Por Guilherme Poggio*

O evento

Tudo levava a crer que aquela noite de Natal do ano de 2000 seria uma como outra qualquer para os nove tripulantes do submarino Tonelero. Atracado junto ao cais do AMRJ (Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro) desde o começo do mês de novembro, o submarino passava por reparos no seu sistema hidráulico. Por volta das 21:00h, o oficial encarregado de conduzir a manutenção ordenou a “ciclagem” (alagamento) dos tanques de lastro 6 e 7 (TL5 e 6), seguido pela “ciclagem” do tanque 5. Ele não podia imaginar o que estava por vir.

De dentro da embarcação, o oficial que comandava a “ciclagem” dos tanques não percebeu que o submarino havia inclinado muito para a popa, a ponto da superfície do mar atingir a escotilha da praça de máquinas. De repente, a praça de máquinas começou a alagar. Alguns marinheiros correram na direção da escotilha para tentar fechá-la, mas havia um duto flexível de ar passando por ela. O fluxo de água era muito grande e os marinheiros não conseguiram fechá-la. Naquele momento, a força foi cortada e o ambiente ficou às escuras. Sem energia, não foi possível acionar as bombas de esgoto.

Os tripulantes então correram na direção da praça de manobras no meio da escuridão, fechando a porta estanque. Mas a água também avançou para a proa da embarcação através dos dutos de ventilação e pelas redes de extração das baterias. Naquele ambiente escuro e alagado, os tripulantes conseguiram sair pela escotilha superior do torreão, que dá acesso ao passadiço no topo da vela. Pouco antes das 22:00h os dois últimos tripulantes saíram a nado do submarino. Sem recursos para impedir a catástrofe, eles assistiram o naufrágio do submarino. Por volta das 01:00h, o casco havia desaparecido completamente nas águas escuras da Baía de Guanabara.

O Submarino Tonelero

O Tonelero (S-21) era o último submarino de sua classe em operação na Marinha do Brasil. Os outros dois submarinos da classe Oberon (conhecidos como classe Humaitá no Brasil) deram baixa entre 1996 e 1997.

Construído nos estaleiros da Vickers Ltd, em Lancashire – Grã Bretanha, o Tonelero teve a sua quilha batida em novembro de 1971. Um ano depois foi lançado ao mar e permaneceu atracado ao cais da Vickers para a complementação dos sistemas de bordo. No dia 2 de outubro de 1973 um violento incêndio irrompeu no compartimento de manobra enquanto um operário do estaleiro realizava serviços de corte e solda. O incêndio foi controlado posteriormente mas o compartimento de manobra foi totalmente destruído. Além disso, investigações posteriores confirmaram que a estrutura do casco havia sido afetada. O submarino teve que voltar para o dique seco para a substituição de várias cavernas.

Com o acidente, o cronograma foi totalmente revisto e as provas de mar só puderam ser realizadas em 1977. A incorporação do mesmo à frota da Marinha do Brasil ocorreu em dezembro do mesmo ano. Mas o submarino só chegaria ao país no ano seguinte. Durante a viagem de translado entre a Europa e a costa brasileira, o Tonelero demonstrou a sua capacidade de imersão e realizou a viajem totalmente submerso.

No final dos anos oitenta, o Brasil deu início a mais um programa de reaparelhamento e começou a construir submarinos alemães da tipo IKL-209. Com a incorporação dos submarinos da classe 209 era natural que os Oberon fossem retirados de serviço em pouco tempo. Nos seus últimos anos, o Tonelero foi utilizado basicamente como um submarino de treinamento.

O Resgate

Logo após ao acidente com o Submarino Tonelero, a Marinha enviou o navio de salvamento de submarinos Felinto Perry (K-11) para o local. Na manhã do dia seguinte, mergulhadores da Marinha vistoriaram o casco do submarino para avaliar as condições do mesmo. Como medida preventiva, a área foi isolada com barreiras caso ocorresse um vazamento de derivados de petróleo (combustível, óleo lubrificante, etc). Como estes possuem densidade menor que a da água do mar, viriam à superfície assim que escapassem do interior do submarino.

