Corveta Jaceguai

Corveta Jaceguai - V31

Por Getúlio Cidade

No dia 24 de junho de 2021, durante a Operação MISSILEX, o casco da ex-Corveta Jaceguai foi atingido por mísseis ar-superfície. Primeiramente, por um AM-39 B2M2 Exocet, lançado por uma aeronave AH-15B Super Cougar, seguido de um míssil AGM-119 Penguin lançado por uma aeronave SH-16 Seahawk.

A avaria gerada pelos impactos acarretou no afundamento na área marítima da costa do estado do Rio de Janeiro. Nessa posição, estará para sempre o casco do brioso Gato Preto que, felizmente, teve um fim digno do navio de guerra que foi. Ser afundado em alto mar, palco de suas grandes atuações, é o destino natural de um autêntico navio de guerra em todas as marinhas do mundo e com a Corveta Jaceguai não foi diferente, tendo as águas profundas do oceano Atlântico por sepultura.

A história da vida operativa da Corveta Jaceguai corresponde à boa parte da minha própria vida como oficial de Marinha, fato do qual sempre me deixou extremamente orgulhoso como profissional e como pessoa, orgulho este que nunca escondi, quer fosse dentro ou fora da Marinha do Brasil. Gostaria de compartilhar nestas linhas alguns fatos históricos bem como as memórias que guardo desse brioso navio de guerra, aquelas que vão além dos registros documentais técnicos de rotina, a fim de permitir uma maior compreensão do que representou a Jaceguai para a Marinha do Brasil e, em uma abordagem mais pessoal, para mim.

Navio de guerra projetado e construído no Brasil

Corveta Jaceguai – FOTO: Gerlan Cidade, em 22/07/2011

A Corveta Jaceguai (V31) foi o segundo navio da classe Inhaúma, a primeira a ser totalmente projetada e construída no Brasil, o que foi um marco tecnológico para a Marinha e para o país, permitindo-nos entrar para o rol do seleto grupo de nações com capacidade de projetar e construir navios de guerra. Seu nome homenageia o Almirante Arthur Silveira da Mota, o Barão de Jaceguai, um dos heróis da Guerra do Paraguai que imortalizou seu nome no famoso episódio da Passagem de Humaitá, comandando o Encouraçado Barroso, o primeiro dos seis navios a irromper a passagem fluvial por aquela fortaleza.

O projeto das Corvetas Classe Inhaúma (CCI) foi de extrema importância para a indústria de defesa nacional, pois catalisou seu desenvolvimento em uma época econômica difícil, quando o país enfrentava a dura realidade da superinflação que atravessou a década de 1980 e primeira metade da década de 1990. O fato de ser um projeto genuinamente brasileiro, formulado e executado no país, foi de grande estímulo para a ciência e tecnologia, mais especificamente para o setor de construção naval, elevando a autoestima e o orgulho nacionais.

As quatro corvetas classe Inhaúma operando juntas
As quatro corvetas classe Inhaúma operando juntas no início dos anos 90

A ideia do projeto era produzir navios de guerra que atendessem às demandas da Esquadra que, por sua vez, reduzia gradativamente seu número de navios de escolta com o envelhecimento e a consequente saída de serviço dos contratorpedeiros da classe Allen M. Sumner e Gearing, herdados da US Navy. A concepção era de um navio de escolta de emprego geral, prioritariamente para defesa aproximada ou afastada do litoral brasileiro. Assim, as CCI foram construídas com capacidade de realizar ações de superfície, guerra antissubmarino, guerra eletrônica, defesa aérea de ponto e de apoio de fogo naval, especialmente para tiros de precisão.

Centro de Operações de Combate (COC) da Corveta Jaceguai. As corvetas classe Inhaúma também usam o CAAIS, mas na versão 450 com computadores FM 1600E

Seu sistema de armas e sensores era integrado por computadores com processamento de dados táticos (CAAIS-450) e de direção de tiro (WSA-421) que podiam aumentar significativamente a quantidade de alvos acompanhados, o que diminuía o tempo de reação. Era dotada de canhões, mísseis e torpedos, bem como de equipamentos de guerra eletrônica e de defesa nuclear, bacteriológica e química (NBQ), além da capacidade de levar consigo uma aeronave orgânica. Sua propulsão era provida por dois motores diesel e uma turbina a gás para altas velocidades (sistema CODOG). Por ocasião de sua incorporação, seus equipamentos formavam o estado da arte e o navio estava habilitado a operar em todos os ambientes da guerra naval.

