Fragatas União e Liberal no Líbano

Fragatas União e Liberal operando juntas no Líbano. Os navios brasileiros integraram várias vezes a Força-Tarefa Marítima da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (FTM-UNIFIL)

Almirante Mario Cesar Flores, O Estado de S.Paulo – 20 de julho de 2019

A lógica da soberania adotada nos anos 1600, época das monarquias absolutas, apoiou nos 1800 e até meados do século 20 o nacionalismo acirrado, protetor da propagação da revolução industrial. Vivemos desde então o avanço gradativo da globalização de viés liberal, tumultuado por manifestações do nacionalismo superado. Algum protecionismo seletivo na economia e reações nacionalistas decorrentes da imigração desordenada, de conflitos religiosos e étnicos e de reminiscências da História são de fato compreensíveis, mas reverter aos anos 1800 é ir contra o inexorável.

Valores, orientações, procedimentos e instituições supranacionais já funcionam regularmente: correio (pioneiro longevo…), direitos autorais, pesos e medidas, navegação e transporte marítimo e aéreo, direitos humanos, economia/comércio internacional (OMC), controle de epidemias (OMS), na justiça a Corte Internacional de Haia, no esporte a bem-sucedida Fifa, e por aí vai. Territorialmente limitada e hoje em xeque (Brexit), a União Europeia (UE). Embora meio ambiente e clima desconheçam as soberanias nacionais e fronteiras políticas, e apesar da evidência científica, a lentidão e os recuos (o abandono do Acordo de Paris pelos Estados Unidos, por exemplo) nos cuidados com ambos preocupam: geram consequências transnacionais já sensíveis e impactantes no futuro.

Em suma, ainda que aos tropeços, a globalização avança. Mas nem sempre na moldura da cordialidade. Impõe-se agora a pergunta inspiração deste artigo: como se situam segurança e defesa (fundamentalmente o poder militar, seu instrumento) no mundo integrado, a globalização afeta a concepção de segurança e defesa?

Contenciosos indutores de conflitos vêm sendo, ao menos numa primeira instância, objeto de empenho conciliador de organizações internacionais – ONU e regionais. A prática é coerente com a lógica da integração, mas usá-la para subestimar segurança e defesa é equívoco perigoso, os mecanismos da globalização não asseguram paz e tranquilidade. O Conselho de Segurança da ONU, ator básico natural da conciliação, tropeça em interesses ou perspectivas de potência(s) com direito a veto. Afora a guerra entre potências nucleares, hipótese que o terror nuclear sugere ser inverossímil, no mundo de 7 bilhões (e crescendo) de seres humanos, com valores e interesses distintos, nem sempre conciliáveis, continua grande a probabilidade de contenciosos e tensões que transcendam a hipótese de conciliação. Alguns cenários de turbulência evidenciam essa realidade, em realce hoje o dramático Oriente Médio.

Acrescente-se a esse cenário clássico: as atribulações e o colapso da ordem pública, inerentes à expansão demográfica e à desigualdade socioeconômica exacerbadas, vêm acrescentando uma nova dimensão ao quadro da segurança e da defesa, vêm exigindo intervenção internacional que restaure a ordem e proteja os direitos humanos frementemente vilipendiados. Intervenções decididas por organizações internacionais credenciadas têm, portanto, espaço racional na concepção de segurança e defesa dos países não indiferentes à desgraça.

Nas agendas das grandes potências (em destaque, hoje, Estados Unidos e China) e de países de segundo nível de projeção global, em geral sob regimes populistas autoritários e vivendo a euforia do nacionalismo extremado, como a Coreia do Norte e aparentemente o Irã, segurança e defesa são enfatizadas, nem sempre – se não raramente – por motivos racionais (para Israel a ênfase faz sentido…). Outros países mantêm atitude discreta, sem arroubos de potência, mas deixando claro que ser país pacífico não é ser país desarmado e que a melhor defesa é a capacidade de dissuadir agressões, deixando claro que compartilham a preocupação com a ordem global (a Suécia, por exemplo). Finalmente, em outros vem prevalecendo a convivência conformada com o inseguro, por convicção equivocada ou por conveniência decorrente da precedência de outras demandas sobre o Estado. É a situação em que prioridades sensatas impostas pela realidade imperativa servem de respaldo ilusório à secundariedade da segurança e da defesa.

O Brasil situa-se (com destaque regional) no segundo nível, mas a pressão de demandas radicais que o afligem, sociais, econômicas e de infraestrutura, cerceia sua atenção à segurança e defesa e o leva a tangenciar o terceiro. A superação dessa conjuntura permitirá a consolidação no nível naturalmente adequado.

