O Brasil é um grande país, precisa de uma grande marinha?
O protetor externo das Américas começou a se retirar. As repúblicas americanas tiveram que fornecer sua própria defesa, ou ficar indefesas
Por James Holmes*
Aqui está o que você precisa saber: a Marinha do Brasil anseia por navios normalmente destinados à guerra naval convencional, mas anseia por razões excêntricas. Em certo sentido, a Marinha se assemelha à U.S. Navy após a Primeira Guerra Mundial, que foi quando a Alemanha imperial foi vencida, mas nenhum competidor ainda havia tomado seu lugar como ponto focal da estratégia naval dos EUA.
“Não temos conceito de guerra”, confidencia um professor de estratégia da Escola de Guerra Naval, ou Escola de Guerra Naval do Brasil, no Rio de Janeiro – minha casa longe de casa durante parte de 2018 e um lugar incrível, como o grande Anthony Bourdain poderia dizer. Como assim? Marinhas são forças de combate. Elas existem para duelar com marinhas rivais. Uma marinha que não enfrenta perspectiva de guerra é uma força sem propósito ou direção. Está sem leme.
Certo?
Bem, não exatamente. A Marinha do Brasil, ou Brazilian Navy, tem mais trabalho a fazer do que pode. Está longe de ser sem propósito. Mas seu trabalho não é de combate em sua maior parte. Isso porque o Brasil tem a sorte de habitar o que os membros do Pentágono chamam de um ambiente estratégico “permissivo” e não ameaçador. O Atlântico Sul está livre de inimizades de grandes potências. Uma amistosa marinha de superpotência, a Marinha dos Estados Unidos, fornece uma barreira caso as coisas dêem errado de repente.
Por enquanto, de qualquer forma. O cenário estratégico que existe hoje rege as perspectivas do serviço. A liderança naval deve cultivar o que o especialista em geopolítica Robert Kaplan chama de “previsão ansiosa” sobre o futuro – e se preparar de acordo.
Em vez de se preparar para lutar contra marinhas rivais, a Marinha do Brasil há muito se dedica ao serviço policial. Na verdade, é uma guarda costeira superpoderosa, um serviço de combate cujas principais ocupações consistem em fazer cumprir a lei doméstica, proteger os recursos naturais offshore de caçadores ilegais e ajudar os africanos a reprimir a pirataria.
Concentrar-se no dever policial faz todo o sentido do ponto de vista de Brasília. Se a batalha contra inimigos em alto-mar parece inverossímil – se uma marinha não tem conceito de guerra, mas não precisa de nenhum – poucos governos desperdiçariam recursos financeiros, materiais e humanos finitos se preparando para ela. Resultado: a Marinha do Brasil habita um universo estratégico e mental diferente do da Marinha dos Estados Unidos e de qualquer serviço marítimo que se prepara primeiro para a guerra e executa missões policiais de forma a não interferir nos preparativos de guerra.
Países, instituições e indivíduos muitas vezes habitam mundos mentais diferentes. O analista Robert Kagan certa vez escreveu um tratado opinando que os europeus vinham de Vênus enquanto os americanos eram de Marte. Os Estados Unidos, observou Kagan, lideraram a defesa da Europa durante a Guerra Fria. Os europeus passaram a acreditar que segurança era algo fornecido por terceiros. Eles até insistiram que um mundo governado por leis e instituições internacionais havia chegado. Para eles, a história marcial havia acabado. Se a força não tinha mais uso, fazia sentido se desarmar. E assim fizeram, mais ou menos – deixando-se ainda mais dependentes da proteção de uma superpotência.
Por mais agradável que o ambiente estratégico pareça, os habitantes do Atlântico Sul deveriam se recusar a sucumbir a tais ilusões. A história ainda pode pedir ao Brasil que faça sua parte na defesa do Atlântico Sul ou do hemisfério. Deve estar pronto em termos intelectuais e materiais.
A perspectiva de um conflito armado é fácil de ignorar em um ambiente tranquilo. Como policiais marítimos, os marinheiros brasileiros rastreiam flagelos não estatais em vez de enfrentar armadas hostis. Os ladrões furtivos que infestam os pesqueiros nacionais constituem um fator particularmente irritante. Na verdade, a última “guerra” náutica do Brasil foi a “Guerra da Lagosta” contra a França no início dos anos 1960.