Corveta Jaceguai no início de sua vida operativa, em um de seus primeiros testes de máquinas, dentro da Baía de Guanabara. Ao fundo, o Pão de Açúcar e a Escola Naval

Mais que meras coincidências

Conforme dito acima, minha carreira como oficial de Marinha se justapõe à da Jaceguai, em especial, em seu início. Ainda hoje, intriga-me algumas datas e janelas de eventos marcantes, tanto para o navio quanto para mim, que parecem caprichosamente intercorrer. Por exemplo, o ano de batimento da quilha do navio se deu em 1984, exatamente o ano em que entrei para o Colégio Naval, iniciando minha carreira na MB. Em 8 de junho de 1987, a Jaceguai foi lançada ao mar. Três dias depois, quando se celebra a Batalha Naval de Riachuelo, eu recebia o espadim de Aspirante da Escola Naval, fazendo meu juramento à Bandeira Nacional. No dia 2 de abril de 1991, ela foi incorporada ao serviço da Armada. Além de abril ser o mês de meu aniversário, 1991 foi o ano em que realizei a Viagem de Ouro, regressando como Segundo-Tenente e sendo designado para servir na Corveta Jaceguai.

Assim, cheguei a bordo seis meses após sua incorporação, na tarde do dia 14 de outubro de 1991, juntando-me ao seleto grupo de recebimento do navio que agora compunha a primeira tripulação. Recordo-me, como se hoje fosse, toda a satisfação e ansiedade que vivi ao cruzar a prancha da Jaceguai pela primeira vez, envergando meu dólmã impecável e carregando minha bagagem repleta de uniformes e sonhos de um jovem oficial.

Estão gravados em minha memória o cheiro de tinta fresca, os cabos caprichosamente aduchados no portaló e, principalmente, a alegria desenhada no rosto dos homens que compunham a primeira tripulação da Corveta Jaceguai. Integrar-me àquela talentosa e vibrante equipe de um navio recém-incorporado à Armada fazia-me sentir um pesado fardo de responsabilidade sobre os ombros, sobrepujado, no entanto, pela honra e pelo prazer de servir orgulhosamente à nossa Marinha no navio que era a menina dos olhos da Força Naval. Aqueles oficiais e praças eram o escol dos homens embarcados, e foi com eles que aprendi grande parte da profissão naval, aprendizado este que me forjou pelo restante da carreira.

Primeira oficialidade do navio (dezembro/1991)

Lembro-me também com clareza de minha apresentação, juntamente com meu colega de turma que embarcara comigo, ao Comandante, o então Capitão-de-Fragata Afonso Barbosa (posteriormente, galgou até o posto de Vice-Almirante). Nós nos sentamos em sua câmara e ele falou sobre o desafio de servir em um navio daquele porte e de aspectos da carreira de oficial aos quais devíamos nos ater. Era visível sua alegria em nos receber a bordo. Depois de uma longa conversa na qual, obviamente, ouvimos muito mais do que falamos, ele nos disse que nossa chegada fora uma das melhores coisas que acontecera ao navio nas últimas semanas. Assim foi meu primeiro contato com o meu primeiro Comandante como oficial que, coincidentemente, era o primeiro Comandante da Jaceguai.

Naqueles dias, o navio vinha lutando com um ajuste nos motores para poder fazer experiências de máquinas. No mesmo dia de meu embarque, os motores foram prontificados e a notícia deixou o Comandante ainda mais feliz. Assim, desatracamos do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro no dia seguinte para realizar as experiências de máquinas. Era meu primeiro dia de mar como oficial a bordo da Jaceguai e um dos primeiros de sua vida operativa: o Termo de Viagem nº 005 de 1991. Ainda navegando dentro da Baía de Guanabara, enquanto guarnecia meu primeiro Detalhe Especial para o Mar no passadiço, o Comandante nos chamou e apontou sorrindo em direção à Escola Naval, a boreste do canal de navegação, dizendo que ela era uma etapa vencida em nossas vidas, que tudo passa, por mais difícil que possa parecer (e só quem passa pela Escola Naval poderia captar o que ele estava dizendo). Agora os desafios seriam outros.

