Cessão de submarinos IKL 209 à Argentina é recebida com desconfiança pela oficialidade da MB
Por Roberto Lopes*
Especial para o Poder Naval
Os oficiais da Marinha do Brasil (MB) vão prestar continência para a extravagante ideia de se transferir quatro submarinos da classe Tupi – dois ainda este ano – para a cambaleante Arma Submarina da Argentina?
A cessão dos submarinos teria sido resolvida na forma de uma “decisão de Estado” pelo presidente Jair Bolsonaro, semana passada, em Buenos Aires, em resposta a uma solicitação do ministro da Defesa argentino, Oscar Aguad, encaminhada a seu colega brasileiro, general Fernando Azevedo e Silva.
A Marinha de Aguad tem uma Força de Submarinos inoperante, (a) pelo trágico desaparecimento, em novembro de 2017, do submarino Classe TR-1700 San Juan, (b) a indefinição acerca da recuperação do Santa Cruz, irmão gêmeo do San Juan – parado desde 2015 –, e (c) o completo obsoletismo do IKL-209 Salta, um barco veterano da Guerra das Malvinas construído na década de 1970.
A notícia da entrega dos navios brasileiros, publicada na última sexta-feira (07.06) por Martín Dinatale, jornalista de assuntos militares do portal argentino Infobae, em meio a um silêncio opressivo, em Brasília, do Comando da Marinha do Brasil (MB), pegou de surpresa chefes navais do Comando da Força de Submarinos (ForSub) – sediado na Ilha de Mocanguê, nos fundos da Baía de Guanabara –, da Diretoria de Gestão de Programas (DGePM) e da Diretoria-Geral do Material da Marinha (DGMM) – ambas repartições sediadas no Rio de Janeiro.
E isso por um único e simples motivo: a alienação dos navios constitui um virtual desbaratamento de toda a programação elaborada, nos últimos meses, pela DGePM para os submarinos classe Tupi, aos quais estaria reservado ao menos mais um ciclo de vida operativo na MB, da ordem de sete ou oito anos.
Prontificação – O que certamente orienta o raciocínio de Aguad e seus almirantes é que a Força Naval brasileira, prestes a receber (em 2020) o Riachuelo – primeiro submarino Scorpène construído no país – e tendo mais três na linha de produção, poderia, sem grandes problemas, dispor dos seus navios classe Tupi, uma versão inicial da conhecida classe alemã IKL-209/1400, de defesa costeira.
Mas Aguad, um político agressivo e de comportamento mercurial, neófito em assuntos militares (apoiador da decisão militar argentina de desprezar o consagrado monomotor Super Tucano para deixar sua Aviação optar pelo turboélice americano de treinamento avançado e ataque T-6 Texan II), desconhece a realidade da incorporação de um submarino moderno – talvez porque sua Marinha, há mais de 30 anos, não tenha a mesma oportunidade.
Submarinistas brasileiros explicaram ao Poder Naval: mesmo que a MB possa receber o Riachuelo até dezembro do ano que vem (planejamento hoje visto com cautela), esse navio não estará completamente pronto para operar antes do segundo semestre de 2023.
Será preciso, antes, que seus tripulantes se acostumem com a capacidade de manobras do navio, a resposta dos seus equipamentos de controle de tiro de torpedos, e ainda o testem nos diferentes tipos de mar que banham a extensa costa brasileira.
Águas do Norte/Nordeste, do Sudeste e do Extremo Sul com temperaturas e vida marinha bastante diversas – que influenciam diretamente no funcionamento de sensores, de sistemas de refrigeração e de filtragem de impurezas a bordo de um submarino.
Alternativas para a cessão – Como a “generosa” intervenção de Bolsonaro na Argentina (usando os navios da Marinha do Brasil) teria poupado o Tikuna (S-34) – um classe Tupi mais moderno (de projeto modificado no Brasil) –, restaria aos articuladores do socorro aos argentinos disponibilizar, em primeiro lugar, o submarino Tupi (S30), de 1989, que, segundo o planejamento do DGePM, encerraria o seu atual ciclo operativo por volta de 2021, e logo seria submetido ao refit que o habilitaria a operar até o começo dos anos de 2030.
