‘Eu abati o Almirante Yamamoto’
Um piloto de P-38 narra a missão de ataque contra o famoso almirante japonês
A verdade desconhecida sobre uma das grandes façanhas aéreas da Segunda Guerra Mundial, a caçada efetuada por um grupo de P-38’s Lightning ao avião que transportava o Almirante Yamamoto – Comandante-chefe do Estado-Maior de guerra japonês, é aqui narrada por THOMAS G. LANPHIER JR. Coronel Reformado da Força Aérea dos EUA
Era um dia de chuva fina no Cemitério de Arlington, nos arredores de Washington, e um vento frio sacudia a bandeira norte-americana que envolvia o esquife de meu irmão. A beira da sepultura achavam-se meu pai e minha mãe, meu outro irmão, Jim, e eu. A Segunda Guerra Mundial tinha terminado havia quatro anos, mas o corpo de meu calmo e bravo irmão caçula, Charles, só agora viera do Pacífico Sul. Enquanto eu ouvia as tristes e solenes palavras do capelão, meditei sobre a maneira como a minha vida e a de meu irmão se haviam ligado a uma remota ilha do Arquipélago de Salomão – a sinistra Bougainville, em forma de violino – e a um homem que nenhum de nós jamais viu: o Almirante Isoroku Yamamoto, Comandante-Chefe da Marinha de Guerra Japonesa.
Quando Pearl Harbor mergulhou os Estados Unidos na guerra, era quase inevitável que Charlie e eu nos tornássemos pilotos, uma vez que papai fora um dos oficiais aviadores pioneiros do Exército na Primeira Guerra Mundial. Charlie ainda estava treinando como piloto de caça para o Corpo de Fuzileiros Navais, quando fui mandado para Guadalcanal com um esquadrão de P-38 do Exército. Então, num dia de março de 1943, guando voltava de uma patrulha de combate, ouvi uma voz conhecida no rádio. Era Charlie! Ele também estava no ar sobre Guadalcanal, regressando de uma missão. Durante as semanas seguintes nossos caminhos se cruzaram frequentemente. Uma vez chegamos a lutar com a mesma formação de Zeros; de outra feita ajudei a recolhê-lo quando teve de saltar de paraquedas sobre Santa Isabel, outra das Ilhas Salomão, em poder dos japoneses. Mas essa é outra história . . .
Guerra ou Assassinato?
No fim da tarde de 17 de abril de 1943, recebi ordem de me apresentar ao abrigo de operações do Campo Henderson. Cheguei com o Major John Mitchell, comandante do 339º Esquadrão de Caça e o maior ás em Guadalcanal. Ao penetrarmos no abrigo bolorento, percebemos instantaneamente que algo de grande se preparava. A maioria do pessoal mais graduado da ilha estava ali. Com uma expressão no rosto que traía o seu estado de tensão, um Major dos Fuzileiros Navais entregou-nos um telegrama marcado “ultrassecreto”. Yamamoto e oficiais superiores de seu Estado-Maior deviam chegar a Bougainville em 18 de abril, dizia a mensagem. “O 339º Esquadrão de P-38 deve, a todo custo, localizar e destruir. O Presidente atribui importância extrema a esta operação”.
Prosseguia dizendo que Yamamoto e seu Estado-Maior estariam voando em dois bombardeiros escoltados por seis Zeros, e depois dava um horário minucioso de voo. Estava assinado “Frank Knox” – o Ministro da Marinha dos Estados Unidos. Não era de admirar que houvesse tensão no ar. Yamamoto não era somente o chefe da Marinha Imperial Japonesa: era também o arquiteto do traiçoeiro ataque a Pearl Harbor que invalidara a esquadra norte-americana do Pacífico e custara cerca de 2.000 vidas. Mitchell e eu entreolhamo-nos. Bougainville ficava a 500 quilômetros. Nossos Lockheed Lightnings eram os únicos aviões em Guadalcanal com alcance suficiente para interceptar o Almirante.
