Como uma bateria costeira improvisada quase afundou um contratorpedeiro britânico nas Malvinas

 

O texto a seguir foi extraído do Boletim do Centro Naval da Marinha Argentina. De autoria do contra-almirante (R) Julio M. Pérez, ele foi publicado em abril de 2008 e o Poder Naval traduziu e adaptou para os leitores de língua portuguesa.

Após minha formatura como guarda-marinha da ‘Promoción 85’, estudei Engenharia Eletrônica da Faculdade de Engenharia da Universidade de Buenos Aires. Posteriormente, em 1967 e 68, fui destacado para fazer pós-graduação em Orientação e Controle Mísseis na ‘Scuola d’Ingegneria Aerospaziale’ da Universidade de Roma (Itália). No início de 1969 fui novamente nomeado pela Marinha para trabalhar no Instituto de Investigação Científica e Técnica das Forças Armadas (CITEFA), no trabalho de desenvolvimento de mísseis, onde tive a oportunidade de fazer vários projetos.

Mais tarde, fui designado para o Edifício Liberdade (Alto Comando da Marinha), onde, integrando a Comissão de Estudos Especiais, dirigida na época pelo capitão da mar e guerra Juan Jiménez Baliani, foi desenvolvido em 1975, Dentre outros projetos, os estudos para a instalação dos mísseis MM-38 Exocet no contratorpedeiros da classe Fletcher que tínhamos naquele momento (na verdade o Alte Perez usou o termo ‘Fletcher’ para designar contratorpedeiros de classes diferentes, mas que compartilhavam grande semelhanças, como os Gearing e os Allen M. Sunmer).

Em 1976 eu estava lotado e Puerto Belgrano, a fim de finalizar, conforme os estudos anteriores, a instalação dos MM-38 Exocet nos ocntratorpedeiros Py, Bouchard e Seguí e, em seguida, no Piedrabuena, tarefa realizada com grande sucesso.

Em 1981, a Marinha designou-me para integrar uma comissão na França, onde supervisionei a recepção dos AM-39 para os aviões Super Etendard, como também um novo bancada de controle de teste de mísseis Exocet, muito mais avançada do que aquela instalada na Oficina Central de Mísseis de Puerto Belgrano, e que nos permitiu verificar a família inteira de Exocet (MM-38, AM-39 e MM-40) disponíveis na Marinha.

Preparações antes e durante o conflito do Atlântico Sul

Em fevereiro de 1982, época da recuperação das ilhas, instalamos a nova bancada de Controle na Oficina Central em Puerto Belgrano (retornei à Buenos Aires em meados de março). Apesar de ter muitos colegas exercendo funções de comando na Operação Rosário, somente em 2 de abril é que eu tive a informação do desembarque através das notícias de rádio.

No final de abril de 82, após uma falha ocorrida na bancada de mísseis da Oficina Central, eu viajei para Puerto Belgrano e conseguiu resolver o problema através dos esforços de uma excelente equipe de técnicos que ali trabalhavam. Naquela oportunidade atracou na base a corveta ARA Guerrico, comandada pelo meu amigo, o então capitão de fragata Carlos Luis Alfonso, com um dos contêiners de Exocet avariado durante os duros combates em Grytviken.

O contêiner havia recebido um impacto de um projétil que atravessou a cobertura externa e acertou a junção entre os dois propulsores do míssil. Outro projétil acertou a “mangueira”de cabos que enviavam informações obtidas pelo navio para o míssil, causando a entrada água do mar, com consequente perda o isolamento de cerca de 15 cabos condutores que ali estavam conectados. Felizmente, em menos de uma semana foi possível resolver o problema do Exocet e o sistema da corveta estava novamente em operação.

Paralelamente a Força Aérea Argentina havia recebido os mísseis R-550 Magic. Naquele momento nós não havíamos desembalado a bancada de provas dos Magic (do programa de aquisição dos Super Etendard) e, conforme contrato, seria feito com a participação de técnicos franceses na sua implementação. Dada a emergência, conseguimos coloca-lo em funcionamento com o apoio somente do pessoal da Oficina Técnica de Mísseis.

Em meados de maio, recebi uma ligação do vice-almirante Walter Allara, então comandante da esquadra, que me perguntou sobre a possibilidade de remover um dos sistemas Exocet de um dos navios de nossa esquadra para ser transportado para as Ilhas Malvinas e atuar como uma bateria costeira. A idéia era responder ao implacável fogo naval britânico que atacava as posições argentinas nas ilhas, que não tinha como responder com armas adequadas em terra (e especialmente pelos incessantes pedidos do contra-almirante Edgardo Otero, a mais alta autoridade naval as Malvinas, já “famoso” nos despachos enviados).

Minha resposta ao pedido era de que a tarefa levaria em torno de 45 dias e também imaginava que o sistema seria complicado de ser transportado. Para se ter uma idéia da magnitude da missão, a instalação do sistema no navio compreende aproximadamente sete racks (semelhante a armários metálicos) com uma altura de 1,8 metro cada, 50 cm de profundidade e 80 cm de largura aproximadamente, sem mencionar as mangueiras de cabos (15 a 30 cabos individuais).