Enfim, segurança, defesa e seu instrumento, o poder militar, estão na equação da integração global. Depreciá-los é risco, exagerá-los é sacrificar desnecessariamente o povo. Sem delírios ufanistas, o poder militar de qualquer país deve corresponder à sua realidade interna e internacional, às suas possibilidades, limitações e responsabilidades. O equilíbrio adequado é desafio para políticos competentes, com visão estadista do presente e do futuro. Aos militares cabe a contribuição profissional na formulação da solução.

Uma observação final: a desordem e a desigualdade socioeconômica no mundo (expressivas no Brasil) estimulam a violência e conturbações internas, os delitos em fronteiras e no mar. Esse problema se insere tradicionalmente na concepção de segurança e defesa, complica o equilíbrio citado acima, mas não é tema deste artigo.

NOTA DO EDITOR: Último artigo do Almirante Flores publicado no jornal O Estado de S.Paulo.

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EdLustig

Fantástico!

Cristiano de Aquino Campos

Muito bom

Augusto L

Perfeito, não podemos negar a globalização.

GFC_RJ

Excelente coluna. Duas questões: 1 – O avanço da globalização é inevitável. Os conflitos ocorrem nas diferentes visões de como as nações devem atuar para protegerem sua soberania e ao mesmo tempo em como devem atuar para aproveitar oportunidades que a globalização possa oferecer. 2 – O equilíbrio entre como o Estado deve lidar com a manutenção do seu poderio militar e suas demais demandas internas. No caso do Brasil, os Estado está custando 40% da renda e ainda assim, além de não ter encontrado tal equilíbrio, não está cumprindo bem nem com um lado e nem com o outro.… Read more »

Pedro

Poderiam me dizer o que é, na foto, aquela espécie de “reparo” de duas bocas que fica entre o passadiço e o reparo melara? Ele fica apontado para frente em um ângulo de uns 45ºc

Dalton

Pedro …se entendi bem sua dúvida, trata-se do morteiro duplo para foguetes
anti submarinos conhecido como BORoc da sueca Bofors.

Pedro

Obrigado Dalton, esse mesmo! ?

Marcelo Andrade

O reparo é da Vickers MK-8 de 114,5 mm!

Enes

Os tais morteiros Bofors chamados na MB de Foguetes Boroc, embora ainda estejam mantidos nas Classe Niterói, não estão mais em uso, só não foram retirados por razões de ser uma faina inútil retira-los visto que não será instalado nada naquéla posição.

Alex Barreto Cypriano

Sendo segurança e defesa afetos ao poder militar, que é corporação de Estado e globalização o transbordo da potência da economia pra além da fronteira do Estado (com a consequente tentativa de coordenação e manejo tecnico-político em instituições congregantes adequadas), como se coadunam o Estado, até hoje expressão particular de uma nação, com os interesses de uma economia mundial que prescinde das particularidades nacionais como a autonomia estatal e cultura/povo da nação? Há uma contradição insolúvel aí até que o estado e o povo nacionais sejam transmutados, através da destruição da nitidez ordenada e pelo incremento da entropia, em estado… Read more »

Alex Barreto Cypriano

Os militares sabem que força esmagadora é um valor de uso bem cotado, pago regiamente quer pelo Estado nacional em extinção ou pelo Estado mundial em voga. Afinal, administrar o mundo requer o manejo de populações sem direitos ainda iludidas com as promessas de soberania e progresso material. É a tal administração armada das sociedades, sem disfarces nas periferias provinciais mas mitigada no núcleos orgânicos do sistema. Que pra um militar (ou politico, ou artista, ou ideologo) isto não seja um problema digno de atenção e de desenvolvido em palavras, vá, que seja. Mas um cidadão comum, aquele mesmo que… Read more »

Zorann

“O Brasil situa-se (com destaque regional) no segundo nível, mas a pressão de demandas sociais, econômicas e de infraestrutura, cerceia sua atenção à segurança e defesa e o leva a tangenciar o terceiro” Isto é uma grande mentira. O nosso país tem um gasto elevado em defesa, um gasto condizente com sua posição econômica. Gastamos sozinhos 50% dos gastos militares de nosso continente e nem por isto temos as forças mais capazes e/ou tecnologicamente mais modernas. Gastamos mais em defesa do que países como Itália, Israel, Turquia, Taiwan, Austrália, Canadá, Espanha, Emirados Árabes, Egito e não temos a menor capacidade… Read more »

jef2019

Também não concordo com 2 partes do texto amigo. Uma é essa que voce mencionou, o brasil atualmente não possui poder de dissuasão…só ver o caso venezuela…comparando com eles infelizmente estamos defasados em termos de equipamentos…não estou dizendo em relação a quantidade ou efetivos, mas em equipamentos mais modernos. E estou falando de Venezuela….quem é Venezuela no mapa de poder mundial? Que dirá nosso poder de dissuasão em relação a outros países mais preparados. O segundo ponto que discordo é quando menciona que defesa deve ser planejada com o equilibrio adequado por politicos competentes, e ao militares formulação da solução…para… Read more »

