HISTÓRIA NAVAL: Pouso no submarino Riachuelo
Por Comandante Barreira
Idos de 1983 ou 1984, já não me recordo. Estávamos embarcados na Fragata Constituição (F42). No terceiro dia da operação, recebemos uma chamada de emergência do Submarino Riachuelo (1*), que se encontrava a 80 MN (2*) da costa, com um tripulante necessitando de remoção médica imediata. Como único helicóptero (Lynx) com capacidade de resgate por meio do hoist (3*), fomos acionados para o resgate.
Cumprindo nosso revezamento entre os pilotos, do 3° DAE (Destacamento Aéreo Embarcado), decolamos com o Lima (4*) nos comandos e eu de copiloto (2P). Depois de alguns minutos, encontramos o submarino na superfície nos aguardando. Fizemos nossa aproximação e mantivemos o Lynx pairado a fim de baixar o hoist.
– Chefe…. o hoist não funciona ..
era o fiel, dando a péssima notícia pelo interfone. Lima e eu nos entreolhamos surpresos…
O que fazer? Era esta a expressão nos nossos olhares. Eu, COA (comandante operativo da aeronave); o Lima, comandante do 3o DAE, como mais antigo. Sem discutir a situação, me antecipei e propus ao Lima (4*):
− Se formos embora e abortarmos nossa missão, o “cara” pode morrer. A única alternativa será corrermos o risco de tentar pousar no submarino e recolher o “cara”, arriscando aspirar água salgada, apagando os motores e crasheando no submarino, com todas as consequências disso. Se dependesse só de mim, eu arriscaria, o que você acha?
− Chama o comandante do submarino no rádio e passa nossa situação e nossa intenção e pergunta se ele está de acordo.
O Lima me respondeu com rapidez, dando o seu “de acordo”, enquanto mentalmente se preparava arremetendo, e eu mantinha o seguinte diálogo pelo rádio:
− Riachuelo, Falcão 25. Solicito comandante à fonia.
− Falcão 25, Riachuelo. Comandante Raffo (5*) na fonia.
− Riachuelo, Falcão 25 com hoist inoperante. Única alternativa para resgate pouso “leve nos esquis” com toque no convés. Solicito seu “de acordo”.
Alguns segundos se passaram até a resposta:
− Falcão 25, Riachuelo. Afirmativo! Aguarde “luz verde” para iniciar aproximação.
− Falcão 25. Ciente. Solicito máxima velocidade na superfície. Vento relativo 025° por bombordo. Aproximação gaiuta da popa.
− Riachuelo. Ciente.
Alguns minutos se passaram. Em total silencio na cabine, olhei para trás e percebi que o fiel havia recolhido o hoist e se preparava na melhor posição para receber a maca que seria puxada pela gaiuta. Exigiria muita força para sozinho realizar com sucesso o nosso plano. Aproveitei a curta espera para avaliar o risco que estávamos assumindo. Quanto à habilidade do Lima (ainda com pouco tempo de esquadrão) para executar o pouso, não havia nenhum tipo de preocupação, porque me lembrei que ele havia sido meu instrutor no curso de formação no HI-1 exatamente no voo de instrução de pouso em áreas restritas, quando me ensinou a executar a manobra nas pedras existentes na ponta extrema da região de São Pedro Da Aldeia, conhecida por nós como “Ponta do Roberto Marinho”.
Além de meu amigo, o Lima, tal qual o Russo (6*), era um dos meus “gurus” na arte de dominar um “ovo voador”. Esse não seria o risco, mas sim a aspiração de água salgada dos potentes motores do Lynx na proximidade do mar. Caso os motores apagassem ou fosse perdida a visibilidade, seria muito difícil evitar a perda de controle da aeronave, ocasionando incalculáveis danos materiais e humanos. Além disso, estaríamos contrariando todas as normas de segurança vigentes, nos expondo a punições pesadas, mesmo que tudo corresse bem. Qual o preço de uma vida humana? Esta foi a pergunta na minha mente, que não consegui responder quando o rádio da aeronave recebeu a mensagem:
− Falcão 25, Riachuelo. Papa. Rumo 270. Velocidade 8 nós. Vento relativo no convés 025 BB. Luz verde para aproximação gaiuta popa. Bom pouso.
− Falcão 25. Na final.
O Lima aproximou lentamente. Quando baixamos e comecei a sentir os resultados da água do mar no para-brisas pelo efeito do downwash, acionei o wiper na máxima velocidade e abri a minha porta para ver a posição das rodas sobre o estreito convés do submarino. O ângulo que aproximamos permitiu que o trem de pouso se posicionasse exatamente no limite das bordas do convés. Eu não olhava para o Lima e só transmitia para ele.
− Rodas em posição. Mantenha.
