Cocaína abre rota para Austrália e Nova Zelândia
(Estado de S.Paulo, 14) Apreensões cada vez mais frequentes em ilhas do Pacífico Sul fazem especialistas, policiais e autoridades apontarem para o surgimento de uma nova rota da cocaína. Arquipélagos isolados, policiais despreparados e Estados minúsculos incapazes de combater o crime favorecem o fluxo da droga para os crescentes mercados de Austrália e Nova Zelândia, onde o quilo chega a custar 100 vezes mais do que na Colômbia.
A droga chega de várias maneiras, quase sempre pelo mar. Em junho de 2017, o veleiro Alfina atracou no arquipélago de Tuamotu, na Polinésia Francesa, um lugar esquecido no mapa, a 7 mil quilômetros da América do Sul, o continente mais próximo. Com bandeira de Gibraltar, ele havia partido do Panamá com dois marinheiros lituanos e dois letões.
Apesar de uma pequena avaria, a tripulação pretendia chegar à Austrália sem escalas – o que levantou suspeitas de autoridades portuárias francesas. Para revistar o veleiro, no entanto, era preciso uma autorização do Reino Unido, que administra Gibraltar, o que levaria um tempo que os investigadores não tinham. Por isso, quando o barco partiu, levou um rastreador escondido pela polícia.
Por três semanas, a Marinha francesa monitorou o veleiro e decidiu interceptá-lo em altomar, na altura de Tonga, um mês depois de ele deixar a Polinésia. O barco foi levado para o arquipélago de Nova Caledônia, onde a polícia encontrou 1,46 tonelada de cocaína – a maior apreensão da história no Pacífico Sul.
Casos como o do veleiro Alfina são cada vez mais comuns. Em junho, 436 quilos de cocaína foram encontrados em um iate na Polinésia. Em janeiro, a Marinha francesa fez duas apreensões: 639 quilos, em um veleiro nas Ilhas Marquesas, e 809 quilos, em um catamarã ancorado no Taiti. Em setembro, policiais retiraram 500 quilos de cocaína de um iate nas Ilhas Salomão. Em julho do ano passado, navios neozelandeses ajudaram a polícia de Fiji a apreender 50 quilos em duas operações.
Mas não é apenas em barcos privados que a cocaína chega. Ao Estado, o pesquisador José Sousa-Santos, diretor do Strategika Group Asia Pacific, consultoria de risco da Nova Zelândia, contou que organizações criminosas usam também cargueiros e navios de passageiros.
Em novembro, a polícia encontrou no Porto de Auckland 190 quilos de cocaína em caixas de bananas importadas do Panamá. Wei-Jiat Tan, diretor de inteligência de aduanas da Nova Zelândia, diz que o número de apreensões em cruzeiros também cresceu. “Antes, descobríamos apenas quantidades pequenas. De uns anos para cá, apreendemos dezenas de quilos em cada operação.”
Sitiveni Qiliho, comissário de polícia de Fiji, conta que é cada vez mais comum tijolos de cocaína aparecerem nas praias do arquipélago. Por isso, uma das preocupações das autoridades locais é que as pequenas comunidades desavisadas, que tiram os pacotes da água, encontrem outras utilidades para o pó.
Em junho, o jornal britânico The Guardian relatou o caso de um vilarejo na Micronésia em que a cocaína vinha sendo usada para lavar a louça. “Nossa maior preocupação é que as pessoas pensem que esses pacotes contenham açúcar, farinha ou pasta de dente em pó, o que representa um risco para a saúde dessas comunidades”, disse ao jornal Brett Kidner, superintendente da Polícia Federal da Austrália.
O estrago maior, no entanto, é o impacto habitual da cocaína em lugares sem estrutura para lidar com o crime organizado e com a explosão de dependentes. Em ilhas isoladas do Pacífico Sul, como Samoa, Tonga e Fiji já existe um mercado doméstico em formação.
De acordo com Jeremy Douglas, representante regional do Escritório da ONU sobre Drogas e Crime (UNODC), países que servem de passagem de drogas estão condenados a desenvolver um mercado consumidor. “Lugares como o Pacífico Sul são particularmente perigosos. Os países são muito pequenos, com recursos limitados. São Estados soberanos, mas que não têm sistema de saúde e a polícia não está preparada.”
Em Tonga, existe apenas uma clínica de reabilitação, onde trabalha uma única pessoa. Em Fiji, não há nem mesmo especialistas em adição. Os dependentes acabam em um hospital psiquiátrico da capital, Suva, onde cerca de 20% dos pacientes atualmente tratam de abuso de drogas.
Sousa-Santos diz que a nova rota do Pacífico é resultado de uma “tempestade perfeita”. Primeiro, o aumento da repressão no Sudeste da Ásia, que fechou uma passagem crucial, provocando a busca por um novo itinerário – o chamado “efeito balão”. No entanto, mais importante, segundo ele, é o apetite por cocaína nos dois maiores países da Oceania. “A demanda na Austrália e na Nova Zelândia tem relação direta com que está ocorrendo no Pacífico Sul”, disse.
O UNODC estima que 18 milhões de pessoas consumiram cocaína em 2018. A produção mundial, de 2 mil toneladas por ano, é toda concentrada nos Andes, onde cresce a folha de coca. Um quilo de cocaína na Colômbia custa US$ 2.300. Na Austrália, pode chegar a US$ 230 mil – 100 vezes mais. O lucro, portanto, coloca os mercados australianos e neozelandês no radar dos narcotraficantes latinoamericanos.
A demanda nos dois maiores países da Oceania está em alta. Na Austrália, dados oficiais mostram um crescimento de 7,7% de crimes ligados ao consumo de cocaína em um ano, de 2017 para 2018. A Comissão Australiana de Inteligência Criminal, que realiza testes frequentes em estações de tratamento de água, estima que os australianos consumam 3 toneladas da droga por ano. Na Nova Zelândia, que começou este ano a realizar o mesmo tipo de teste, o consumo seria de 700 gramas por semana.
John Coyne, que dirige o programa de segurança de fronteiras do Instituto Australiano de Políticas Estratégicas, diz que o azar dos países do Pacífico é estarem localizados entre as duas pontas do mercado, Austrália e América do Sul. “As ilhas são usadas pelo crime organizado para transportar drogas”, afirma Coyne. “Isso tem consequências terríveis, como aumento da corrupção, pagamento de propinas e enfraquecimento das instituições. Não há como subestimar o impacto que tem no Pacífico o apetite dos australianos por cocaína.”