O segundo submersível brasileiro candidato a se “naturalizar” argentino seria o Tamoio (S31), que termina os seus reparos em 2021, com vistas a operar até 2028.
Há, contudo, uma solução bem mais rápida para agradar os hermanos (e desagradar profundamente os brasileiros): lançar mão dos navios Timbira (S32), de 1996, e Tapajó (S33), de 1999 – ambos parados, no Rio, à espera da manutenção que lhes garantirá vida útil na próxima década.
Segundo o Poder Naval pôde apurar, neste momento oficiais da DGePM examinam com a empresa alemã ThyssenKrupp Marine Systems (TKMS) reparos de certa monta (cerca de 60 milhões de dólares) nessas embarcações – ambas consideradas pelos oficiais da MB como altamente aproveitáveis ainda – cuja venda representaria a perda de importantes meios de adestramento das tripulações de submarinistas brasileiros e um significativo enfraquecimento da capacidade de resposta da Força a uma situação de emergência.
Preço simbólico – Mas esses militares ficariam bem mais indignados se soubessem dos termos em que o governo Jair Bolsonaro vem – com a aquiescência tácita do ministro Azevedo e Silva (e o silêncio da Marinha, em Brasília) – negociando, com a Marinha do país vizinho, a venda dos navios.
Todos, é mister repetir, integrantes da modestíssima força de dissuasão (ou deterrência) da MB.
De acordo com um relato obtido pelo Poder Naval diretamente de um oficial que lida com a obtenção e manutenção de meios da MB, o entendimento supostamente rascunhado pelo Ministério da Defesa do Brasil com a organização homônima de Buenos Aires parece, simplesmente, “descabido”, difícil mesmo de merecer crédito.
E isso por um punhado de boas razões:
1 – Segundo a versão corrente nos bastidores, os almirantes argentinos gostariam de pagar apenas um valor simbólico pelos classe Tupi.
Mês passado, quando o Comandante da Marinha, almirante Ilques Barbosa, admitiu para um grupo de altos oficiais da ativa e da reserva (durante solenidade no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro), o interesse da Armada peruana pelos mesmos navios, a informação que circulava era de que cada IKL poderia ser vendido, no estado em que se encontra, por um valor não inferior a 75/80 milhões de dólares.
Neste sábado, o jornalista Roberto Godoy – um dos mais respeitados especialistas em assuntos militares da imprensa brasileira – arriscou informar, no jornal O Estado de S. Paulo, que o preço do unitário dos submarinos a serem transferidos ficaria no patamar dos 40/50 milhões de dólares.
Mas fontes navais do PN admitem: o valor apurado por Godoy ainda não parece “suficientemente simbólico” para uma Força Naval que levou dois anos para reunir 12 milhões de dólares com o objetivo de comprar cinco caças Super Étendard usados dos estoques da Aviação Naval francesa, e deve ser considerada, simplesmente, quebrada do ponto de vista financeiro;
2 – O mesmo relato obtido pelo PN explica: os “felizes adquirentes” das embarcações gostariam que um banco brasileiro financiasse a modernização do Tandanor, estaleiro argentino que ficará incumbido dos reparos nos navios a serem recebidos.
Cabe lembrar: no caso das tratativas com o Peru, a ideia do Comando da Marinha era de que tais serviços fossem feitos no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, que há mais de 20 anos zela pela operacionalidade dos IKLs.
3 – Ainda de acordo com a mesma versão, os argentinos solicitam que o pessoal da MB capacite gratuitamente tanto o pessoal que fará os trabalhos no estaleiro Tandanor, quanto as tripulações que vão operar os classe Tupi – navios de uma geração consideravelmente mais avançada que o IKL-209 Salta, em uso na Argentina desde o fim da década de 1970.
4 – Outro ponto fundamental para os militares do Brasil: não há qualquer garantia de que a MB irá mesmo receber os seus quatro novos submarinos da classe Riachuelo.
Esse argumento pode soar estranho, mas a verdade é que os chefes militares estão profundamente decepcionados com o contingenciamento dos seus orçamentos pela área econômica. Verbas que vem sendo liberadas em frações mínimas, e de forma lentíssima – a conta-gotas mesmo –, numa rotina que em nada, absolutamente, difere da praticada pela “Velha Política”, que o Bolsonarismo tanto gosta de criticar.