Yamamoto, então com 59 anos, era um oficial atarracado, de rosto impenetrável, o homem que construíra a moderna armada japonesa. Ele aperfeiçoara as técnicas de combate noturno e de lançamento de torpedos que tanto custaram em navios norte-americanos perdidos. Pioneiro da aviação, ajudou a criar o mortífero Zero, e sua confiança no navio-aeródromo contribuíra muito para revolucionar a guerra naval. Ironicamente, Yamamoto era fervoroso admirador dos Estados Unidos. Ele fora excelente aluno na Universidade de Harvard e um adido naval muito popular em Washington. Falava inglês fluentemente, gostava de pôquer e de baseball. De fato, elementos ultra militaristas do Japão consideravam-no tão pró Estados Unidos que, de certa feita, foi ameaçado de assassinato. No entanto, quando o Exército obrigou o Japão a guerrear os Estados Unidos, Yamamoto dirigiu a Marinha com habilidade e devotamento característicos.
A decisão de atacar o avião dele não foi tomada irrefletidamente. A oportunidade apareceu como resultado de um dos maiores segredos da guerra – o fato de os criptógrafos norte-americanos terem desvendado o código japonês, permitindo-nos decifrar as mensagens secretas do inimigo. Quando se soube que Yamamoto viria colocar-se ao alcance de um ataque, o Presidente Roosevelt foi consultado. Assim também o Chefe de Operações da Marinha, Almirante Ernest J. King. Aquilo seria guerra ou assassinato? A verdadeira questão, todos concordaram, foi levantada pelo Almirante Chester W. Nimitz: ‘O Japão tem alguém para substituí-lo?’ O consenso foi que não tinha. Uma vez que Yamamoto era elemento vital no esforço de guerra inimigo, tinha de ser eliminado.
No abrigo de Guadalcanal houve uma discussão acesa quanto a melhor maneira de cumprir a missão. Yamamoto era esperado na grande pista de pouso de Kahili, em Bougainville, às 9h 45m da manhã seguinte; finalmente decidimos interceptá-lo em voo 10 minutos antes, num ponto 56 quilômetros ao norte dali. Era uma jogada com escassas probabilidades. Tínhamos apenas 18 aviões para a missão e os nipônicos tinham mais de 100 em Kahili. Ademais, mesmo com tanques de gasolina suplementares, nossos aviões não poderiam levar gasolina suficiente para ficar à espera, sobrevoando a área visada.
A missão exigiria precisão cronométrica para ter a mínima probabilidade de sucesso. Mais tarde, numa elevação de terreno relvado perto do campo de aviação, o Major Mitchell deu instruções ao nosso grupo. “A decolagem será às 07h25”, disse. “Minha seção de 14 aviões ficará a 6.000 metros para tomar conta dos caças de Kahili. A seção de Lanphier, com quatro aviões, ficará a 3.000 metros para a interceptação.”
Um oficial do serviço de informações do Exército explicou-nos quanto Yamamoto era importante para a Marinha Japonesa, e que golpe seria a sua perda para o moral do inimigo. “Ele é um perfeccionista”, acrescentou o oficial. “Nosso serviço de informações chama atenção para a pontualidade dele. Vocês têm de ser pontuais”. Domingo, 18 de abril, amanheceu claro mas úmido em Guadalcanal. Enquanto eu taxiava sobre a enlameada esteira de aço da pista recebi um aceno e um sorriso do meu ala, o Tenente Rex Barber. Exatamente às 7h25, Mitchell partiu pela pista afora e elevou-se no céu. Eu e Barber seguimo-lo.
Mas dos outros aviões do meu grupo, um estourou um pneu na pista e os tanques da barriga do segundo não estavam alimentando bem. A missão começara havia apenas minutos e já tínhamos perdido dois aviões. Com um aceno de mão Mitchell mandou seu segundo elemento – os Tenentes Besby Holmes e Raymond Hine – reunir-se a mim. Rumamos todos para o norte, voando quase rente às ondas para escapar à localização pelo radar japonês. Voávamos num arco em ziguezague, dirigindo-nos para o nosso ponto de encontro em Kahili.
