80 anos do Monitor Parnaíba – segunda parte
Na década de 1930, um novo Programa Naval incorpora um novo monitor
Por Fernando “Nunão” De Martini (adaptação e atualização da matéria publicada na revista Forças de Defesa número 8, em 2013)
Além dos combates da Revolução Constitucionalista, 1932 entrou para a história da Marinha devido à abertura de crédito pelo chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, para um Programa Naval. Porém, no início a lista de aquisições não incluía nenhum monitor. Pode-se dizer que a “culpa” pela entrada do futuro Parnaíba no programa deve-se ao Pernambuco, tanto por sua presença no conflito de 1932 quanto por sua ausência em outras crises.
A decisiva participação do Pernambuco nos combates de 1932 foi destacada pelo então ministro da Marinha, contra-almirante Protógenes Pereira Guimarães, em seu relatório sobre as atividades daquele ano. Um ano antes, o mesmo ministro havia considerado quase nulo o valor dos navios da Flotilha, inferiores às canhoneiras que o Paraguai havia adquirido recentemente (no que não estava de todo errado), e que a instalação de Aviação Naval na região seria mais útil que a Flotilha.
Porém, os combates de 1932 demonstraram não só a importância daqueles velhos navios, e do monitor em especial, como sua capacidade de se defender, mesmo improvisadamente, de ataques aéreos. A Aviação Naval começou a ser provisoriamente instalada em Ladário, mas sua instalação definitiva só veio décadas depois.
Ao mesmo tempo, o Pernambuco entrava novamente em reparos, ausentando-se das patrulhas de manutenção da neutralidade ocasionadas pela Guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolívia, o que o ministro Protógenes relatou em 1935. Ficou evidente que só um monitor não bastava para assegurar a presença da Marinha na região, levando em conta também o temor de que, com o Brasil fraco na região, a Argentina pudesse dominar com facilidade a Bolívia e o Paraguai. O ministro assinalou, em 1935, que o Programa Naval de 1932 não havia cogitado navios para a Flotilha de Mato Grosso, mas que isso estava se tornando uma questão urgente.
Estado-Maior da Armada, Rio de Janeiro, 5 de maio de 1935: ofício nº 57 do Estado-Maior da Armada ao ministro da Marinha estabeleceu as características principais de um novo monitor. A data marca a entrada em definitivo desse tipo de navio no Programa Naval de 1932, que vinha sendo atualizado nos últimos anos. Um tipo denominado “Pernambuco aperfeiçoado” entrou no fim da fila de uma lista mínima (depois ampliada) de 2 cruzadores, 9 contratorpedeiros, 6 submarinos, 6 navios mineiros e 3 navios-tanque, visando substituir a maior parte da cansada “Esquadra de 1910”. Pretendia-se modernizar os dois encouraçados com caldeiras queimando óleo ao invés de carvão (apenas um terminou o processo).
A maior urgência era a substituição dos contratorpedeiros que acumulavam mais de 20 anos de uso (adquiridos numa época em que a vida útil de “destroyers” era de 10 anos), com manutenção cada vez mais cara e demorada. O desgaste ficou patente nas dificuldades para mantê-los em rodízio no bloqueio do porto de Santos em 1932. Também havia prioridade em substituir os três submarinos recebidos em 1913-14, muito pequenos e ultrapassados. Em seguida, esperava-se obter novos cruzadores, pois os dois cruzadores leves de 1910 (também chamados de “scouts”), ainda que em bom estado, estavam obsoletos. O objetivo, ora explicitado, ora não, era recuperar o equilíbrio em relação ao Poder Naval da Argentina, que vinha incorporando contratorpedeiros e cruzadores de último tipo.
