Português Fernão de Magalhães

Português Fernão de Magalhães, retratado em pintura

(Fabrício Lobel / Marcelo Pliger – Ilustrissima – Folha de S.Paulo, 15) Há 500 anos o português Fernão de Magalhães iniciava expedição marítima castigada por tempestades, rebeliões, fome e mortes, mas que realizou a façanha de dar a primeira volta ao mundo.

Em setembro de 1522, chegava ao porto espanhol de Sanlúcar de Barrameda (próximo a Sevilha, no sul da Espanha) uma estranha embarcação com o casco perfurado. Os 18 homens que compunham a tripulação vinham muito magros, com barbas e cabelos longos. Na pele queimada de sol traziam feridas mal curadas.

Quando desembarcaram, suplicaram por velas de cera. Queriam ir até a igreja mais próxima acendê-las em agradecimento aos céus por terem retornado à terra, depois de três anos no mar.

Da última vez que a embarcação havia partido daquele porto, estava acompanhada de outras quatro naus, e a tripulação era de 243 marinheiros. Durante os anos no mar, aqueles homens enfrentaram tempestades capazes de destruir frotas inteiras, batalhas campais, rebeliões, naufrágios, doenças desconhecidas e frio. No meio do mar, passaram sede e fome severas. Depois de devorar os ratos, comeram pedaços de couro que cobriam os barcos.

Com muitas perdas e só alguma carga valiosa a bordo, os viajantes retornavam de uma expedição que parecia fadada a ser vista como um fracasso. Ainda assim, a primeira viagem a contornar a Terra, que neste 2019 completa 500 anos de seu início, entrou para a história como um dos maiores feitos da humanidade.

Para alguns, a saga iniciada pelo português Fernão de Magalhães é comparável à chegada do homem à Lua. Para outros, trata-se de façanha ainda maior, por ser a primeira viagem que efetivamente descobriu o planeta Terra.

“Há um paralelismo feliz desta viagem com a ida à Lua. Os astronautas nos anos 1960, antes mesmo de chegarem à Lua, sempre falavam de Magalhães, Vasco da Gama e Colombo como pessoas inspiradoras, homens que fizeram algo, em certos aspectos, mais difícil do que eles estavam fazendo”, explica o historiador português João Paulo Azevedo de Oliveira e Costa.

De fato, em 1970, quando a Apollo 13 sofreu um grave acidente no espaço, só conseguiu retornar à superfície da Terra com ajuda remota dos engenheiros nos EUA. “Isso não existia para os navegadores. Não havia comunicação com Lisboa ou Sevilha, e os riscos eram maiores”.

Nascido em uma família fidalga portuguesa, Magalhães cresceu tendo como heróis os navegadores que voltavam das Índias carregados de tesouro e glória. Logo que teve idade para subir a bordo, começou a viajar. Passou pela África e pelas Índias.

Aos 34 anos, sentia-se preparado para organizar sua própria expedição, mas seu pedido foi rechaçado pelo rei português. Pesava contra ele o temperamento insolente e a acusação de que havia cometido desvio de bens enquanto trabalhou no Marrocos em nome da Coroa.

Mesmo rejeitado, Magalhães ficou em Portugal e se dedicou a estudar todos os mapas e livros sobre navegações em que podia colocar as mãos. Muitos desses documentos eram mantidos sob sigilo por Portugal, que tinha interesse em ocultar parte de suas descobertas com as navegações.

“Existia uma política de sigilo. Não só das rotas como das mercadorias e dos pontos em que eles passavam. As mercadorias eram assim mantidas como monopólio português”, explica a professora de história da USP Iris Kantor.

Os principais rivais eram os reinos vizinhos de Castela e Aragão, embriões do que logo se tornaria a Espanha. As potências disputavam o controle da melhor rota comercial até as Índias, origem das cobiçadas especiarias. Um conjunto de ilhas, em específico, não saía dos planos de Magalhães: as Molucas (atual Indonésia), a joia do Índico, onde o cravo-da-índia crescia naturalmente nas florestas e chegava a forrar as praias.