O primeiro submarino da nova classe, Riachuelo, é o de obtenção mais garantida, apesar de seu acabamento vir acumulando atrasos.
Repetidas consultas da empresa britânica que dá manutenção no elevador de navios (shiplift) do complexo naval militar de Itaguaí – onde os navios da classe Riachuelo (Scorpène brasileiro) vêm sendo construídos –, acerca do emprego do equipamento para a devolução do Riachuelo ao mar, têm ficado sem qualquer resposta do consórcio ICN, responsável pela fabricação das embarcações.
Os demais navios dessa classe são apenas considerados “unidades em construção”.
5 – Quanto à capacidade – e disposição – financeira da Administração Mauricio Macri para quitar compromisso decorrentes de aquisições militares, ela, na MB, é considerada “inexistente”.
Fonte do setor de Material da Marinha do Brasil lembra:
“Eles [argentinos] fecharam um acordo com os franceses para obtenção de quatro OPV [Classe L’Adroit]. Neste contrato a Argentina paga parcelas antecipadas. Quando quita o valor de um navio, ele é entregue. Só recebe se, primeiro, quitar o valor integral do barco. Em seguida começa a pagar o segundo, e os franceses começam a construi-lo. Quando a Argentina quita, os franceses entregam o segundo, e assim por diante…”
Pesca – Há, contudo, outros aspectos dessa recente aproximação entre os chefes navais argentinos e brasileiros que deveriam causar preocupação no Gabinete do Comandante da Marinha do Brasil.
Nesta sexta-feira, ao final do (pomposo) Seminário de Indústria da Defesa e Segurança, realizado na Embaixada do Brasil em Buenos Aires, que anunciou o aprofundamento da “cooperação binacional na área de submarinos convencionais”, um texto da Assessoria de Comunicação Social do ministro Azevedo e Silva revelou: o evento também estudou “as oportunidades de cooperação combinadas para a vigilância e controle do Atlântico Sul”.
A frase, para quem não sabe, embute, nessa nova fase de convivência com uma Armada Argentina empobrecida, carente, e cada vez mais propensa a se socorrer dos amigos (Marinhas do Peru e do Brasil), mais um pepino-gigante para a MB descascar.
A tal “oportunidade de cooperação combinada” diz respeito ao plano argentino de ativação de um Centro de Controle da Pesca para toda a face ocidental do Atlântico Sul.
O novo organismo conjugaria, em uma só estrutura, os paupérrimos recursos de repressão à pesca predatória da Marinha Argentina, os incipientes meios de patrulhamento da pequena Armada da República Oriental do Uruguai, e as unidades da Marinha do Brasil, de frota numerosa, superior a 100 unidades – ainda que boa parte delas opere com restrições, esteja submetida a um regime de economia de sobressalentes e de combustível ou se encontre, simplesmente, indisponível.
Mas essa ainda não é a última ameaça que a recente aproximação entre as Marinhas dos dois países representa.
Lockheed Martin – No Ministério das Relações Exteriores, de alinhamento fidelíssimo aos contorcionismos políticos de Jair Bolsonaro, a pergunta é se a propalada venda de quatro submarinos brasileiros à Armada Argentina não impinge um dano potencial ao, até aqui, excelente relacionamento entre as Marinhas do Brasil e do Reino Unido.
No fim da tarde deste sábado (08.06), um oficial submarinista que acompanha há anos os textos deste blog transmitiu, pelo celular, uma curta mensagem para este articulista: “O UK vai concordar com a transferência [para os argentinos] dos sistemas de combate Lockheed Martin e os torpedos Mk.48 [que figuram nos Classe Tupi]?
Nota do Editor: Os trechos grifados em negrito são de responsabilidade do autor.
*É jornalista graduado em Gestão e Planejamento de Defesa pelo Centro de Estudos de Defesa Hemisférica da Universidade de Defesa Nacional dos EUA. Especialista em diplomacia e assuntos militares da América do Sul. Autor de uma dezena de livros, entre eles “O código das profundezas”, sobre a atuação dos submarinos argentinos na Guerra das Malvinas e “As Garras do Cisne”, sobre os planos de reequipamento da Marinha do Brasil após a descoberta do Pré-Sal.