Apresentação a bordo do segundo Comandante do navio em maio de 1992, CMG(Ref.) Cunha Couto, que cumprimenta o então 2T Getúlio, oficial mais moderno da tripulação. O então CMG Afonso, primeiro Comandante, está no canto esquerdo. A primeira passagem de comando se deu em 3/6/1992. O Comandante Afonso esteve à frente desde a formação do grupo de recebimento, com o navio ainda em construção, e exerceu uma influência tão forte na formação do espírito do navio que os Comandantes que se seguiram ficaram conhecidos no meio operativo como a dinastia dos Afonsos, termo carinhosamente cunhado em sua homenagem

Estreias e uma intensa vida operativa

Os primeiros exercícios e fainas marinheiras que vivenciei como oficial foram também os mesmos da Jaceguai. Estão na memória o primeiro tiro de canhão 4.5 polegadas, o estrondo que fazia estremecer o navio, o cheiro de pólvora e a vibração do primeiro Comandante no passadiço pelo feito inédito; o primeiro lançamento de torpedo antissubmarino Mk.46 bem como os tiros dos canhões antiaéreos de 40mm; o primeiro lançamento de foguete chaff em um exercício de guerra eletrônica que atravessou a noite toda, totalizando dezenas de granadas, lançadas em salvas, espaçadas por intervalos de quinze minutos, impedindo o sono de quem não estava de serviço no horário e buscava em vão descansar antes de voltar ao próximo quarto de serviço; e assim por diante.

Guardo comigo a lembrança dessas primeiras fainas marinheiras, as primeiras milhas navegadas, os termos de viagem que se acumulavam velozmente, a emoção do apito longo ao suspender e as inúmeras viagens. Como se celebram os primeiros passos de um bebê, celebrávamos as pequenas conquistas do navio, quando éramos bem-sucedidos nos testes de máquinas, de sistemas de armas, tiros de canhões, manobras marinheiras, operações com aeronaves e tantas outras fainas. Antes da incorporação do navio ao setor operativo, participei de todos os testes de integração e aceitação dos sistemas de combate, testes de máquinas e de armamento. O sucesso da Jaceguai se confundia com o meu crescimento profissional.

Além das muitas viagens, o navio virou um cartão de visitas da Marinha do Brasil para autoridades do país e do exterior. No mar, eram inúmeros testes e adestramentos contínuos; em terra, a permanente manutenção do material e a recepção incessante de autoridades, incluindo o Presidente da República. O navio e sua tripulação não tinham descanso, literalmente, mas, no fundo, todos se orgulhavam de fazer parte do Gato Preto.

Gato Preto era o símbolo do navio que, a propósito, foi criado nessa época. Certa vez, ao atracarmos no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, um gato preto entrou pela prancha e permaneceu no portaló, ao lado do oficial de serviço. Ali ele ficava por dias e a própria tripulação o alimentava. Quando o navio desatracava para se fazer ao mar, algum tripulante o tirava cuidadosamente de bordo e o colocava no cais. Ao regressar do mar, logo após se passar a prancha, lá vinha o gato preto novamente se alojar no portaló. Isso se repetiu tantas vezes que ele passou a ser considerado um tripulante e era um dos itens a serem conferidos na passagem de serviço dos oficiais, durante o regime de porto. Sua escolha como símbolo do navio foi unânime.

A bandeira de faina içada com o símbolo do navio: o Gato Preto

Testemunhei a transferência do navio do setor de material para o setor operativo. A Jaceguai foi integrada à Esquadra em agosto de 1992. A partir daí, a vida operativa do navio se tornou ainda mais intensa. Participamos de um exaustivo programa de adestramento da Esquadra que culminou com a inspeção de eficiência que visava colocar o navio em fase III de operação, no mesmo nível que as demais unidades. A partir de então, vieram as primeiras comissões com grupamentos operativos por todo o país, bem como no exterior.