Após anos de estudo, Magalhães atravessou a fronteira de Portugal em busca do rei espanhol. Queria que Carlos 1º financiasse sua viagem e, para isso, o português levava debaixo do braço mapas e cálculos indicando que as tais ilhas ficavam do lado espanhol do mundo.

Afinal, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, o globo havia sido dividido entre Portugal e Castela. A linha imaginária que cortava o litoral brasileiro também dividia o sudeste asiático em local até então desconhecido. Magalhães, porém, garantia que o rei espanhol teria direito a todas as riquezas vindas de Molucas.

Àquela época, portugueses já dominavam uma rota bastante sólida para as Índias, num caminho que consistia em: 1) contornar o norte da África; 2) aproveitando as correntes oceânicas, apontar a proa para a América; 3) no meio do Atlântico, retornar para o sul do continente africano até 4) entrar no oceano Índico, já no rumo das Índias.

Com esse conhecimento, portugueses fundaram portos, fortalezas e centros de comércio por toda a costa africana e pelo Brasil, fazendo do Atlântico um mar hostil a embarcações estrangeiras.

Assim, a opção óbvia dos espanhóis para chegar às Índias era rumar para oeste, em direção a um mundo praticamente desconhecido, até chegar a Molucas.

Foi com essa estratégia que, quase 30 anos antes, Cristóvão Colombo havia partido da mesma Espanha com destino às Índias. Chegou ao Caribe, mas voltou à Europa acreditando que tinha cumprido a missão de ir ao Oriente. Morreu com essa certeza, enquanto outros navegadores logo perceberam que Colombo havia, na verdade, topado com uma imensa massa continental que se estendia de norte a sul, a América.

A tarefa de Magalhães, portanto, era transpor pela primeira vez as Américas no seu caminho ao Oriente e retornar com os porões cheios de especiarias.

“Esses produtos, que hoje estão baratos, àquela altura eram caríssimos e ajudaram a montar um império. Algo interessante é que os grandes impérios coloniais foram montados em função de produtos desnecessários. Ninguém precisava de especiarias, bebidas, tabaco, chocolate, chá, café para viver. É como a Coca-Cola de hoje”, compara Oliveira e Costa.

O historiador observa que os navegadores daquele tempo, além dos lucros com o comércio, perseguiam algo mais: a ambição da glória pessoal ao realizar uma proeza inédita e marcar seu nome na história.

Assim, em setembro de 1519, Magalhães partiu da Espanha em um comboio de cinco naus com a missão de chegar às ilhas Molucas.

Ele levava sob seu comando uma expedição composta sobretudo por espanhóis (embora houvesse também portugueses, gregos, franceses etc.). Grande parte da tripulação não confiava no português. Também não acreditava que ele soubesse como contornar a América.

Um ponto importante para a expedição é a entrada no que é hoje o rio da Prata, um estuário de grandes rios que divide o Uruguai e a Argentina.

Quatro anos antes de Magalhães, havia estado por ali o navegador espanhol João Dias de Solis, com a mesma missão de transpor a América. Solis entrou no rio da Prata pensando ser aquela uma passagem para outro oceano. Enquanto explorava a região, o espanhol foi atacado por índios tupi e devorado em um ritual antropofágico.

Magalhães entrou nesta baía, mas percebeu que o rio não dava acesso a outro oceano. Restava a ele, então, retornar para a Espanha ou procurar uma nova passagem nos mares do sul, completamente desconhecidos.

O português optou pela segunda alternativa e foi tateando qualquer baía, qualquer reentrância do mar, apostando ser a passagem para outro oceano. Quando já estava mais ao sul do que qualquer outro europeu já estivera, e às vésperas da chegada do inverno, Magalhães decidiu ancorar em um porto natural no que é hoje o sul da Argentina. Ali passaram cinco meses até que o inverno findasse.

Os espanhóis decidiram então tomar o controle da frota e retornar à Europa, abandonando uma missão que julgavam ser suicida. Nada garantia que houvesse uma passagem navegável para o outro oceano. A América bem poderia ser uma enorme porção de terra ancorada nos polos Norte e Sul. E se a passagem existisse, nada garantia que estaria onde Magalhães insistia em procurar.

