também seria abolido, prosseguindo o uso do material nos cascos apenas no tradicional embono, que era um revestimento de madeira externo ao casco metálico para protegê-lo do contato direto com a água salgada e, ao mesmo tempo, separar o ferro das chapas de cobre (que desde pelo menos o século anterior vinha sendo usado como revestimento anticrosta nos cascos de madeira), pois o contato direto do ferro com o cobre causava reação eletrolítica, aumentando a corrosão. Em poucas décadas, os avanços em química permitiram trocar o embono pela aplicação, diretamente no casco de metal (já com o aço substituindo o ferro), de camadas de produtos que evitavam a corrosão e a incrustação, as chamadas tintas anticrosta. Mas esta é uma história posterior à do período que tratamos aqui.

Voltando às especificações trazidas por Level em março de 1863 para a corveta encouraçada, suas máquinas deveriam gerar 200 cavalos de força, mesma potência do maquinário que se construiu no Arsenal de Marinha da Corte para a corveta Niterói de casco de madeira (embora provavelmente já incorporasse alguns elementos estruturais em ferro) e propulsão mista (vela e vapor) incorporada naquele mesmo ano, e que já mencionamos na primeira parte desta série. Voltaremos a falar da Niterói oportunamente. Esperava-se que a nova corveta encouraçada, com esses 200 cavalos de força, superasse 10 nós quando propelida a vapor. Também seria dotada de mastros e velame para economizar carvão durante as travessias mais longas – ainda estávamos na época em que a eficiência das caldeiras e máquinas a vapor era baixa, consumindo muito em relação à potência que entregavam.

corveta encouraçada Brasil - maquete Museu Naval RJ - foto 2 A Galante
Outro ângulo da maquete da corveta encouraçada Brasil, mostrando seu eixo e hélice únicos. A configuração da casamata, formando uma bateria central de quatro canhões por bordo (havendo portinholas adicionais votadas à popa e proa, para reposicionamento das peças) pode ser apreciada na imagem – foto Alexandre Galante

Quanto às duas canhoneiras, suas dimensões externas seriam apenas um pouco menores que as da corveta, com aproximadamente 54 metros de comprimento e boca de 9 metros. Porém, pretendia-se um calado proporcionalmente bem menor, com 2,4 metros, permitido pelo fato dos pesos serem menores: a couraça era menos espessa (4 polegadas, cerca de 102mm) e a bateria era apenas metade da especificada para a corveta (quatro canhões no total, dois por bordo, havendo portinholas também à vante e à ré para reposicionar as peças, como era o caso também da corveta), resultando numa casamata proporcionalmente menor, de comprimento inferior a 9 metros. O deslocamento das canhoneiras era previsto para ser inferior a 800 toneladas, enquanto a corveta deslocaria praticamente o dobro (mais de 1.500t). Eram navios de porte bem menor que os encouraçados que se construíam na Inglaterra e França, que chegavam a quase 10.000 toneladas no caso do britânico Warrior. Porém, para operar de forma efetiva na região do estuário do Prata e rio acima, o porte era adequado (os encouraçados franceses e britânicos de grande porte, projetados em geral para batalhas no oceano, tinham calado três vezes maior que os planejados para o Brasil).

Level também trouxe da Europa as estimativas de custos dos navios, que equivaleria a pouco mais de 56.600 libras esterlinas para a corveta e de 34.500 libras para cada canhoneira, incluindo as máquinas e outros equipamentos. A intenção da Administração Naval era construir ao menos as duas canhoneiras no Arsenal de Marinha da Corte, prosseguindo a política iniciada (e bem-sucedida) desde antes da década anterior para se habilitar o Arsenal e seu pessoal na construção e manutenção de navios modernos, que agora deveriam incluir encouraçados. Para isso, seria preciso adquirir máquinas e ferramentas para trabalhar nas chapas das couraças, estimando-se um custo de 2.800 libras para a aquisição desses equipamentos.