Sentindo Frio Sob o Sol
Enquanto voávamos sob o ofuscante Sol da manhã, nossos 16 Lightnings bem agrupados mantinham o rádio sob rigoroso silêncio. Durante a maior parte de duas horas não avistamos terra. Eu sentia na boca do estômago o frio que é comum antes do combate. Aprendera, em quase 100 missões de guerra, que há graus de coragem; há certos dias em que o piloto está mais disposto a arriscar a vida do que em outros. Nesse dia, eu sentia que todos nós estávamos decididos a arriscar tudo. Finalmente vimos as Ilhas do Tesouro no horizonte, a noroeste. Então Bougainville apareceu em frente, uma ilha grande cuja selva emaranhada se debruçava sobre a água. Ao transpormos o contorno do litoral, Mitchell colocou seu avião num voo cabrado a toda velocidade, conduzindo sua seção para 6.000 metros: Meu grupo, logo atrás, subiu até 3.000 metros.
Olhei o relógio no painel de instrumentos – 9h33 da manhã. Faltavam dois minutos. 9h34 – um minuto para o objetivo. Enquanto subíamos, vasculhei a imensidão do céu, nada vendo senão algumas nuvens cúmulos. A qualquer momento certamente seríamos descobertos por aviões japoneses chegando ou saindo de Kahili. Onde estava o pontual Almirante? Um instante depois um piloto da seção de Mitchell rompeu o silêncio. “Inimigo. Oitavado à esquerda e no alto”, disse calmamente. Com efeito, a distância havia uma formação de pontinhos pretos em V. Ao se aproximarem, distingui: dois bombardeiros bimotores, camuflados de verde, escoltados por seis Zeros. Meu relógio indicava 9h35 – o Almirante estava exatamente no horário! E nós também. O esforço conjugado de inúmeras pessoas tinha-nos posto naquele ponto preciso do vasto céu do Pacífico no momento justo. Agora dependia de nós.
Torrente de Balas
Larguei meus pesados tanques de barriga e preparei-me para atacar. A frente e acima, a formação japonesa voava em nossa direção, ainda alheia à nossa presença. Subitamente a nossa sorte sofreu um contratempo: Holmes, o líder do meu segundo elemento, não conseguia soltar seus tanques de barriga. Com safanões e guinadas no avião tentou desprendê-los, fez uma curva ao longo da costa; seu ala, Hine, não teve outro jeito senão ficar com ele. Agora Barber e eu teríamos de executar a missão sozinhos.
Estávamos a uns 1.500 metros em frente da formação japonesa e aproximando-nos rapidamente quando os Zeros nos descobriram. Largando seus tanques de barriga, eles subiram e vieram sobre nós para obrigar-nos a nos desviarmos. O bombardeiro da frente mergulhou rumo à selva, enquanto o segundo subia em chandele diretamente contra nós. Quando mergulhei sobre o primeiro bombardeiro, três Zeros caíram verticalmente em cima de mim. Puxei para trás a coluna de comando, apontando minhas armas contra o Zero da frente. Quase colidimos de frente antes de a torrente de balas das minhas armas arrancar uma das asas dele.
O Zero rodopiou abaixo de mim, deixando um rasto de labaredas e fumaça. Nesse momento, numa subida quase vertical, pus meu avião de dorso e procurei o bombardeiro que eu perdera de vista na confusão. O pânico total faz maravilhas com a visão da gente. Num relance vi Barber trocando tiros com uns Zeros enquanto outros dois Zeros apontavam para mim. Depois vi uma sombra verde riscando por cima da selva lá embaixo o bombardeiro, quase raspando nas árvores.
Segui-o até ao nível da copa das árvores e comecei a disparar uma longa rajada constante. A asa e o motor direitos do bombardeiro começaram a arder.
