Marinha aplicou 17 mil punições em praças e subalternos, mas blindou superiores nos últimos 4 anos
Caserna tem hábito de punir, mas sanções miram patentes inferiores; Força não comenta
Por Vinicius Sassine
BRASÍLIA – Dentro da caserna, militares brasileiros estão habituados a punir seus comandados, inclusive com prisões corriqueiras, mas numa lógica que pune praças, oficiais subalternos e pouquíssimos oficiais superiores, sem punição a oficiais generais. É o que revelam dados inéditos da Marinha obtidos pela Folha.
A reportagem usou a Lei de Acesso à Informação para pedir a Exército, Aeronáutica e Marinha a quantidade de punições aplicadas dentro das Forças Armadas em razão de transgressões disciplinares dos militares. Das três Forças, a Marinha é a única que centraliza e sistematiza os dados.
As planilhas entregues pela Marinha mostram uma rotina de punições a patentes inferiores e de blindagem a patentes elevadas. Esta distorção é motivo de forte insatisfação entre as tropas. Uma quantidade expressiva de casos é judicializada, com ações que tentam reparação na Justiça Militar.
Entre 2017 e o começo de 2021, pouco mais de quatro anos, foram aplicadas 17 mil punições por transgressões de suboficiais, sargentos, cabos, marinheiros e soldados. Isto significa mais de dez punições por dia, em média.
A oficiais intermediários e subalternos, o número foi de 439 em pouco mais de quatro anos, ou uma a cada quatro dias. Entre os oficiais superiores — capitães de corveta, de fragata e de mar e guerra, o equivalente a major, tenente-coronel e coronel no Exército—, houve 76 punições no mesmo período. Isto equivale a uma punição a cada 22 dias, em média.
As planilhas fornecidas pela Marinha não registram nenhuma punição a oficiais generais —contra-almirante, duas estrelas; vice-almirante, três estrelas; e almirante de esquadra, quatro estrelas.
Os chamados oficiais generais englobam as mais altas patentes na hierarquia das três Forças. Na Marinha, são os contra-almirantes, vice-almirantes e almirantes de esquadra. No Exército, são os generais propriamente ditos. E na Aeronáutica, os brigadeiros.
A Folha questionou a Marinha sobre a ausência de medidas administrativas contra oficiais generais e sobre a grande quantidade de atos contra militares de patentes mais baixas. Não houve resposta.
Os números mostram uma concentração das punições entre patentes inferiores, quando comparados com a distribuição de postos na Marinha.
A Força tem 73,8 mil militares, dos quais 11,4 mil (15,4%) são oficiais e 62,4 mil (84,6%) são praças. Os oficiais, porém, respondem por apenas 3% das punições. Os praças, incluídos cabos e soldados, receberam 97% das sanções.
A Marinha pune muito, e com medidas mais duras, como as prisões rigorosas e simples. Em pouco mais de quatro anos, foram 3.800 prisões —mais de duas por dia, em média. Mais uma vez, são os praças os principais punidos, com 93,3% dos casos.
As medidas adotadas intramuros têm consequências que se estendem por anos na vida de militares no começo da carreira. Há jovens que contestam na Justiça Militar, por exemplo, punições por abandono de posto aplicadas há mais de três anos.
Entre tropas, nas três Forças Armadas, causou um profundo incômodo a blindagem oferecida ao general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde no governo de Jair Bolsonaro e atualmente abrigado em um cargo de confiança no Palácio do Planalto.
Pazuello, um dos principais alvos da CPI da Covid no Senado, subiu num palanque político com Bolsonaro no Rio de Janeiro, em 23 de maio, após a realização de uma motociata em defesa do presidente.
Generais que integram o Alto Comando do Exército enxergaram transgressões disciplinares claras por parte de Pazuello, por serem vedadas a militares da ativa manifestações político-partidárias sem autorização.
Um processo disciplinar foi instaurado pelo comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Após o ex-ministro apresentar sua defesa, Oliveira decidiu arquivar o processo, sem qualquer punição ao general. O procedimento ganhou sigilo de até cem anos.
Não se sabe exatamente, do ponto de vista formal do processo, como Pazuello se safou, em razão do sigilo de um século.
Bolsonaro interferiu diretamente para garantir a absolvição de seu aliado, com participação do ministro da Defesa, general Walter Braga Netto. O comandante do Exército concordou com a interferência.
Esta não é a realidade de militares de baixas patentes, sem vínculos políticos. As punições são as mais diversas possíveis, levando-se em conta os dados da Marinha: prisões simples e rigorosas de até dez dias; impedimentos de até 30 dias; repreensões verbais ou por escrito; serviço extra de até dez dias; e condenação a exclusão da Força.
Prisões, impedimentos e serviços extras são as punições mais frequentes entre sargentos, cabos e soldados. A competência para impor as penas é dos superiores, conforme o regulamento disciplinar da Marinha.
O regulamento lista 84 transgressões disciplinares possíveis, como dirigir-se ao superior de modo desrespeitoso, responder de maneira desatenciosa, deixar de fazer o cumprimento militar ao superior, mentir, descuidar da higiene e do uniforme, usar o cabelo fora das normas e ser “indiscreto” em relação a assuntos oficiais.
A ausência de punições a oficiais generais na esfera administrativa se repete na Justiça Militar, como a Folha mostrou em uma série de reportagens em julho e agosto.
Em dez anos, um único oficial general foi punido pelo STM (Superior Tribunal Militar), a instância responsável por cuidar das suspeitas de crimes militares envolvendo esses oficiais. Um contra-almirante foi condenado a dois meses de detenção, a menor pena prevista em lei para o crime apontado — lesão corporal culposa.
Esta pode ter sido a única condenação num período ainda maior, de 30 anos, levando-se em conta os dados abertos do STM. De uma década para outra, dobrou a quantidade de IPMs (inquéritos policiais militares) arquivados após breve investigação de atos suspeitos de oficiais generais. Entre 2011 e 2020, foram arquivados 52 IPMs, ante 25 na década anterior.
FONTE: Folha de São Paulo