Dentro da aeronave, cada um dos três tripulantes executava suas funções, confiando na eficiência da equipe, sem nos olharmos. Não me lembro exatamente quanto tempo durou essa situação. Para mim, pareceu uma eternidade, mas a verdade é que o tempo foi comparável a uma troca de pneus na Fórmula 1. Então ouvi no interfone:
− Paciente a bordo. Livre decolagem!
Era o fiel dando o “pronto” da parte dele. Fechei a porta e reparei que o Lima estava com a visão degradada pela água no para-brisas, mesmo com o esforço do nosso wiper em velocidade máxima. Consultei todos os instrumentos e reparei que os de temperatura e pressão de óleo dos motores variavam, dependendo da quantidade de água salgada que era aspirada, mas mesmo assim permaneceram firmes, oferecendo potência para salvar mais uma vida. Imaginei os motores como se fossem o coração daquela máquina, com seu sangue sendo contaminado. Essa máquina se chama Lince, e nos seus tripulantes corre nas veias algo como “sangue do Lince”.
− Riachuelo, Falcão 25 decolando. Faina executada com sucesso. Bom trabalho.
− Falcão 25, Riachuelo. Obrigado. Bravo Zulu.
O Lima decolou, e eu transmiti para a Esquadra quando chegamos no alcance do rádio:
− Fragata Constituição, Falcão 25. Tripulante Submarino Riachuelo a bordo. Quarenta minutos para pouso Hospital Marcilio Dias. Solicito retransmitir.
Deixamos nossa carga viva no hospital e voltamos para bordo da Constituição. Achamos melhor não contar os detalhes da missão. O importante era que ela havia sido cumprida e que o sargento estava a salvo. Encerrada a operação, a Esquadra se dirigiu ao porto de Santos.
Era uma sexta-feira à tarde quando a Esquadra atracou, e, como bons marinheiros, nos preparávamos para baixar terra e comemorarmos no Bar da Praia mais uma missão cumprida com eficiência. O 3o DAE tinha motivos mais que suficientes, e convidamos o fiel da aeronave para se juntar a nós três, Lima, Russo e eu, a equipe que voava “por música”. Quando já estávamos prontos, só aguardando o apito que anunciaria a autorização para “baixar terra”, soou o fonoclama do navio:
− Constituição, oficiais à praça-d’armas!
Nos dirigimos para lá ressabiados. Reunião de oficiais na hora de baixar terra não é uma coisa boa. Ao chegarmos, percebi que todos os oficiais estavam curiosos, inclusive o Comandante Dumont (7*), comandante da fragata, que disse:
− Não sei qual é a razão, mas o Comandante Raffo, do Submarino Riachuelo, pediu que eu reunisse os oficiais antes que baixem terra.
Eu olhei para o Lima e percebi o mesmo receio que eu senti. O Comandante Raffo entrou e, sem maiores delongas, disse:
− Pedi essa reunião para compartilhar algo que os senhores não sabem. Ontem ocorreu algo inusitado, e sem precedentes, que eu saiba.
E contou em detalhes o que havia ocorrido no nosso resgate com pouso no submarino. Ao final, completou:
− Eu gostaria de oficializar meu agradecimento de outra forma, no entanto, pelo fato ter sido totalmente irregular, tenho receio que as autoridades entendam de forma diferente. Assim sendo, pediria que todos aqui mantivessem essa história restrita a essas quatro anteparas e que os tenentes Albuquerque Lima e Barreira aceitassem esses brindes como agradecimento e reconhecimento de toda a tripulação do Submarino Riachuelo e que, quando olharem para este brinde, lembrem que vocês ajudaram a salvar uma vida.
Ele se aproximou e nos entregou uma caneta esferográfica de plástico com a inscrição “Submarino Riachuelo”. Depois agradeceu a todos, virou e foi embora. Um certo silêncio pairou por algum momento até que todos nos cumprimentaram e saíram. Nós, do 3o DAE, fomos para o Bar da Praia “tomar todas”. A caneta do Riachuelo se juntou a tantos outros brindes, mas, todas as vezes que a utilizo, sinto que ela escreve mais bonito.
- (1*) Hoje submarino-museu, atracado no Espaço Cultural da Marinha, Rio de Janeiro (RJ).
- (2*) MN − Milhas náuticas.
- (3*) Equipamento hidráulico de içamento por cabo de aço, comandado eletricamente da cabine e operado pelo “fiel” da aeronave.
- (4*) Contra-Almirante (Refo) Mauro França de Albuquerque Lima, então capitão de corveta.
- (5*) O então Capitão de Fragata Carlos Emilio Raffo Junior.
- (6*) Capitão de Mar e Guerra (Refo) Mario Cezar Santos Postarek.
- (7*) O então Capitão de Mar e Guerra Paulo Augusto Garcia Dumont.
FONTE: Revista Marítima Brasileira ( RMB ,V.140), via blog Aventuras do Pirata Alado
NOTA DA REDAÇÃO: O submarino Riachuelo – S22, da classe Oberon, encontra-se preservado como Submarino-Museu no Espaço Cultural da Marinha, no Rio de Janeiro.