A primeira comissão operativa foi a TROPICALEX I, em março e abril de 1993, não apenas do navio, mas da minha carreira. Visitamos os portos de Belém e Recife e, no exterior, San Juan (Porto Rico) e Port of Spain (Trinidad e Tobago). Nesta comissão, assumi a função de Oficial de Lançamento e Pouso (OLP), liderando a equipe de manobra e crash que operava com a aeronave orgânica do navio, um helicóptero Esquilo biturbina (UH-13). Em águas internacionais, tive o privilégio de conduzir a primeira faina de abastecimento em voo do navio (HIFR) com uma aeronave SH-3 orgânica ao NDD Rio de Janeiro. Durante a travessia, treinamos à exaustão para que tudo saísse perfeito e assim o foi.

Primeiro reabastecimento em voo (HIFR), realizado com a aeronave SH-3 orgânica ao NDD Rio de Janeiro, durante a primeira comissão operativa da Corveta Jaceguai (TROPICALEX-I) em trânsito no Caribe, em 1993. De camisa amarela, o OLP (na época, 2T Getúlio). A foto histórica foi tirada pelo SO-ET (RM1) Odair que se deitou no convoo para capturar o melhor ângulo. Durante anos, ela ornamentou salas e corredores de várias OM, virou calendário na MB e até cartão telefônico da TELEMAR
Faina de transferência de óleo no mar (TOM) entre o NDD Rio de Janeiro
e a Cv Jaceguai em sua primeira comissão operativa (TROPICALEX I/1993)

Somente no ano de 1993, participamos de três comissões para o exterior, incluindo uma UNITAS com a US Navy e outras marinhas, como a argentina e a uruguaia. Além dessas comissões, ainda participamos de outras no país. Em todas, o navio era destaque de eficiência nas fainas e manobras, fato sempre ressaltado pelos comandantes das forças-tarefas. A Jaceguai era a união perfeita do material (máquinas, armamento e sensores) com marinheiros do mais alto nível profissional que inspiravam respeito quando operando com quaisquer outras marinhas.

Primeira participação da Jaceguai na comissão UNITAS (1993). Foto tirada da popa após desengajamento da faina de TOM com o NT Almirante Gastão Motta, desenvolvendo velocidade máxima com turbina a gás. Ao fundo, permanecem ainda engajados na faina o NT e o capitânia da US Navy, USS John Rodgers (CT classe Spruance). Atrás deles, cerca de mil jardas, uma Fragata classe Niterói na posição de navio-guarda

Além da competência e profissionalismo, os períodos prolongados nas operações tornaram a tripulação em uma espécie de segunda família. O espírito do navio é formado pelos homens que o guarnecem e a Jaceguai possuía um espírito excelente, talvez o melhor que conheci em toda minha carreira. Havia um senso de responsabilidade coletivo para honrar o nome do navio e muita união, tanto entre oficiais como entre praças, sempre visando o melhor para o navio. Era uma tripulação alegre, colaborativa e coesa, o que se refletia nas fainas no mar e no porto que eram sempre bem-sucedidas. O espírito de corpo pairava na atmosfera daquele navio e era sentido por qualquer um que pisasse seus conveses.

Talvez por isso, sendo ainda um jovem oficial, a Jaceguai tenha desempenhado um papel tão relevante em minha formação. Durante meu período embarcado, assumi função nos três departamentos (Máquinas, Armamento e Operações, nessa sequência), pois a ideia era que pudesse absorver o máximo de conhecimento possível antes de seguir para o curso de aperfeiçoamento de oficiais. No mar, além de ter sido OLP, assumi também a função de Oficial de Ligação no Apoio de Fogo Naval (AFN) e desempenhei funções em viagem no Centro de Operações de Combate (COC) e no Passadiço (Manobra). Não imaginava o quanto essa miscelânea de funções me seria útil muitos anos depois, quando voltei à Jaceguai como Capitão-de-Fragata, desta vez, para ser seu Comandante.