A polêmica começou depois que pescadores franceses começaram a recolher lagostas espinhosas que deslizavam ao longo da plataforma continental brasileira a cerca de cem milhas náuticas da costa. Brasília montou uma demonstração de força naval ao largo de suas costas, e Paris concordou em restringir a pesca nesta reserva offshore. No entanto, as memórias da Guerra da Lagosta perduram – e colorem a estratégia marítima brasileira desde a meio século. Elas afirmam o foco policial da marinha.
Os comandantes brasileiros também se preocupam com a proteção dos recursos naturais do fundo do mar. Como a maioria dos estados costeiros, o Brasil agora reivindica uma zona econômica exclusiva (ZEE) atingindo 200 milhas náuticas fora de sua costa. Brasília acrescentou recentemente uma fatia norte da plataforma continental, que se estende ainda mais para o mar, ao que o oficialato chama de Amazônia Azul, ou “Blue Amazon” – a extensão marítima da bacia do rio Amazonas.
A liderança agora quer expandir sua ZEE ao sul, incorporando ainda mais território marinho à Amazônia Azul. Isso adiciona muito espaço marítimo para a Marinha do Brasil patrulhar. Mas os desafios de origem hídrica não são todos offshore. Na verdade, a marinha brasileira parece muito rara entre as marinhas. Não é apenas uma força costeira ou oceânica, mas uma força ribeirinha com vias navegáveis interiores distendidas e margens adjacentes para supervisionar. Esta não é uma tarefa pequena.
Os rios geralmente são uma bênção. Alfred Thayer Mahan elogiou o rio Mississippi e seus afluentes por colocar o interior da América do Norte em contato com o comércio oceânico. A geografia marítima facilitou o embarque de mercadorias de exportação do interior continental para compradores estrangeiros. Mas o lamacento Mississippi é amplo e, em geral, amigável à navegação. O rio Amazonas não é o Mississippi. Em alguns lugares, os ziguezagues são tão tortuosos que o rio é quase impossível de navegar, mesmo para navegadores experientes.
Pior ainda, os marinheiros brasileiros relatam que o curso de água do Amazonas tem o hábito perverso de mudar de ano para ano. O terreno em mutação destrói o tráfego interno. Mas como o transporte terrestre entre o litoral brasileiro e o interior continua ainda mais tênue, a Marinha atua como o braço humanitário do governo no sertão. Os navios de guerra costumam prestar assistência médica, por exemplo. As embarcações da Marinha dos EUA raramente fornecem esses serviços em casa, exceto após desastres naturais – após um furacão Katrina ou Maria. Para a Marinha do Brasil é uma questão de rotina.
Nem os desafios param com a ZEE, plataforma continental e águas internas. Apesar de seu mandato caseiro, os marinheiros brasileiros olham além de sua fronteira marítima próxima no exterior. Mas eles desafiam as expectativas, mesmo quando o fazem. Olhe para o mapa. As rotas marítimas que transitam pela região fluem principalmente de norte a sul. Navios mercantes e navios de guerra navegam de um lado para o outro entre os portos marítimos do Atlântico e os oceanos Pacífico ou Índico, contornando o Cabo Horn ou o Cabo da Boa Esperança ao longo do caminho.
Em contraste, o mapa mental brasileiro do Atlântico Sul tem uma orientação leste-oeste. Eles olham principalmente para o leste em direção à África, onde piratas atacam navios no Golfo da Guiné. O eixo horizontal para a estratégia brasileira é perpendicular aos padrões de transporte vertical.
É duvidoso que o contágio do banditismo marítimo se espalhe para o oeste através do Oceano Atlântico para afligir a América do Sul. Então, por que – quando a Marinha tem muito o que fazer em casa – Brasília se empenharia em atacar a pirataria em sua fonte e longe do litoral brasileiro? Múltiplos motivos movem o Brasil, como todas as sociedades. Aceitar a custódia parcial da ordem marítima regional permite que a Marinha do Brasil se retrate como uma força do Atlântico Sul para o bem, evitando que corsários distorçam as rotas marítimas regionais – e talvez aumentando as taxas de seguro a ponto de as empresas de navegação redirecionarem o tráfego comercial ao redor da área.
O negócio das pessoas que navegam no mar são negócios. Suprimir a ilegalidade que coloca em risco as trocas, o comércio e a extração de recursos representa uma lógica estratégica sólida e ajuda Brasília a polir sua imagem como um administrador responsável pela segurança do Atlântico Sul. Como não gostar?