Navio de Socorro Submarino Felinto Perry

Garantidas as condições iniciais e afastado qualquer perigo imediato, a Marinha passou a estudar a melhor forma de recuperar o submarino do fundo da baía. Um dos métodos comumente utilizados num caso como este é a injeção de ar comprimido no interior do submarino, expulsando a água para fora do casco. Mas esta manobra fatalmente expulsaria os produtos oleosos também, podendo gerar um impacto ambiental. Como alternativa, a Marinha decidiu projetar um sistema fechado de esgotamento, isolando a água do interior do submarino da água ao seu redor. Todas as escotilhas foram fechadas com exceção da escotilha do compartimento de máquinas. Nesta última foi fixado um duto, especialmente projetado para a situação, ligando o submarino à superfície. Através do interior do duto uma bomba de recalque submersível foi introduzida para remover a água. Na superfície, a água proveniente do submarino era então encaminhada para um recipiente no interior de uma barcaça que realizava a separação óleo/água.

A instalação do duto foi concluída pelos mergulhadores no dia 31 de dezembro e então iniciou-se o processo de descida da bomba e o respectivo esgotamento da água. Trabalhando em duplas, cerca de trinta mergulhadores se revezavam até que no dia 3 de janeiro, parte da vela estava exposta na superfície. Após a emersão do submarino, dois rebocadores o direcionaram para dentro de um dique seco.

A investigação

Como normalmente ocorre num caso como este, a Marinha instaurou um Inquérito Militar-Policial (IMP) logo após a ocorrência do acidente para apurar as causas e identificar prováveis culpados. De imediato, foram ouvidos os integrantes do grupo de serviço que guarneciam a embarcação na data do acidente. Os seus superiores imediatos, embora não estivessem presentes no acidente, também foram ouvidos. A investigação técnica ocorreu durante a docagem do submarino e os técnicos da Marinha puderam examinar todo o casco e o seu interior. No dia 6 de fevereiro de 2001 a Marinha divulgou suas conclusões.

Os testes no sistema hidráulico principal

Como informado acima, o Submarino Tonelero estava atracado junto ao cais do AMRJ para a realização da etapa final da manutenção no sistema hidráulico principal (SHP). Para se certificar do correto funcionamento do SHP e assegurar que eventuais bolhas de ar presentes no fluido fossem totalmente removidas, o submarino deveria realizar testes em todos os seus mecanismos de acionamento hidráulico, incluindo os suspiros dos tanques de lastro.

  • data e hora inapropriados

O teste com os suspiros dos tanques deveria ser executado no dia 22 de dezembro. Não se sabe o real motivo mas o mesmo foi transferido para a véspera do Natal. Uma data não muito oportuna, uma vez que as estatísticas demonstram que é comum uma maior incidência de acidentes em períodos de festividades. Naquela noite (24 de dezembro), o posto de oficial encarregado da manutenção era ocupado por um primeiro-tenente recém-saído do Curso de Aperfeiçoamento de Submarinos e, por conseqüência, pouco familiarizado com os sistemas do submarino. O oficial decidiu iniciar os trabalhos pelos tanques que já haviam passado pelo serviço no dia anterior, no caso, os tanques de ré (TL7, TL6 e TL5 da popa em direção à proa).

  • TL5 parcialmente cheio

Em relação ao TL5, o mesmo já se encontrava parcialmente cheio com efluentes (ver esquema logo abaixo). De acordo com o projeto dos submarinos da classe Oberon, os efluentes rotineiros dos porões são armazenados no TL5. Essa medida possui caráter ambiental pois o efluente é acumulado neste compartimento apropriado, sem que o mesmo seja descartado para o meio ambiente. No entanto, a capacidade de armazenamento do TL5 é limitada e após um determinado período, o efluente deve ser descartado (geralmente isto ocorre em alto mar). Como a embarcação estava atracada ao cais do AMRJ desde o mês anterior, sem executar uma única saída para o oceano, o acúmulo de efluentes no TL5 tornou a embarcação “mais pesada” na popa. Esta mudança do calado não foi observada pela tripulação que guarnecia o submarino.