A V31 navegando em GT em mais uma comissão UNITAS
Realizando operações com aeronave

Regresso triunfante

Naquele tempo tão distante de jovem Tenente, jamais poderia sonhar que um dia regressaria como Comandante do navio. E assim foi, vinte anos depois de ali ter embarcado, após uma longa singradura na carreira e na vida, lá estava eu retornando às minhas origens, a meu lar inicial. Pensei nos homens do mar de alma arrojada que ali conheci e que tanto influenciaram minha formação e nos muitos amigos que fiz. Pensei na despedida de meu pai que ocorrera quando estava a bordo, em uma longa travessia internacional, assim como no início do namoro com minha esposa que também ocorreu quando ali servia. Senti uma alegria inefável ao pisar novamente aqueles conveses e poder voltar ao princípio com o mesmo entusiasmo e devoção. Estava mais que sendo beneficiado por um capricho do destino, mas aquinhoado por um presente de Deus.

Cerimônia de passagem de comando em 22/07/2011
Edição do selo comemorativo dos 20 anos de incorporação à Armada por iniciativa do CMG (Ref.) Athayde, terceiro Comandante do navio (Afonso III) (1993/1994)

Em meu regresso, constatei o óbvio: assim como eu, a Jaceguai envelhecera. A elevada participação em operações navais e o número de dias de mar ao longo dos anos cobravam seu preço. O navio não era mais o mesmo em seu desempenho por um desgaste natural, em especial, das máquinas principais e auxiliares, não obstante os sensores e armamentos estarem em bom estado operativo. Por outro lado, fiz também outra bela constatação. O espírito do navio que eu ajudara a construir em sua tenra idade permanecia alegre, aguerrido e inabalável. A tripulação era outra, mas a alma pulsante era a mesma. Essa foi a maior satisfação que tive ao voltar.

Usei meu conhecimento e concentrei minhas energias em transmitir o que sabia para a tripulação, bem mais jovem e inexperiente, assim como eu fora no início. Acabei aprendendo muito também. Foram dois anos de intensas atividades, troca de informações, aprendizado contínuo e mútuo entre mim e a tripulação, e sobretudo de uma salutar convivência entre irmãos de armas. Estabeleci vínculos fraternos, como da primeira vez, formados na bonança e no estorvo de mares bravios que atravessamos juntos, os quais nem a maresia nem os anos podem corroer.

Portanto, após um longo período de separação, a mesma Jaceguai, que ainda jovem, em uma das fases mais vibrantes de minha vida, recebera-me de braços abertos e me fizera crescer profissionalmente e como homem, prosseguia me inspirando e me ensinando na idade de minha maturidade. Foi assim por todo meu comando, vivido intensamente. Não seria demais dizer que meu laço com esse navio ultrapassava os limites físicos, impostos por pisos e anteparas, mas era uma ligação espiritual, algo que transcende o visível e palpável.

Durante o comando, tive o privilégio de receber a visita do primeiro Comandante da Jaceguai, V.Alte Afonso Barbosa (in memoriam) no dia 28/05/2013. Foi um momento de rara honra receber a bordo não apenas o Afonso I, mas também meu primeiro Comandante na carreira que ali me recebera há 22 anos, por ocasião de meu embarque
Foto com os ex-Comandantes na passagem de comando em 24/07/2013. Da esquerda para a direita: CMG(RM1) Getúlio (Afonso XVII), V.Alte (Ref.) Fernandes (Afonso IV), CMG (RM1) César Marques (Afonso XVIII), CMG(Ref.) Athayde (Afonso III) e CMG (RM1) Passos (Afonso VII)

A inevitável despedida

Quando recebi o convite do Chefe do Estado-Maior da Armada para a mostra de desarmamento da Corveta Jaceguai, em 18/10/2019, já estava na reserva há quatro anos. E outra vez, mais uma coincidência. O navio iria deixar o serviço ativo no mesmo mês que eu o fiz, em outubro. Embora não tenha podido participar da cerimônia por motivos pessoais, acompanhei à distância. A Marinha tratou com a deferência de sempre seus ex-Comandantes, dando uma placa com os dados do comando, acompanhada de uma réplica do Livro do Navio com as páginas referentes ao respectivo período de comando. Ambos são ícones de lembranças vastas e entesouradas do Gato Preto, os quais guardo com muito carinho.