Quanto ao Programa Naval de 1932, antes mesmo das ações navais daquele ano o governo já havia atendido à Marinha, abrindo crédito de doze parcelas anuais de 40 mil contos de réis em 11 de junho de 1932. Uma concorrência entre estaleiros estrangeiros foi aberta, com propostas recebidas em 1934. Mas por que um governo pós-Revolução de 30, que dizia incentivar a indústria nacional, compraria navios no exterior como fez a “República Velha” que tanto criticava? Por um lado, havia urgência, e a fase de maior empenho em prol da indústria (especialmente siderúrgica) ainda estava por vir. Por outro lado, deve-se analisar a capacidade real de construir no país. Dissemos acima que o Arsenal do Rio de Janeiro ficou “parado no tempo” por décadas, e isso se devia à demora em preparar novas instalações. Em 1906, quando encomendou a “Esquadra de 1910”, o então ministro Alexandrino de Alencar decidiu transferir o Arsenal para a Ilha das Cobras, bem em frente ao antigo. A principal obra seria um grande dique capaz de docar os encouraçados encomendados. Alguns aterros abririam espaço para novas oficinas, transferindo para lá as atividades. O objetivo inicial era apenas melhorar a manutenção da Esquadra, e não exatamente construir navios. As obras se atrasaram devido à Primeira Guerra Mundial e a dificuldades financeiras (um dique flutuante foi adquirido para cobrir a lacuna) e os trabalhos só ganharam ritmo na década de 1920.
Em 1922, foi contratada uma Missão Naval Americana que, pelas décadas seguintes, prestou consultoria à Marinha. Com a Missão, engenheiros dos EUA começaram a contribuir nas revisões do projeto do novo Arsenal, que passou a prever pequenas carreiras de construção. Já em 1928, quando o dique ficou pronto, uma extensa revisão no projeto das instalações levou à configuração final, que incluiu uma grande oficina de obras estruturais e duas carreiras, uma delas capaz de construir até cruzadores. O então chamado Novo Arsenal de Marinha da Ilha das Cobras se transformou na maior obra governamental das décadas de 1920 e 1930, a única a não ser paralisada devido às medidas de austeridade implantadas após a Revolução de 30 (decorrentes da Crise de 1929). Ainda assim, houve cortes que diminuíram o ritmo. Em meados anos 1930, era previsto que apenas os reparos de navios seriam atendidos no curto prazo, e que as instalações só poderiam iniciar a construção de navios por volta de 1945. Como a renovação do Poder Naval não poderia esperar mais de dez anos para começar, foi feita a concorrência com estaleiros estrangeiros.
Eram esses os prognósticos quando da concorrência de 1934. Dois problemas surgiram, porém. O primeiro foi o alto custo das propostas recebidas. O equivalente em moeda estrangeira ao crédito anual de 40 mil contos não daria para atender a mais de uma urgência ao mesmo tempo (por exemplo, somente a compra de submarinos comprometeria três anos seguidos de créditos, atrasando outras aquisições). Numa “canetada” de 1934, tentou-se resolver a situação aumentando o crédito anual para 60 mil contos de réis (em oito parcelas anuais ao invés de dez), mas isso não resolvia a segunda questão: conseguir moeda forte equivalente para as aquisições, pois não se compram belonaves no estrangeiro com contos de réis, e sim com libras e dólares. A Crise de 1929 “secou” o comércio exterior e escasseou as divisas, inviabilizando boa parte das compras, mesmo as que utilizavam formas em voga como o comércio de compensação (grosso modo, trocas de mercadorias com pagamentos nas moedas locais).
Na análise das propostas concorrentes, percebeu-se a grande parcela de custos atribuída à mão-de-obra, havendo também significativa variação de país para país. Percebeu-se que o custo da mão-de-obra no Brasil era bem mais baixo, com a vantagem de ser pago em contos de réis, ao invés da escassa moeda estrangeira. Se fosse possível combinar encomendas de navios no exterior com a construção local, ainda que utilizando material importado, o custo para renovação do material flutuante seria aceitável, sem significar uma proibitiva evasão de divisas. Em 11 de junho de 1934, essa opção foi sacramentada por decreto, que estabeleceu a construção no Brasil de três dos nove contratorpedeiros planejados.