A oficialidade naval fez algumas escolhas peculiares de projeto de frota enquanto se esforça para cumprir seu mandato de impor a soberania, prestar serviços sociais e reprimir a pirataria. Para citar um, a Marinha e seus mestres políticos consideram os porta-aviões uma pedra angular da estratégia marítima. Brasília recentemente descomissionou seu navio-aeródromo construído na França, o São Paulo, apenas para negociar com os líderes britânicos para substituí-lo pelo porta-helicópteros anfíbio aposentado HMS Ocean.
Os comandantes navais brasileiros consideram os navios-aeródromo não como navios capitais ou plataformas para invadir praias hostis, mas como campos de aviação itinerantes para o policiamento da Amazônia Azul. Eles não são unidades de alto valor em grupos expedicionários ou anfíbios. Eles vagam pelo mar sem a comitiva familiar de cruzadores, contratorpedeiros e submarinos para repelir um ataque aéreo, de superfície ou subterrâneo. Corvetas e pequenos combatentes afins constituem a maior parte da frota de superfície.
Em suma, os grupos de superfície do Atlântico Sul são criaturas diferentes daqueles do Pacífico Ocidental ou do Mar Mediterrâneo. É chocante para aqueles de nós que representam marinhas com espírito de batalha ver as fotos de um navio-aeródromo brasileiro com poucos ou nenhum navio-escolta ao lado para ficar de guarda. É uma frota implorando para ser golpeada!
Exceto que não é. Agradecidamente.
Não me interpretem mal: navios-aeródromo de escala humilde fazem sentido para o trabalho policial. Na verdade, uma flotilha de cativantes “navios de controle marítimo” semelhantes aos previstos para a Marinha dos Estados Unidos na década de 1970 se ajustaria às necessidades de tempos de paz da Marinha do Brasil melhor do que os dois gigantescos proponentes navais de cinquenta mil toneladas supostamente cobiçados. Com toda a probabilidade, um grupo de helicópteros ou jatos V/STOL voando de vários porta-aviões leves dispersos no mar forneceria uma cobertura geográfica melhor do que uma ala maior operando em um único convés de voo. Afinal, mesmo o maior convés de voo só pode estar em um lugar de cada vez.
E se Brasília não vê necessidade de lutar pelo domínio do Atlântico Sul, então ela tem pouca necessidade de navios-aeródromos maiores do que os porta-aviões da Segunda Guerra Mundial. Por que investir pesadamente em navios capital quando os menores servem?
Outra idiossincrasia: a liderança naval quer uma flotilha de submarinos de ataque com propulsão nuclear (SSNs). Mais uma vez, porém, ela os quer por motivos estranhos à Marinha dos Estados Unidos. (A Marinha do Brasil terá sorte se conseguir mais do que um submarino de ataque em breve. O escândalo engolfou a presidência brasileira, estrangulou o PIB do país e forçou cortes drásticos no orçamento de defesa. Confira o Netflix para um relato fictício desse triste caso que os brasileiros estão assistindo.)
Há vantagens em tal aquisição. A propulsão nuclear concede aos SSNs uma capacidade de navegação virtualmente ilimitada, permitindo que rondem seus campos de patrulha por meses a fio. Longos tempos na estação explicam o fascínio dos SSNs pelos navalistas brasileiros. No entanto, ainda não está claro exatamente o que eles esperam que um submarino de ataque nuclear faça depois de detectar pesca ilegal, perfuração ou mineração submarina. Se as embarcações de patrulha são policiais que carregam cassetetes, então os SSNs são soldados de infantaria que brandem machados de batalha destinados a partir crânios.
Destruir um barco de pesca com torpedos e mísseis antinavio, armamento típico de submarino, seria um exagero – e um exagero caro.
Resumindo, a Marinha do Brasil anseia por navios normalmente destinados à guerra naval convencional – mas anseia por razões excêntricas. Em certo sentido, a Marinha do Brasil se assemelha à Marinha dos EUA após a Primeira Guerra Mundial, que foi quando a Alemanha imperial foi vencida, mas nenhum competidor ainda havia tomado seu lugar como ponto focal da estratégia naval dos EUA. Em 1919, o capitão Harry Yarnell brincou que tentar projetar uma frota sem nenhum inimigo à vista é como forjar uma máquina-ferramenta sem saber se seus usuários pretendem fabricar grampos de cabelo ou locomotivas.