Enes

Esse disco, é do tempo dos The Byrds.Entre na discussão…

Rodrigo

Faltou falar que para ter uma defesa de segunda linha deveria ter almirantes e militares mais capacitados para gerir os recursos pois se 80% vai para pagar pessoal mostra incompetência na gestão financeira e na escolha de prioridades. A culpa não é só do governo e culpa é tb das festas de gestão. E no momento atual os militares querem só manter os privilégios, na verdade essa é a real bandeira dos militares brasileiros. Não devemos aumentar orçamento sem antes ter um plano para melhoriadêem gestão de recursos, com metas e previsões de redução de.de custeio para investimento. Ou seja… Read more »

Matheus Santiago

Pois é, o orçamento da defesa no de 2003 era de aproximadamente R$25 bilhões, hoje é algo em torno de R$90 bilhões e mesmo com esse aumento do orçamento nada mudou estruturalmente. O problema não é o orçamento, e sim as despesas que são com o custo de pessoal, ativo e inativo. Mas que falta de planejamento. De nada adianta aumentar os gastos militares para algo em torno de 2,5% do PIB, irá continuar a mesma coisa. Precisa de uma reforma administrativa severa nas forças brasileiras, e me parece que o governo atual não irá implementar tais medidas e nem… Read more »

Blind Mans Bluff

Se posso, gostaria de pedir aos editores uma materia contando historias dessas operacoes de paz. Sabemos que a MB participou diversas vezes, mas o que fizeram la, nao sabemos nada.

abracos

Marcelo Andrade

Muito bom! E mais uma vez…O Fragatas lindas! Meu Deus! Imaginem quando chegaram novinhas?

Vovozao

02/08/19 – sexta-feira, btarde, em termos de globalização vemos muita ajuda/segurança mútua no Atlântico (norte), USA apoia e auxilia Europa (OTAN), existem pactos de apoio em caso de agressões; e, no Atlântico (sul), não vemos nada disso; nossos vizinhos Uruguai/Argentina estão com as FA’s em piores condições que as nossas (Brasil), nossos confrontantes (países Africanos, banhados pelo Atlântico (sul)), estão ainda piores, muitos sem uma FA, e sim algumas pessoas que se dizem militares. Então qual segurança/defesa temos no Atlântico Sul. Somos esquecidos, se olharmos no mapa vemos muitos países alinhados no oceano Pacífico, no oceano Índico, aqui neres de… Read more »

FERNANDO

Putz, tirem uma foto destes navios, pois, mais alguns anos, Deus, não haverá nem mais um navio com um F na fronte.
Dureza, estes governos são terríveis.

Mahan

Pois é. ..mas sobre submarinos nucleares, misseis de cruzeiro, porta-aviões, aviação embarcada, escoltas e Fuzileiros Navais? O tráfico de pessoas, drogas e armas pelos rios da bacia Amazônica, Paraná e em nossos portos? O Atlântico Sul, a África Atlântica, linhas de comunicação e comércio com América do Norte, Oriente e Europa. A influência crescente de ditaduras extra-continentais e ONGs ? Estados falidos em nossas fronteiras? A aliança com a OTAN? Poderia ser mais específico nos problemas concernentes à Marinha.

Almeida

Tapa na cara dos lunáticos anti-globalização

Delfim

A globalização pode ser irreversível mas não contínua, como todos os processos. Sempre haverá obstáculos.
E sempre haverá potências antagônicas.

Cristiano GR

A globalização nada mais é do que a realização da vontade de empresas multinacionais e de determinados grupos econômicos e sociais. Qualquer outra conversa ou história sobre o assunto nada mais é do que disfarce ou maquiagem para melhor aceitação da população em geral, sejam estes pessoas comuns ou agentes influentes na política, economia e na cultura. As potências citadas, nunca abrirão mão de seu território, seu poder, sua influência e seu status, logo das coisas que simbolizam, identificam, caracterizam e dão singularidade à nação. As pessoas não se beneficiam diretamente da globalização, mas as empresas sim e com isso… Read more »