 

A Marinha encomenda à França o primeiro encouraçado brasileiro, a corveta Brasil

Apesar da pressa ditada pela piora nas relações do Império com os vizinhos do Prata, somente em janeiro de 1864 foi encomendada a construção da corveta encouraçada, cujo casco também seria de ferro, em contrato com a companhia francesa “Forges & Chantiers de la Mediterranée”. A previsão de entrega era até janeiro de 1865 (prazo de 12 meses). As dimensões e especificações finais do navio, que seria batizado com o nome Brasil, ficaram bem semelhantes às apresentadas em 1863, sendo notado apenas um aumento razoável da potência real no eixo para 250 cavalos (o maquinário era acoplado a um eixo e um hélice, sendo que a força nominal era de 1.000 cavalos no indicador Watt). Outras especificações dignas de menção, quando da encomenda, eram a exigência de capacidade das carvoeiras para 6 dias de navegação a toda força, altura de 2,2 metros da linha d’água até o batente inferior das portinholas dos canhões (medida superior à do pioneiro e muito maior Gloire, cuja bateria principal ficava a apenas 1,9m da água), além da proa com o pronunciado formato de aríete (esporão) para abalroar outros navios.

A contratação de uma empresa da França contrastava com encomendas anteriores de navios de guerra no estrangeiro, preferencialmente feitas na Inglaterra. Isso porque as relações diplomáticas do Brasil com a Grã-Bretanha estavam rompidas devido à chamada “Questão Christie”, originada quando os britânicos exigiram uma indenização brasileira pelo desaparecimento da carga de um navio naufragado ao largo do Rio Grande do Sul em 1861. Somou-se a este fato a prisão de oficiais ingleses bêbados no Rio de Janeiro e a atuação inconveniente do embaixador britânico William Christie ao tratar esses assuntos com arrogância exagerada e exigências de punições aos responsáveis. Especialmente quando belonaves inglesas bloquearam a barra do Rio de Janeiro, capturando navios mercantes brasileiros em plena baía de Guanabara para forçar o pagamento da indenização, a opinião pública ficou muito exaltada, numa clara posição antibritânica.

Curiosamente, esses ânimos exaltados pela Questão Christie com a Inglaterra levaram a população a contribuir com fundos para a compra do primeiro encouraçado brasileiro que, como vimos, foi encomendado à França, por meio de subscrição pública. Felizmente, para a Marinha Imperial, havia a alternativa francesa ao seu principal fornecedor de navios de guerra modernos, a Inglaterra. Vale relembrar, evidentemente, que diversas belonaves com características modernas (propulsão mista vela e vapor, substituindo também as antiquadas rodas de pás por hélices) já eram construídas no Brasil, com cada vez maior conteúdo nacional, embora ainda se importasse o ferro para fabricar suas máquinas no Arsenal, e o armamento também fosse importado ou reaproveitado de navios que davam baixa. Enfim, a expectativa era que a França cumprisse os prazos para que, no início de 1865, a frota brasileira pudesse receber seu primeiro encouraçado.

Já sobre as canhoneiras encouraçadas, a serem construídas no Arsenal de Marinha da Corte, aparentemente pouco se avançou ao longo do ano de 1864, assim como para a aquisição dos já mencionados maquinários e ferramentas para trabalhar as chapas de couraça. Pode-se conjecturar que o rompimento de relações com a Grã-Bretanha tenha contribuído para prejudicar a aquisição desses equipamentos – afinal, a França ainda tinha dificuldades industriais para prover uma parcela de seus próprios estaleiros com esse maquinário (tanto que parte de seus navios encouraçados ainda possuía cascos de madeira, como vimos), quanto mais para fornecê-lo ao exterior. Mesmo assim, e apesar dos problemas diplomáticos, conseguiu-se obter na Inglaterra um pequeno lote de canhões raiados no sistema Whitworth, assim como um contrato de fornecimento de moldes e caixas para fundição de projéteis para essas armas, itens que em 1864 já estavam entregues.