Então a asa caiu e o bombardeiro espatifou-se na selva. Nessa altura, Barber tinha abatido o outro bombardeiro no mar. Era hora de abandonar o campo. Parti por cima da selva aos ziguezagues, tentando despistar os Zeros que vinham no meu encalço. De repente fui cegado pelo pó – sem querer eu tinha passado por cima de um canto do campo de pouso de Kahili. O pó estava sendo levantado pelos enxames de caças japoneses que decolavam às pressas. Então imprimi ao meu Lightning a velocidade de subida para a qual fora construído e aos poucos afastei-me dos Zeros.
Penas de Pavão
Foi um voo de regresso cheio de ansiedade, com alguns aviões atingidos por balas e todos nós com a gasolina acabando. Fui o último do grupo a pousar e meu tanque de combustível estava vazio quando parei. Uma multidão de pilotos, mecânicos, fuzileiros navais e soldados subiu pelo avião, arrancando-me da nacela e dando-me tapas nas costas, a tal ponto que me senti como o jogador de futebol que acaba de fazer o gol da vitória. Barber também fora bem sucedido. Além do outro bombardeiro ele derrubara dois Zeros. Perdemos um homem: Ray Hine, bom amigo e piloto de primeira.
Naquela noite foram-nos servidos bifes, brotos de bambu e cerveja gelada com os cumprimentos do General ‘Lightnin’ Joe’ Collins. Houve uma mensagem do Almirante ‘Bull’ Halsey, comandante das forças navais norte-americanas no Pacífico Sul: “Parabéns Major Mitchell e seus caçadores”, dizia ela. “Parece que um dos patos era um pavão.”
Ironia da Guerra
Só depois da guerra soubemos dos resultados completos da nossa missão. O bombardeiro abatido por Barber caíra no mar, e os Almirantes Ugaki e Kitamura foram recolhidos, gravemente feridos, do meio dos destroços. O outro bombardeiro foi encontrado na selva e nele o corpo do Almirante Yamamoto, ainda agarrado à espada protocolar. Quando suas cinzas foram devolvidas a Tóquio, milhões de japoneses compareceram ao enterro oficial. Foi a maior exibição de luto nacional por um Almirante desde o sepultamento, em Londres, do Visconde Horatio Nelson, que morreu em Trafalgar.
Um mês após a morte, a Rádio de Tóquio finalmente admitiu que ele havia sido morto. Mas durante o resto da guerra os Estados Unidos não revelaram pormenores. Houve duas razões para esse silêncio. Uma, a de temer-se que a interceptação meticulosamente planejada fizesse o inimigo perceber que seu código havia sido desvendado. A outra foi, para mim, pungentemente pessoal. Exatamente dois meses depois daquele acontecimento, meu irmão Charlie, que então tinha quatro Zeros a seu crédito, comandou uma esquadrilha de oito Corsairs numa incursão de metralhamento contra o mesmo campo de Kahili, em Bougainville.
Ele foi abatido quase no local onde eu derrubara Yamamoto. Charlie, entretanto, sobreviveu, e foi enviado para um campo de prisioneiros em Rabaul. Nosso governo não revelou que eu matara Yamamoto por temer que os japoneses usassem represálias contra Charlie. Ele morreu em Rabaul de gangrena – apenas duas semanas antes de os fuzileiros navais libertarem a prisão.
Enquanto estive ali com minha família sob a chuva em Arlington, durante os serviços fúnebres de Charlie, compreendi melhor do que jamais compreendera a tragédia e a futilidade da guerra. Que ironia, pensei, eu ter abatido o Almirante Yamamoto sobre Kahili – e Charlie ter sido abatido quase no mesmo lugar. E perguntei-me, tristemente, se a Humanidade, que pelo raciocínio chegou ao átomo, não poderia um dia descobrir pelo mesmo raciocínio um caminho para uma paz de verdade.
FONTE: Thomas G. Lanphier Jr. – texto compilado por Vitor Albuquerque