Em outras palavras, a deriva estratégica prevalece quando uma Força não tem adversário para dar direção ao projeto e às operações da força. Mas há um lado positivo no fascínio incomum dos brasileiros por navios-aeródromo e submarinos de última geração: se a Marinha precisar de um conceito de guerra, então algumas das plataformas necessárias para colocar um conceito bélico em prática já estarão no inventário. A marinha pode e deve fazer experiências com eles, aprimorando a doutrina de batalha e as habilidades, para que não cheguem tempos mais proibitivos.
E eles podem chegar. A paz perpétua não chegou ao Atlântico Sul mais do que chegou à Europa sob a proteção militar dos Estados Unidos. Na realidade, o Brasil está curtindo um feriado da história, cortesia da Marinha dos Estados Unidos – uma parceira silenciosa em sua defesa marítima.
E há justiça nisso: os Estados Unidos viajaram livremente na segurança marítima fornecida pela Marinha Real da Grã-Bretanha durante a maior parte do século XIX e se beneficiaram imensamente com a trégua da rivalidade entre as grandes potências. A república foi capaz de subjugar um continente, travar sua guerra civil e promover uma revolução industrial precisamente porque o domínio naval britânico afastou impérios predadores – poupando Washington de colocar em campo uma marinha ou exército caro para defender suas costas e interesses.
Recursos que poderiam ter sido investidos em forças armadas de grande porte foram para o desenvolvimento econômico ou permaneceram em mãos privadas. A indústria floresceu.
Mas a lição dos Estados Unidos do século XIX para o Brasil do século XXI é esta: os feriados não duram para sempre. Use-os bem.
A supremacia marítima britânica ficou sob pressão no final do século XIX. O advento de novas potências industriais – Alemanha, Japão, Estados Unidos – prejudicou a vantagem material da Grã-Bretanha. E quando um desses competidores, a Alemanha imperial, decidiu construir uma grande frota de batalha para enfrentar as Ilhas Britânicas, a liderança em Londres se sentiu compelida a trazer navios de guerra do Extremo Oriente e do Hemisfério Ocidental.
O protetor externo das Américas começou a se retirar. As repúblicas americanas tiveram que prover sua própria defesa, ou ficar sem defesa.
Felizmente, a partir da década de 1880, os Estados Unidos lançaram as quilhas para sua primeira frota de navios blindados com grandes canhões e propulsão a vapor. A Marinha dos Estados Unidos assumiu o fardo da segurança marítima enquanto a Marinha Real deixava sua Estação Americana e voltava para casa para disputar sua corrida armamentista contra a Alemanha. No início do século XX, Washington acumulou um excedente de poder naval que lhe permitiu garantir a liberdade náutica no hemisfério ocidental.
Pode fazer tudo isso porque Londres lhe dera um feriado da história.
Mas o excedente de poder marítimo dos EUA pode ser perecível, como todas as coisas. A ascensão da China, os problemas russos e os diversos desafios da Eurásia agora atraem a atenção, a energia política e os recursos marciais dos EUA para águas e costas distantes. Enquanto o poder naval alemão puxou a Marinha Real para casa, as grandes potências, que fazem confusão, desviam o poder naval dos EUA de casa. As aventuras eurasianas podem expor as Américas a novos perigos na ausência de seu protetor naval.
Portanto, Brasil, por todos os meios, experimente com porta-aviões e submarinos de propulsão nuclear. Você pode precisar deles – junto com um conceito de como usá-los em combate. A defesa hemisférica poderá usar um guardião conjunto em todas as circunstâncias, não apenas nas convenientes.
Desfrute de Vênus – mas passe algum tempo em Marte.
James Holmes detém a Cátedra J. C. Wylie de Estratégia Marítima no Naval War College dos EUA e serviu no corpo docente da Escola de Relações Públicas e Internacionais da Universidade da Geórgia. Ex-oficial de guerra de superfície da Marinha dos Estados Unidos, ele foi o último oficial de artilharia da história a disparar para valer com os grandes canhões de um encouraçado, durante a primeira Guerra do Golfo em 1991. Ele ganhou o prêmio Naval War College Foundation em 1994, por ter sido o melhor graduado em sua classe. Seus livros incluem Red Star over the Pacific, premiado como Atlantic Monthly Best Book of 2010 e incluído na lista de leitura profissional da U.S Navy. O general James Mattis considera o livro “perturbador”.
FONTE: The National Interest / TRADUÇÃO: Poder Naval