Por outro lado, tentava-se variar o fornecedor de armamentos, com infrutíferas tentativas de obter canhões de grosso calibre nos Estados Unidos (que ainda se via com as demandas de sua Guerra de Secessão). O fato é que, ao longo daquele ano,  a principal ação para fortalecer a Esquadra com novos navios encouraçados estava a cargo de um estaleiro estrangeiro – embora outras ações relacionadas à frota existente, de navios com cascos de madeira, estivessem em curso. Delas trataremos em outra parte desta série.

 

A guerra e o embargo ao encouraçado

Enquanto avançava a construção da corveta encouraçada Brasil nas instalações da “Forges & Chantiers de la Mediterranée”, as tensões aumentavam na região em que o navio viria a operar. Como vimos na parte um desta série, o Império vinha buscando intervir mais, desde pelo menos a década de 1850, nos assuntos regionais frente aos vizinhos Argentina, Paraguai e Uruguai. Essa política externa cada vez mais ativa levou, como vimos, à intervenção nos assuntos internos do Uruguai, quando a guerra civil naquele país levou ao poder Manuel Aguirre, contrário à política Imperial. Tudo isso ocorria em meio a problemas que também se avolumavam na fronteira com o Rio Grande do Sul, cujos pecuaristas (estancieiros) vinham sofrendo restrições a seus negócios no país vizinho. Temia-se que essa província, que já tinha histórico separatista (Revolta Farroupilha) iniciasse por conta própria uma guerra com o Uruguai.

Porém, a decisão de intervir no Uruguai não se devia apenas aos assuntos ligados aos interesses gaúchos e à política externa mais atuante do Império, que visava reforçar o papel do Brasil no país vizinho, principalmente frente à Argentina. A política interna (como quase sempre ocorre em sua relação com a externa) também tinha um grande peso. O Império estava sob o governo de um Gabinete do Partido Liberal, que devido à Questão Christie era visto pela opinião pública como fraco nos assuntos externos – o Gabinete Conservador anteriormente no governo havia se portado com mais firmeza quanto a assuntos semelhantes, frente a potências externas. A intervenção no Uruguai era vista como uma oportunidade, para o novo Gabinete, de aplacar as críticas populares aos liberais. Mas essa intervenção trouxe consequências externas não só para a relação com os países do Prata, mas também com um país do outro lado do Atlântico, como veremos agora.

Em 23 de dezembro de 1864, descia da carreira do estaleiro francês a corveta Brasil, passando então à fase de finalização e de instalação de diversos equipamentos. Naquele mesmo mês, reagindo à intervenção do Império no Uruguai, e que ia contra os interesses expansionistas do presidente paraguaio Solano López, o Paraguai invadiu a província de Mato Grosso. Era o prenúncio (e a manobra diversionista) das invasões paraguaias que ocorreriam nos meses seguintes às províncias argentinas de Corrientes e Entre-Rios, e também à província brasileira de Rio Grande do Sul, iniciando a Guerra do Paraguai (também chamada de Guerra da Tríplice Aliança, por estar o Brasil aliado à Argentina e ao Uruguai).

Em 2 de março de 1865, a corveta Brasil já estava entregue pelo estaleiro francês à tripulação brasileira que deveria trazê-la ao Brasil, e arvorava a Bandeira do Império. Pouco mais de 10 dias antes, a intervenção no Uruguai havia terminado de maneira favorável ao Brasil, quando Venancio Flores, apoiado pelas tropas e navios do Império, tomou posse da Presidência Uruguaia. Ainda assim, em 6 de março, apenas quatro dias depois de receber o Pavilhão Imperial, a saída da corveta Brasil foi embargada pelo Governo Francês, que alegava atender aos deveres da neutralidade, seja em relação ao conflito do Império com o Uruguai (embora este já tivesse terminado) quanto com o Paraguai.

