A mudança no cenário estratégico naval em 20 anos – 1998-2018
‘A roda da história faz um círculo completo’
Por Ian Ballantyne, fundador e editor da revista WARSHIPS International Fleet Review
Este ano é o vigésimo aniversário da primeira edição da revista WARSHIPS IFR, publicada em abril de 1998, e uma pesquisa sobre o conteúdo daquele número, revela um mundo radicalmente diferente daquele em que vivemos hoje. Haviam se passado apenas sete anos do fim da Guerra Fria, o mundo nunca pareceu tão em paz, com a ameaça de aniquilação nuclear finalmente aliviada e os valores liberais ocidentais aparentemente ascendentes em todo o mundo.
A outrora poderosa ex-Marinha Soviética era um casco enferrujado, com a sua mais notável frota na enseada de kola ou amarrada no porto e raramente, ou nunca, vista no mar. A China ainda estava olhando para dentro quando se tratava de questões de defesa.
Ela possuía uma frota velha, não muito forte ou aventureira, mas era uma marinha numerosa. As frotas da OTAN – a aliança militar ocidental que manteve a linha por 40 anos antes da queda do Muro de Berlim em 1989 estavam em estado de redução gradual para alcançar o “dividendo de paz” que seus governos sentiam que era devido.
Restava apenas uma zona de guerra quente onde as marinhas estavam envolvidas de maneira importante e que estava no golfo da Arábia. Os super porta-aviões da Marinha dos EUA estavam prontos para lançar ataques aéreos para persuadir Saddan Hussein a obedecer às inspeções de especialistas em armas das Nações Unidas, para garantir que ele não possuísse armas de destruição em massa (WND).
No geral, o mundo parecia ter alcançado um lugar abençoado onde o comércio global florescia ao longo de rotas marítimas livres de ameaças e as viagens aéreas eram baratas, onde as antigas inimizades da Guerra Fria haviam se dissolvido. As marinhas pareciam não ser muito necessárias, com seus navios de aço e armas de guerra em descompasso com a plácida Nova Ordem Mundial, atingida pelo estabelecimento da Pax Americana através da única marinha remanescente com hiperpotência.
A declaração de missão que escrevi para apresentar a primeira edição apontava, no entanto, que as marinhas continuavam a influenciar eventos geopolíticos, muitas vezes invisíveis e desconhecidos. Acrescentava: o objetivo desta revista é esclarecer as atividades das marinhas, comentar e observar o seu desenvolvimento contínuo.
A WARSHIPS IFR permaneceu fiel a esse objetivo nas últimas duas décadas e não demorou muito no final dos anos 90, antes do primeiro marco de conflito no longo caminho para o mundo problemático de hoje. Logo depois de ataques aéreos liderados pelos EUA e bombardeios de mísseis de cruzeiro ao Iraque – para tentar eliminar a alegada ameaça residual de armas de destruição em massa (WMD – Weapons of Mass Destruction) – a OTAN no verão de 1999 engajou-se em uma guerra quente pela primeira vez na história. Jatos de ataque baseados em porta-aviões, juntamente com mísseis de cruzeiro disparados de navios e submarinos, foram lançados para tentar forçar a Sérvia a interromper a campanha de limpeza étnica em sua província rebelde Kosovo.
Houve um confronto tenso no aeroporto de Pristina quando as forças da OTAN entraram em conflito com as tropas russas enviadas para impedir que seus aliados eslavos fossem totalmente humilhados pela OTAN. Era um sinal do que estava por vir, especialmente depois que Vladimir Putin se tornou presidente da Rússia no mesmo ano. Por enquanto, no entanto, a Rússia continuava sendo um poder derrotado no que dizia respeito ao Ocidente, uma espada enferrujada presa em sua bainha.
Quando o submarino de mísseis de cruzeiro da classe “Oscar”, Kursk, afundou no mar de Barents em agosto de 2000 – depois que os torpedos da embarcação explodiram dentro de um compartimento de armas –, pareceu totalmente emblemático de uma Rússia derrotada.
Como resultado, Putin prometeu reviver o poder militar e naval da Rússia. Esse ressurgimento parecia improvável de acontecer e os eventos mundiais logo tomaram um rumo surpreendente, anunciado por um evento no porto de Áden em outubro de 2000. Os terroristas da Al-Qaeda atacaram o destróier USS Cole, enquanto ele estava em uma escala de reabastecimento. Dezessete marinheiros foram mortos e 39 feridos, com o navio salvo apenas devido a um heroico esforço de controle de avarias.
Os atentados da Al Qaeda em 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington DC desviaram os EUA e seus aliados de manter pressão sobre Saddam, para uma longa guerra no Afeganistão. Logo a operação mudou de ser uma ação punitiva contra Osama bin Laden e a Al-Qaeda em uma luta contra o Talibã e uma tentativa de construção de nação (nation-building).
Forças de ataque naval estiveram envolvidas na fase de abertura e depois se comprometeram a apoiar a campanha terrestre, com os soldados do mar dos EUA e do Reino Unido também entre aqueles que se comprometeram com a luta em um país sem litoral.