  • procedimento incorreto na operação dos mecanismos dos suspiros

Ao invés de realizar a manobra dos suspiros de forma individualizada, foram operados simultaneamente dois tanques de lastro (TL6 e 7). Além disso, não foi feita a injeção de ar comprimido ao mesmo tempo em que os suspiros liberam o ar. Logo em seguida, foi operado o suspiro do TL5 sem observar esta mesma norma. A quantidade da água acumulada a ré do submarino acabou rompendo o equilíbrio e afundando mais a popa. Cabe destacar que toda a manobra foi comandada a partir do interior do submarino ao invés de ser executada do convés.

  • escotilha aberta

Durante a execução da manobra de acionamentos dos suspiros, a escotilha de ré estava aberta, permitindo a passagem de um duto flexível de ar. Esta escotilha deveria estar fechada segundo os procedimentos da Marinha. A presença do duto também prejudicou os marinheiros que tentaram fechá-la quando a água começou a inundar o submarino.

a) Situação normal

A linha vermelha representa a linha de flutuação típica para esta embarcação quando os tanques de lastro estão vazios.

b) Situação anterior ao acidente

O TL5 estava parcialmente cheio (em azul), tornando o submarino “mais pesado” na popa. A escotilha (seta preta) estava próxima à superfície do mar.

c) Situação no acidente

c) Situação no acidente
Com os TL6 e 7 cheios, o desequilíbrio entre popa e proa foi tamanho que permitiu a entrada de água pela escotilha de ré (seta preta).

Conclusão

Uma associação de fatores de ordem humana permitiu que ocorresse o acidente com o submarino. Inicialmente o oficial responsável pela manutenção tinha pouca experiência. Os testes, marcados para a véspera do Natal, foram realizados no período noturno. Contribuiu para o acidente, o fato do TL5 já estar parcialmente cheio. Em relação às normas e procedimentos, diversos itens foram descumpridos. Na tabela abaixo, estão resumidos os procedimentos descumpridos.

Procedimentos descumpridos

Como foi: Como deveria ser:
O submarino estava muito pesado na popa e a escotilha do compartimento de máquinas estava muito próxima da superfície da água. A tripulação deveria observar o fato do calado a ré estar maior que o normal através de uma vistoria externa do casco.
A manobra dos mecanismos de suspiro, marcada para o dia 24 de dezembro, foi coordenada a partir do interior do submarino e executada no período noturno. O procedimento de operação dos suspiros prevê que o mesmo seja coordenado a partir do convés, local onde melhor se avalia o comportamento do submarino. O horário noturno é um horário impróprio para esse tipo de manobra.
Os mecanismos dos tanques TL6 e TL7 foram operados simultaneamente e, em seguida, o do TL5. Não houve injeção de ar. O procedimento de operação dos suspiros prevê a atuação de um mecanismo por vez, ao mesmo tempo que se injeta ar comprimido nos tanques para compensar o escape de ar decorrente da manobra.
O compartimento de máquinas, localizado a ré da embarcação, possui uma escotilha de acesso ao convés. No dia do acidente esta escotilha estava aberta pois existia uma tubulação de ar passando por ela. O procedimento de operação dos suspiros prevê que todas as escotilhas do convés estejam fechadas.

 

Durante a docagem, foram observadas duas pequenas fissuras no TL6 que poderiam ter contribuído para o aumento do calado a ré. No entanto, não foi possível afirmar se estas rachaduras eram anteriores ao afundamento do Tonelero.

Conforme avaliação de técnicos da própria Marinha, o custo para reformar o submarino e colocá-lo em atividade novamente ficaria ao redor de R$ 25 milhões. Além disso, seriam necessários, no mínimo, 24 meses para a execução dos trabalhos. Assim, a Marinha resolveu antecipar sua “aposentadoria” (prevista para o ano de 2003) e em 21 de junho de 2001 o submarino deu baixa do serviço ativo.

Ao longo de sua carreira, o Tonelero navegou 168.368 milhas, sendo 80.636 milhas em imersão. Até sua baixa era o submarino da MB com maior número de horas de imersão e dias de mar.

* Esta matéria foi originalmente escrita para o Poder Naval Online em março de 2004.

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