A Marinha escolhera um estaleiro francês, numa época em que as relações brasileiras com a Inglaterra estavam ruins, e agora era a vez da França colocar um obstáculo ao fortalecimento da Armada, ao embargar a saída do novo encouraçado brasileiro. Durante os três meses seguintes, enquanto uma guerra de verdade ocorria na América do Sul e a divisão da Esquadra Imperial, sob o comando de Barroso, se postava num bloqueio ao Paraguai no rio Paraná, uma batalha diplomática foi travada na Europa para retirar o embargo à vinda da nova corveta encouraçada ao Brasil. Batalha que não envolvia apenas o navio, mas outros encouraçados em construção no Velho Continente para atuar em águas sul-americanas, e que não eram encomendas brasileiras.

A continuidade desse combate de cartas e ofícios sobre as mesas dos diplomatas, enquanto estaleiros corriam contra o tempo e os meios terrestres e navais corriam contra seus adversários, é assunto para a próxima parte desta série. Ainda que os resultados dessa batalha diplomática (para a qual os resultados das batalhas reais também influenciaram) fiquem em suspenso até o próximo texto – ao menos para os leitores que ainda não conheçam os detalhes históricos – já podemos refletir sobre a narrativa acima e concluir com a segunda lição trazida pelos acontecimentos de 150 anos atrás.

corveta encouraçada Brasil em travessia - imagem via NGB
Gravura (via NGB) da corveta encouraçada Brasil em travessia, somando-se a propulsão a vapor à das velas. Para preparar o navio aos combates fluviais aos quais se destinava (mas vale ressaltar que tinha reputação de bom desempenho oceânico), retirava-se o aparato vélico e os mastros que não fossem indispensáveis aos fins de sinalização por bandeiras. Era para concretizar uma imagem como essa, do navio atravessando o Altântico rumo ao Império para reforçar a Marinha em suas operações no Prata, que diplomatas brasileiros precisaram negociar a retirada do embargo à sua saída da França, ocorrido em 6 de março de 1865.

 

A segunda lição de Riachuelo

É interessante perceber como um assunto de política externa com a Inglaterra, a Questão Christie, levou a uma repercussão negativa na política interna, que por sua vez trouxe consequências interessantes para refletirmos. Por um lado, essa repercussão negativa permitiu que parte da indignação popular fosse direcionada à captação de fundos que possibilitaram a construção de uma belonave, num fornecedor não habitual (França), para se viabilizar um meio de eventual emprego na região do Prata. Pode-se conjecturar, evidentemente, que a população estava bem menos interessada em navios para intervenções nos países vizinhos do que para a proteção do Rio de Janeiro a bloqueios, respondendo (ainda que em proporções modestas) aos mandos e desmandos que a Inglaterra demonstrava poder fazer com sua poderosa marinha, como efetivamente fez para exigir a indenização na Questão Christie. Por outro lado, a imagem negativa do Gabinete Liberal frente à população ajudou na decisão deste em intervir no Prata (invadindo o Uruguai), visando passar uma imagem de força à opinião pública interna.

A intervenção brasileira levou à decisão do Paraguai, que tinha seus próprios planos de se expandir na direção do Uruguai e conquistar o domínio da Bacia do Prata, estratégica para todos os países da região, de ir à guerra, para a qual já vinha se preparando (há vários anos quanto à ampliação e equipamento de seu Exército, e bem mais recentemente quanto à Marinha). E esse contexto de guerra na América do Sul levou a França, alegando motivos de neutralidade frente aos dois conflitos em que o Brasil se envolvera (Uruguai e Paraguai), a embargar a saída do primeiro encouraçado brasileiro, construído por um estaleiro francês. Conflitos armados, e os conflitos de interesses que geram em grandes potências (econômicos, políticos, e muitas vezes tendo como pano de fundo a relação dessa potência com outra que lhe é rival), levam frequentemente a embargos no fornecimento de material bélico. Foi o caso do encouraçado Brasil, e vem daí a segunda lição de Riachuelo, que se aprende com os fatos ocorridos poucos meses antes daquele combate naval: Quando o inimigo está à vista, o embargo ataca além do horizonte.