O português, contudo, conseguiu controlar o motim. Os chefes do movimento foram castigados ou sentenciados ao esquartejamento. A frota então retomou viagem, cada vez mais ao sul, até finalmente encontrar uma passagem navegável entre o Atlântico e um novo oceano.

O feito de 500 anos até hoje inspira o explorador Amyr Klink. “Ele acabou descobrindo a passagem mais difícil de todas. O estreito de Magalhães é um labirinto. Eu já naveguei nesses lugares e vou de carro para lá todo ano. E a vida lá é um inferno. Mesmo com um veleiro equipado como o nosso, é uma navegação super dura, dura dura. O canal é largo, o vento levanta ondas curtas. É absolutamente extraordinário o que eles fizeram.”

Ao avistarem o novo oceano, marujos rezaram em agradecimento. E por tê-los recebido com mares tão calmos, foi batizado de Pacífico.

O contorno da Argentina, porém, custou a perda de duas das cinco naus. Uma naufragou e outra desertou na travessia do estreito. Ainda assim, por instinto ou estudo, Magalhães conseguiu provar seu ponto: existia uma rota navegável às Índias pelo lado espanhol do mundo.

No entanto, outro problema atingiu a expedição. O navegador percebeu que aquele oceano era maior do que imaginara, obrigando a tripulação a um racionamento extremo de comida e água. Marinheiros batalhavam pelo direito de comer os ratos dos porões das embarcações.

Antonio Pigafetta, um italiano que completou a viagem e registrou suas observações num diário de bordo, escreveu sobre a miséria durante a travessia do Pacífico. “Já não tínhamos nem pão para comer, mas apenas polvo impregnado de morcegos, que tinham lhe devorado toda a substância, e que tinham um fedor insuportável por estar empapado em urina de rato. A água que nos víamos forçados a tomar era igualmente pútrida e fedorenta. Para não morrer de fome, chegamos ao ponto crítico de comer pedaços do couro com que se havia coberto o mastro maior, para impedir que a madeira roçasse nas cordas. Esse couro, sempre exposto ao sol, à água e ao vento, estava tão duro que tínhamos que deixá-lo de molho no mar durante quatro ou cinco dias para amolecer um pouco. Em seguida, nós o cozinhávamos e comíamos”.

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Com uma dieta baseada em couro, serragem e ratos, os marinheiros adoeciam rapidamente. As gengivas inchavam com a doença do escorbuto, ao ponto de encobrir os dentes. Os marujos eram castigados por fortes dores e sangramentos. A enfermidade impossibilitava qualquer tipo de alimentação.

Só na travessia do Pacífico, 19 homens morreram, incluindo indígenas que haviam sido capturados e eram levados como escravos à Europa. Diante de uma travessia tão dura, Pigafetta anotou em seu diário que acreditava que ninguém viria a se aventurar novamente por aquela rota.

Após três meses no meio do deserto azul do Pacífico, Magalhães encontrou ilhas grandes, onde resolveu desembarcar em busca de repouso. Naquelas ilhas, atuais Filipinas, um dos escravos do português percebeu que os habitantes locais falavam sua língua materna. Ele havia nascido na Malásia antes de ser levado para a Europa. Por isso, alguns historiadores defendem que esse escravo seria o primeiro homem a dar a volta ao mundo e que agora retornava a sua região natal.

Com a chegada às Filipinas, o ânimo de Magalhães declinou. Talvez por ter percebido que a viagem fora mais desgastante do que o razoável para uma rota comercial ou porque se deu conta de que as ilhas Molucas, na verdade, não estavam do lado espanhol do mundo, ficou abatido.

“Magalhães estava preso na teia que ele próprio havia criado. Não tinha como voltar atrás. É provável que ele tenha tido a consciência de que a viagem era, no fundo, um fracasso. Ele começa a buscar uma agenda pessoal qualquer que o permita ter uma sobrevivência ali”, analisa o historiador Paulo Azevedo de Oliveira e Costa. “Ele no fundo sabe que está num beco sem saída, sem poder voltar a Portugal e à Espanha.”