O almirante Allara disse que não podia esperar tanto tempo, então eu respondi tentaria fazer algo mais rápido e em caráter emergencial, mas não poderia garantir que iria dar certo. Para este fim, o chefe da Arsenal Puerto Belgrano, o capitão de mar e guerra Julio Degrange, assumiu a coordenação dos trabalhos, sendo informado dos avanços do projeto.

Reuni-me no arsenal com os jovens técnicos Antonio Shugt e José Luis Torelli, já haviam trabalhado comigo na instalação da bancada de controle de mísseis e na instalações dos nossos antigos contratorpedeiros, e começamos a trabalhar em um sistema de provisório, que o chamamos por brincadeira de ITB, Instalação de Trio Berreta, em função da precaridade do sistema e, parafraseando o nome oficial do sistema de bordo, chamado ITS (Instalação de Tiro Standard).

Então nós criamos umas “caixas”, que na verdade eram computadores caseiros, com a qual começamos para medir as correntes e os sinais recebidos e transmitidos pelo míssil com o ITB.

Nós usamos um simulador do sistema de guiagem do míssil que é conhecido como “simulador de vetor” para verificar quais eram os sinais e como eles chegavam ao míssil. O simulador de vetor é uma cópia do contêiner do míssil, com uma janela de onde se faz observação de TV para comparar os sinais que recebe o míssil e o que realmente o míssil “verá”, de modo a verificar em última análise os sinais que ele receberá (também possui um sistema eletrônico onde se medem os parâmetros que o míssil recebe).

Estas medições eram feitas em um dos contratorpedeiros substituindo-se toda a instalação de bordo por três caixas e uma série de circuitos eletrônicos que foram sendo projetados. Nosso objetivo final era fazer com que o míssil acreditasse que estava recebendo a informação produzida para uma sistema de controle de fogo completo e não de alguns elementos precários e manuais.

Na operação, uma vez que o míssil está “armado” (realizando seu acionamento e orientando os giroscópios, etc.), o navio envia uma “palavra” (cadeia de dados) de 64 bits com conteúdo já pré-fixado, que não são os dados reais do lançamento do míssil. Em função da informação recebida pelo míssil, este ativa alguns circuitos e envia a palavra de volta para o navio, onde o sistema comprara o que foi enviado com o que foi recebido enviou. Ser for igual, o navio envia uma segunda “palavra”, que já contém alguns parâmetros reais de lançamento. Novamente, o míssil devolve os dados e compara o sistema. Se não há incompatibilidades, uma cadeia final de 64 bits é enviada, mas desta vez com todos os dados reais (distância do alvo, abertura  a janela de busca do sistema de guiagem do míssil, altitude de voo, etc.) e se o míssil retornar os dados com êxito, o disparo ocorre automaticamente.

O tempo requerido para a troca destas três cadeias de bits e suas comparações é de uma fracção de segundo.

Uma vez que a concepção de circuitos mais complexos que pudessem satisfazer as ações da instalação
Envolveria muito mais em tempo, tomei a decisão de que as “caixas” enviariam três vezes os dados reais (a terceira “palavra” é uma sequência normal de disparo).

Finalmente, após quinze dias de trabalho, simulamos todo o processo de lançamento e verificamos no “simulador de vetor” que o míssil recebia a informação desejada. Assim que conseguimos, começamos a procurar por um gerador que poderia entregar uma tensão trifásica de 400 ciclos e um de 60 ciclos. Nessa altura, eu estava certo de que poderia realizar lançamentos com a ITB, mas para garantir que o sistema funcionasse, realizamos cerca de 15 disparos “simulados” com “simulador de vetor” que, em teoria, funcionaram corretamente. Em teoria, nós resolvemos o problema e era possível lançar os mísseis MM-38 da nossa precária instalação.

Paralelamente, nas oficinas do Arsenal Puerto Belgrano, sob a direção o então capitão de fragata Benjamín Dávila, também meu companheiro, foram construídas na base de um par de carretas. Na primeira delas foi montado um suporte para dois contêineres de mísseis MM-38 Exocet (a rampa de lançamento) e no outro instalou-se o gerador elétrico e as “caixas” que formavam a ITB. Este era todo o sistema, que empregava um velho gerador da Siemens com tecnologia dos anos 30, usado pelos fuzileiros navais naquela época para os holofotes de busca de aeronaves (cada uma destas duas carretas pesava aproximadamente 5,000 kg).

Finalmente tudo estava pronto. Naquela época, o capitão da mar e guerra Degrange havia designado um oficial para ser enviado às Malvinas com a instalação, e eu lhe respondi que quem iria era eu porque eu era o único que conhecia o sistema em detalhes, além de ter desenhado os circuitos que faziam o funcionamento da ITB. Tudo foi coordenado e a carga foi transportada por um C-130 Hercules da Força Aérea Argentina.

 continua na parte 2

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André Macedo

O que já foi e o que poderia ter sido a América Latina né? O Brasilzão também não tá muito atrás.
Somos bons mesmo é em nos achar melhores que os outros países e torcer pros britânicos nas “Falquelândias” (se tem algo mais ridículo que corrigir Malvinas pra Falklands eu desconheço).