Hoje mesmo, há exemplo de uma intervenção de um país sobre outro levando a embargos de navios. E a própria França, que há 150 anos já era alternativa a problemas que se poderia ter com um grande produtor de armas (a Inglaterra, maior potência do século XIX) e que hoje também é vista por esse prisma (como alternativa aos Estados Unidos), protagoniza esse embargo atual: é o caso dos dois navios anfíbios classe “Mistral” encomendados aos franceses pela Rússia, cuja entrega foi suspensa após os russos intervirem no conflito separatista da Ucrânia (nota: este texto foi escrito em junho de 2015, meses antes do destino dos navios ser definido com sua venda ao Egito e ressarcimento de parte do valor à Rússia). Evidentemente, 15 décadas se passaram entre um embargo e outro, e muitos outros embargos envolvendo diversas outras potências e fornecedores de armas ocorreram nesse meio-tempo. E, provavelmente, ocorrerão no futuro ao redor do mundo.

O fato dessa situação se repetir em contextos e épocas bem diferentes, envolvendo navios encomendados à França, é uma coincidência que serve para realçar como problemas do passado podem ser reprisados no futuro, seja com este ou aquele país fornecedor, tradicional ou alternativo, de novas ou antigas relações estabelecidas, com histórico ou não de embargos. A própria Marinha do Brasil viveu uma situação similar junto a outro fornecedor pretendido, os Estados Unidos, em meados da década de 1930 (praticamente setenta anos após Riachuelo): na ocasião, tudo estava acordado para o arrendamento de seis contratorpedeiros usados da Marinha dos EUA (para permitir a baixa dos remanescentes  da nossa “Esquadra de 1910” enquanto não se construíam contratorpedeiros novos) e ruidosos protestos da Argentina, ainda que sua Armada fosse à época muito mais poderosa que a brasileira, levaram o acordo a ser desfeito. A situação acabou, felizmente, sendo aproveitada por brasileiros e americanos, interessados em ampliar suas relações às vésperas da Segunda Guerra Mundial, para aprofundar o apoio destes últimos à construção de contratorpedeiros no Brasil, em especial na virada das décadas de 1930-40.

Este exemplo da década de 1930 mostra que, quando o embargo ataca além do horizonte, o que importa é ter capacidade local para encontrar alternativas e manter abertas as possibilidades de negociar, internacionalmente, para contornar a situação. Isso desde que, obviamente, se tenha como foco o objetivo maior, que é o reequipamento e modernização dos meios navais (embora a lição se preste às outras forças). O exemplo também mostra que embargos podem ocorrer a qualquer momento, com qualquer fornecedor, fazendo seu ataque desde além do horizonte – e é preciso não esquecer as lições do passado para se manter pronto a enfrentar esse tipo de risco.

O que importa, para a continuidade da nossa reflexão, é voltar aos acontecimentos de 150 anos atrás e ver como a situação do embargo à saída do primeiro encouraçado brasileiro foi enfrentada, além de abordar outros assuntos interligados a essas negociações que ocorriam em meio aos primeiros combates da Guerra do Paraguai. Este é um tema para a próxima parte desta série comemorativa do sesquicentenário da Batalha Naval do Riachuelo.

Nota – Os dois textos acima não seguem padrões acadêmicos, portanto optamos por não inserir notas de rodapé ou entremear a narrativa com citações e referências à bibliografia e documentação consultadas e analisadas – estas constam do artigo acadêmico disponibilizado nos links abaixo.