O português, então, começou a entrar em conflitos com reis locais. Meteu-se em desavenças alheias. Com uns criou inimizades, a outros prometia apoio militar.

A um líder filipino ele chegou a dizer que um de seus homens, vestindo uma armadura europeia, era capaz de guerrear contra cem aldeões. Assim, ele se ofereceu para guerrear em nome de um rei local, numa batalha onde teria pouca chances de sobreviver. A bordo de um bote com cerca de 60 de seus homens, Magalhães desembarcou numa praia tomada por mais de mil guerreiros rivais.

Manco por um ferimento que há anos tinha na perna, avançou com dificuldade entre as ondas. Batalhou sob uma chuva de flechas e lanças que vinham da praia. Foi atingido e derrubado três vezes até ser cercado e morto a golpes de lança e sabre. Os soldados retornaram às suas embarcações feridos e sem seu capitão.

Após a morte de Magalhães, oficiais da frota disputaram o comando da viagem, que caiu nas mãos de um navegador espanhol, secundário até este ponto da história: Juan Sebastián Elcano. Ele era um dos que haviam se rebelado contra Magalhães ainda na América.

Coube a Elcano chegar às ilhas Molucas e negociar a compra das especiarias que enchiam as três naus. Os marinheiros tiveram, porém, que deixar para trás grande parte do produto comprado, já que duas das embarcações tinham infiltrações e não aguentariam a viagem de retorno.

Elcano percebeu também que aqueles marujos, já tão castigados, não conseguiriam refazer o caminho de volta pelo Pacífico, como era previsto. O espanhol, então, tomou a decisão que colocou a viagem para sempre na história. Escolheu abandonar o plano de retorno pelo Pacífico e voltou para a Europa pelo Oceano Índico, mesmo correndo o risco de ser pego por alguma frota portuguesa.

“Magalhães não queria dar a volta ao mundo. É Elcano que, depois de tudo o que a tripulação passou, decide voltar pelo Ocidente. Então, é o que chamam de volta ao mundo por acaso, por acidente”, explica Iris Kantor.

A nau Victória avançou pelo mar, por seis meses sem parar, desviando de portos e navios portugueses até chegar às ilhas de Cabo Verde, onde os marinheiros tiveram de ludibriar as autoridades locais para não serem presos por terem percorrido mares portugueses.

Três anos após deixarem a Espanha, os 18 homens retornavam ávidos por velas para poderem agradecer aos céus a graça de terem sobrevivido à viagem que deu a primeira volta ao mundo.

“Naquela época a Terra era redonda. E eles comprovaram isso”, brinca Amyr Klink diante de teorias cada vez mais disseminadas de que a Terra é plana. “Eu lamento desapontar os crentes dessa teoria, mas eu fui lá e vi. Adoraria sentar na beira da Terra, balançar as perninhas e dar tchau para o Universo. Mas não dá, a terra é redonda”.

Quinhentos anos depois do feito da primeira viagem ao redor do mundo, Espanha e Portugal travam uma discreta disputa pelo legado da expedição. Portugueses exaltam o gênio e a tradição marítima lusitana representada por Magalhães, o homem por trás do projeto e que iniciou a expedição (ainda que algumas gerações lusitanas o tenham visto como traidor).

Espanhóis iluminam a parte da saga em que Elcano conduz com maestria o retorno à Europa, passando fome e desviando com astúcia dos portugueses. Em sua homenagem, por exemplo, foi batizado o navio-escola da Marinha espanhola. O historiador Oliveira e Costa gosta da versão que confere os louros aos dois países ibéricos.

Na disputa internacional, Magalhães parece ter obtido maior notoriedade. Virou nome de galáxia, de cratera na Lua e em Marte, além de uma sonda da Nasa dedicada a explorar o Sistema Solar. Com seu nome foi ainda batizado o estreito na ponta sul da América, vencido apenas por sua teimosia.

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