Alimentando ainda mais as chamas do conflito global, em 2003 os EUA iniciaram uma invasão do Iraque, junto com sua “coalizão de países empenhados”. Esse empreendimento desestabilizou o Oriente Médio e abriu a porta para o Irã alcançar a hegemonia regional. Como se os papéis de apoio de combate nesses conflitos não fossem suficientes para o comando das marinhas, grupos-tarefas navais multinacionais também foram formados para combater não apenas a atividade terrorista nos oceanos, mas também o crescente flagelo da pirataria na África. Parecia que os “bens comuns mundiais” do mar não eram tão plácidos depois de tudo. Um ator na missão antipirataria foi a China, que enviou novos navios de guerra altamente capazes para se juntarem ao esforço multinacional da Somália.
Com o envolvimento no Iraque em declínio para os EUA e seus aliados e o envolvimento Ocidental (incluindo a OTAN) no Afeganistão, os problemas não demoraram a chegar em outros lugares. A Primavera Árabe de 2011 viu a desestabilização de regimes se espalhar como fogo pelo norte da África e para a Síria.
Com os EUA comprometendo 60% de suas forças navais na região Ásia-Pacífico – para enfrentar um crescente desafio chinês e uma ameaça nuclear norte-coreana – o Reino Unido e a França lideraram ostensivamente a intervenção da OTAN na Líbia. Eles pretendiam impedir que seu governante despótico, Muammar Gaddafi, massacrasse seu próprio povo enquanto se rebelavam.
Jatos de ataques navais franceses, italianos e americanos foram lançados a partir do mar. No entanto, a coalizão liderada por David Cameron continuou a seguir a política de “dividendo da paz” da década de 1990, tendo no final de 2010 descartado o poder de ataque dos porta-aviões do Reino Unido. Seria cerca de uma década antes que a Marinha Real pudesse novamente enviar jatos de asa fixa para o mar, enquanto Cameron também se livrou dos MPA (Marine Maritime Patrol Aircraft), abrindo outra lacuna de capacidade de uma década.
A Marinha Real Britânica continuou a desempenhar um papel fundamental na campanha da Líbia através de suas fragatas, submarinos, destróieres, caça-minas e helicópteros, embora a mais dramática contribuição tenha sido uma única embarcação americana. O submarino de mísseis guiados USS Florida disparou 99 mísseis de cruzeiro contra a Líbia durante a fase de abertura da campanha, mais do que a frota britânica possuía em todo o seu inventário. Tendo testemunhado um aliado-chave eliminado – e Gaddafi executado por uma turba – os russos decidiram que não poderiam deixar um destino similar acontecer ao ditador sírio Bashar al-Assad.
O que estava em jogo para Moscou era o acesso fundamental ao oceano – cuja busca tem sido uma constante da política de defesa russa desde a época de Pedro, o Grande. Para garantir que a base naval de Tartus, na Síria, não pudesse ser negada a ele – como aconteceu com a Líbia – a Rússia decidiu que deveria agir.
A principal jogada para garantir o acesso ao Mediterrâneo não veio do Levante, no entanto. Para garantir o bastião naval de Sebastopol, em março de 2014, os russos anexaram a Península da Crimeia. Foi a partir daquela plataforma de lançamento que Moscou realizaria grande parte de sua intervenção na Síria – via carregamentos constantes de tropas e suprimentos e navios de guerra de superfície com mísseis de cruzeiro baseados em Sevastopol que se uniram a operações de submarinos de Tartus e corvetas navegando no mar Cáspio para bombardear “terroristas” na Síria.
Os americanos, enquanto isso, usaram seus mísseis de cruzeiro lançados do mar para punir Assad por usar armas químicas em seu próprio povo. A diplomacia de mísseis de cruzeiro que por tanto tempo fora exclusividade das marinhas americana e britânica na era pós-Guerra Fria era agora também uma especialidade dos russos. Como se a turbulência no Mediterrâneo oriental e o aumento da tensão no Mar Negro não fossem suficientes, a China começou a exercer uma presença muito maior no mar em 2017, enquanto construía fortalezas em recifes e ilhas no Mar da China Meridional no equivalente marítimo de uma tomada de terras em uma vasta área do oceano.
Pequim também enviou grupos de fragatas e destróieres para o Mediterrâneo, o Mar Negro e o Báltico, enquanto operava um novo porta-aviões (o primeiro dos vários que planeja construir).
Porta-aviões de ataque e navios de assalto anfíbio continuam a ser os árbitros dos assuntos mundiais e qualquer nação que aspire ser um grande ator naval investiu, nos últimos 20 anos, pesadamente em tais navios, nomeadamente França, Índia, Itália, China, Austrália, Espanha, Japão, Coreia do Sul, Reino Unido e EUA. As ambições da Rússia nesse sentido foram frustradas, mas não quando se trata de submarinos, que estão proliferando como nunca antes. Há duas décadas, previa-se que os submarinos movidos a energia nuclear eram tão caros que seguiriam o caminho dos dinossauros, mas hoje eles florescem, assim como os avançados submarinos de propulsão convencional.
Esses são apenas alguns dos contornos de uma cena naval complexa e em rápida evolução, tão diferente de onde estávamos em 1998, quando esta revista começou. Seria maravilhoso poder relatar duas décadas depois da primeira edição desta revista que nada mudou, que as marinhas estão lutando para encontrar emprego, que as espadas se transformaram em arados.
Infelizmente, estamos agora em uma era de corridas armamentistas navais, conflitos e homens fortes que buscam levar suas nações a mais riqueza e poder. Nesse sentido, a roda da história virou um círculo completo, levando-nos de volta aos velhos e maus dias do poder duro e da força bruta que existiam antes do fim da Guerra Fria.
FONTE: WARSHIPS International Fleet Review, maio de 2018