 

Os 150 anos de Riachuelo e suas lições, parte 3:

‘A Corrida pela tecnologia para controlar o Prata, na rota de Riachuelo’

Batalha Naval do Riachuelo - gravura de Carlos Linde de 1865 exposta no Itau Cultural - SP
Batalha Naval do Riachuelo – fotografia de gravura realizada por Carlos Linde em 1865, mesmo ano daquele combate naval, exposta no Itaú Cultural – SP

Número 22 da revista de divulgação acadêmica da Marinha trouxe a segunda parte de dossiê da publicação sobre os 150 anos da Batalha do Riachuelo, incluindo artigo do historiador Fernando De Martini, editor do Poder Naval / Forças de Defesa

Os 150 anos da Batalha Naval do Riachuelo, celebrados em 11 de junho de 2015, foram tema de dossiê dividido em duas partes da revista de divulgação acadêmica da Marinha do Brasil, a Navigator. A parte 1 foi publicada em junho daquele ano (vol 11, n.21), e a segunda em dezembro. A parte 2 do dossiê traz entre seus artigos um de autoria de Fernando De Martini, historiador (com mestrado em História defendido em 2014 e doutorado em andamento) e membro do corpo editorial da “trilogia” Forças de Defesa, com o título “A Corrida pela tecnologia para controlar o Prata, na rota de Riachuelo.

capa navigator 22O dossiê foi publicado em duas partes, segundo a organizadora Edina Laura Costa Nogueira da Gama, devido ao grande número de artigos de qualidade que atenderam à chamada da revista, que tem a classificação B3 no Qualis da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Nas palavras da organizadora, a resposta “traduziu-se em artigos preciosos para a historiografia brasileira, em especial à história marítima e naval, com novas leituras, renovação dos estudos históricos, abordagens inéditas e originais para o tema”.

Para acessar o texto de apresentação desta edição da revista, em que são abordados os dez artigos sobre os 150 anos de Riachuelo que compõem o dossiê,clique aqui.

página artigo Fernando De Martini - Navigator 22Sobre o artigo de Fernando De Martini, um dos três que analisam os aspectos tecnológicos da guerra, a organizadora escreveu que o autor “considera a Batalha Naval do Riachuelo sob o ponto de vista da corrida pela tecnologia naval dos dois lados beligerantes. E que se iniciara nos anos imediatamente antes da guerra, com a busca do uso de navios encouraçados para suas forças navais, já visando um combate naval naquele teatro de operações.”

CLIQUE AQUI para acessar a página com todos os artigos deste número 22 da Navigator ou AQUI  para baixar especificamente o artigo “A Corrida pela tecnologia para controlar o Prata, na rota de Riachuelo” em pdf. Já para acessar o número anterior (21) com a primeira parte do dossiê, clique aqui.

Outro artigo acadêmico do autor, publicado no ano passado na revista Antíteses (Qualis A2), também foi divulgado no Poder Naval (clique aqui para acessar matéria a respeito). A dissertação de mestrado do autor desta série pode ser acessada clicando aqui.

Sobre a Navigator

A Revista Navigator (Qualis B3), com periodicidade semestral, é dirigida a professores, pesquisadores e alunos de História e tem como propósito promover e incentivar o debate e a pesquisa sobre temas de História Marítima no meio acadêmico. É uma publicação oficial da Marinha do Brasil, apoiada por um Conselho Editorial e um Conselho Consultivo, ambos presididos pelo Vice Almirante Armando de Senna Bittencourt.

Nota: recomendamos que o acesso ao artigo “A Corrida pela tecnologia para controlar o Prata, na rota de Riachuelo” seja feito no site da revista Navigator, e recomendamos também a leitura dos demais artigos dos dois dossiês (números 21 e 22 da revista) sobre os 150 anos da batalha, nos links disponibilizados acima. Porém, como no ano passado alguns leitores experimentaram dificuldades em baixar o artigo, arquivamos o arquivo pdf do mesmo no próprio Poder Naval, com acesso aqui.

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