O navio outrora valente nos mares picados, sempre imponente, quer cruzando as ondas tempestuosas ou atracado na calmaria dos portos, símbolo de conquista de nossa engenharia naval e indústria de defesa, e motivo de orgulho para todos os marinheiros que por ela passaram, estava agora reduzido a um casco atracado ao cais. E assim permaneceu até a data de seu afundamento em 24/06/2021.

Aqui reunidos eu (Afonso XVII) com o V.Alte Afonso Barbosa (Afonso I) na última vez em que estivemos a bordo do Gato Preto, em 31/07/2015, pouco antes de eu passar para a reserva. Ele dissera-me do orgulho que tinha em me ter recebido a bordo como Segundo-Tenente e depois ter me visto comandar o navio. Obviamente, o orgulho era recíproco e está estampado na foto. Essa seria também a última vez que veria o eterno Comandante Afonso, meu primeiro Comandante assim como primeiro Comandante da Jaceguai

Até mesmo em seu digno sepultamento, a Jaceguai contribuiu para o aprestamento do material e para o adestramento do pessoal, do mesmo modo que fez todos os dias de sua vida operativa. Ao ver as imagens de seu afundamento, foi impossível não me emocionar. Nos poucos segundos disponíveis em vídeo, enquanto via o casco da então ex-Corveta Jaceguai submergindo nas águas do Atlântico, uma enxurrada de imagens atravessou minha mente. Dentre elas, o momento em que cruzei a prancha pela primeira vez como Segundo-Tenente, bem como a última vez que a desci, com toda a tripulação formada para se despedir de mim ao passar o comando; a alegria da Praça d’Armas ao brindarmos as fainas bem executadas e os inúmeros BRAVO ZULU recebidos; a euforia ao largar as espias para se fazer ao mar e o sentimento de missão cumprida ao regressar ao porto sede.

Muitas outras lembranças afluíram naquele momento silencioso. Por último, vi a silhueta da Jaceguai registrada por uma câmera de imagem infravermelho da aeronave que filmou o afundamento com a proa inclinada para o céu, antes de dar seu suspiro derradeiro e sumir para sempre nas profundezas do mar. Ao olhar o passadiço que permanecera intacto e íntegro mesmo após o impacto dos mísseis, lembrei das incontáveis vezes em que o guarneci em manobras, ou quando ali passava horas estudando algum procedimento, ou realizando exercícios no porto, ou simplesmente contemplando o pôr-do-sol, cada um mais fantástico que o outro. Era meu local predileto do navio. Em um flash, contemplei os rostos dos muitos marinheiros com quem ali servi, ao longo dos anos, para defender nossa Pátria.

Momento do afundamento da Corveta Jaceguai registrado por câmera de imagem infravermelho de uma aeronave

A lembrança mais forte, porém, foi de meu primeiro dia de mar na Jaceguai, em 15/10/1991, exatamente 24 anos antes de eu passar para a reserva, no dia 15/10/2015. Voltei ao início, ali mesmo naquele passadiço que ora desvanecia, e vi meu primeiro Comandante e primeiro Comandante da Jaceguai sorrindo para mim e me mostrando a Escola Naval a boreste do canal de navegação, dizendo que tudo passa. Realmente, nada é para sempre. Aquela imagem vívida na memória diante da cena do afundamento mostrou quão verdadeiras eram as palavras do saudoso Comandante Afonso, sendo que ele próprio já havia partido desse mundo.

Agora era a vez da minha querida Jaceguai. Nossa briosa e indômita Corveta também partia, após uma vida intensamente vivida. Segundo a tradição naval, os navios na área do afundamento de um navio de guerra soam um apito longo como sinal de profundo respeito e assim deve ter sido. Embora seu casco físico partisse em direção ao fundo do oceano, estou certo de que a Jaceguai jamais partirá de meu coração, nem dos corações dos homens do mar que nela tiveram o privilégio e a honra de servir em seus mais de 28 anos de serviços gloriosos prestados à nossa Marinha e ao Brasil.

Eternamente, ao “Gato Preto, Arrepiando!”.

Galeria de fotos da Corveta Jaceguai

SAIBA MAIS:

Páginas das corvetas classe Inhaúma no NGB – Navios de Guerra Brasileiros:

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