EduardoSP

Se você acha que os argentinos tem razão em sua demanda, você chama de Malvinas. Se acha que os britânicos tem razão em defender a ocupação daquele território você chama de Falklands.
Não vejo problema nenhum nisso.

André Macedo

Falklands não é um nome em português, e se fosse já seria teria sido aportuguesado antes, você não chama Alemanha de Deustchland, chama? Não foram os argentinos que deram o nome de Malvinas, é apenas por pura birra, vide aquela ladainha sobre “vírus chinês”.

Last edited 2 anos atrás by André Macedo
André Macedo

Correção: Deutschland.

Marcos R

A diferença é que em 82 os mísseis antinavio eram novidade e não v existia doutrina de defesa contra eles. Lembrando ainda que o Glamorgan não contava com 64 S300 e 6 CIWS.

Palpatine

Misseis antinavio já estavam em operação nos anos 60, em 1967 um destruir israelense foi afundado por um P-15 de fabricação soviética

Esteves
737-800RJ

Esses dias eu tava pensando:
se tivéssemos baterias costeiras com mísseis antinavio, seria utilizado o MANSUP (independentemente de seu alcance, seja dos estimados 100 KM ou de uma futura versão com maior alcance) ou o MTC 300, caso tivesse radar para busca de alvos móveis?

Henrique

Utilizar míssil antinavio em terra contra navios é mais fácil que usar um míssil de cruzeiro contra navios.

Thiago A.

Seria legal para os fuzileiros navais, imagino um pequeno destacamento em um arquipélago oceanico ( ou até a partir do continente em situações específicas) em suporte a uma operação da Marinha, ampliando a cobertura dos meios . Mas acredito que séria um uso limitado porque a nossa costa não tem pontos onde essa baterias poderiam ter um valor estratégico relevante. Quantas baterias seriam necessárias para cobrir 7/8000 km de costas ? E com um alcance de 100km não cobriria nem a ZEE ( 200 milhas náuticas). Os modenos mísseis antinavios possuem capacidade de ataque ao solo( Teseo MK2 EVO ou… Read more »

Thiago A.

Teriam mais eficácia em áreas assim, onde existem realmente estrangulamentos e passagens obrigatórias, as distâncias são relativamente pequenas e a
area que você precisa monitorar é menor .

# recentemente as Filipinas compraram uma bateria de BrahMos . Mas lá também para obter um bom resultado contra os meios navais tem de ser integrado com uma capacidade de vigilância e inteligência pela simples razão de que aquilo que você não pode ver, não pode detectar ou rastrear, você não pode engajar.

Thiago A.

Outra área onde esse recurso poderia ter maior sucesso :

Thiago A.

Essa mapa vou colocar só para ter idéia do tamanho do desafio que a MB tem que encarar .

Essas circunferências amarelas no meio do Atlântico possuem aproximadamente a mesma área do Mar Negro ( 436.402 km²) .

Dá para ver como é complicado ter uma boa consciência situacional sobre a Amazônia Azul, sobre o Atlântico Sul é uma tarefa titânica.

Thiago A.

Mar Negro.
Repara as distâncias…

Thiago A.

Agora, voltando para nossa realidade em um ponto onde poderíamos tentar negar o acesso ao Atlântico Sul…

Esteves

Seria um desafio para a Defesa. Não somente para a MB. Terra, Mar e Ar.

Thiago A.

Deveria ser a primeira força a liderar esse desafio, mas atualmente até o mar territorial do Brasil é demais para a MB. A ZEE e o Atlântico Sul são completamente fora da sua realidade.

Leo Barreiro

Fantástico!! Olha o nível de inteligência e de conhecimento desse profissional! Simplesmente o cara fez a engenharia reversa do protocolo de comunicação com o míssil, ou seja, com base no estudo dele, daria para quem ainda utiliza tais sistemas fazer o uso dual! Sendo tanto para navios quanto sistemas terrestres! E ele ainda meio que deu a dica!! Hoje em dia fazer esse tipo de análise não é fácil não é fácil dado que os circuitos são em sua maioria SMD, e geralmente há comunicação segura (criptografada). O que na época não parecia ter, mas mesmo assim dados os recurso… Read more »

Foxtrot

Pois é.
Temos todos os meios prontinhos, bastando apenas a integração.
Se nossas FAAs aprenderem alguma coisa (além das coisas que estão aprendendo hoje), deveriam tirar lições disso viu.

_RR_

Prezados, Constituir uma defesa consistente para um País como o Brasil, com suas águas tão abertas, vai além de mísseis baseados em terra, e não pode centrar-se neles para isso… Há três ramificações principais que julgo serem necessários: (a) uma aviação competente, (b) uma força de superfície enxuta e bem organizada, e (c) uma força submarina de longo curso. Comecemos por (a): interessantemente, já existem no País aeronaves capazes de vigilância naval e ataque, restando aqui apenas a presença de um verdadeiro míssil ar-sup. Dentre tantas com sua função respectiva, há pelo menos três que destaco na forma do MH-16,… Read more »