Quanto à mão de obra especializada, desde o início da década já havia gente suficiente trabalhando na modernização do encouraçado Minas Gerais. Eram operários demitidos da Companhia Nacional de Navegação Costeira e reaproveitados no Arsenal. Com o fim dessas obras, as equipes estariam disponíveis para começar a construir navios de guerra. Restava tomar atitudes para conseguir antecipar, e muito, o início das atividades de construção no novo Arsenal.
Ministério da Marinha, Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1935: o vice-almirante Henrique Aristides Guilhem assumiu o cargo de ministro da Marinha, disposto a resolver a questão do reaparelhamento naval. Ao longo dos meses anteriores, quando ainda chefiava o Estado-Maior da Armada (EMA), Guilhem já vinha se antecipando às necessidades de ativar a construção naval no novo Arsenal, realizando reuniões em que seu maior aliado era o capitão-de-mar-e-guerra Júlio Regis Bittencourt, então vice-diretor de Engenharia Naval. Um mês após assumir o ministério, Guilhem designou Bittencourt para ajudar a Diretoria de Obras do Novo Arsenal de Marinha (DONAM) a prontificar as carreiras e a equipar a oficina de trabalhos estruturais – à época o maior galpão industrial do Brasil, mas ainda vazia.
Até então, as obras do Arsenal eram realizadas em várias frentes simultâneas, sob a direção do contra-almirante engenheiro naval Octavio Jardim. Essa linha de ação buscava evitar que o projeto original sofresse cortes definitivos em alguma área não iniciada, em caso de mudança radical no governo. Assim, ao invés de terminar um setor para iniciar outro, tudo era feito ao mesmo tempo para garantir o conjunto, ainda que isso retardasse o prazo das operações iniciais. Com a necessidade de começar logo a construção de navios, a atenção dos engenheiros e operários foi focada nas carreiras e na grande oficina, ao invés de se dividir em várias frentes. Isso permitiria atender ao prazo ordenado pelo ministro Guilhem: começar a construir o primeiro navio na Data Magna da Marinha (Batalha do Riachuelo) do ano seguinte. Em outras palavras, em 11 de junho de 1936 seria batida a quilha do “casco número 1” do novo Arsenal.
E que navio seria o pioneiro? Como vimos, as prioridades do Programa Naval eram contratorpedeiros e submarinos. Para estes últimos, negociações resultaram no redirecionamento ao Brasil de três unidades italianas em construção. Para os contratorpedeiros, foi possível encomendar seis à Inglaterra, após um longo processo de viabilização financeira. Quanto aos três contratorpedeiros a serem construídos no Brasil (conforme decreto de 1934), conseguiu-se a um preço simbólico, junto à Marinha dos EUA, os planos da classe “Mahan”. A princípio, esses eram os navios prioritários para o início da construção do Arsenal, mas tratava-se de contratorpedeiros de último tipo e que incorporavam técnicas construtivas como a solda elétrica, ainda novidade mesmo nos maiores estaleiros do mundo. Além disso, eram obras relativamente grandes (1.500 toneladas de deslocamento leve) quando se leva em conta a retomada de uma atividade interrompida há décadas, e cujo último expoente foi um pequeno monitor de menos de 500 toneladas, o Pernambuco. Os riscos de falhas e atrasos levarem ao descrédito e ao desânimo seriam grandes, caso se iniciasse as atividades com esses três contratorpedeiros.
A solução seria “passar do mais simples para o mais complexo”, nas palavras do ministro Guilhem. De todos os tipos previstos no Programa Naval, havia um navio de menor porte, de emprego fluvial, e que entrara na lista pela “porta dos fundos”, em último lugar. Poderia ser construído com riscos controlados, usando técnicas consagradas como a rebitagem, e foi considerado o navio ideal para se começar “do mais simples” (embora essa simplicidade se revelasse, mais tarde, repleta de complexidades e desafios). Era o monitor do tipo “Pernambuco aperfeiçoado” para a Flotilha de Mato Grosso. Era o futuro monitor Parnaíba.
VEJA NA TERCEIRA PARTE: O navio que não poderia falhar: projetando, construindo e incorporando o monitor ‘Parnaíba’ (clique para acessar)
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