As sanções unilaterais, as violações das liberdades do ar e do mar e a inflação global

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Por Wagno Sotero*

Precisamos entender o cenário econômico e geopolítico que nos cerca. Atualmente estamos presenciando ameaças à Globalização e o início do processo de Desglobalização por causa das sanções unilaterais entre os países do Norte Global.

De forma resumida, podemos entender a Globalização como a integração de todas as rotas aéreas e marítimas internacionais (RAMI), cumpridas através de contratos de importação e exportação feitos em rede, assegurados pelo sistema Swift ou por qualquer sistema de pagamentos que o substitua ou complemente. Ela permite a segura circulação de bens e pessoas em todo o planeta e complementadas por rotas terrestres e fluviais dos continentes.

Assim a Desglobalização poderá ser compreendida como a redução da circulação de bens e pessoas e a redução da segurança dos negócios entre partes distintas do planeta. Deve estar evidente que se as RAMI forem afetadas, os contratos serão descumpridos, ocasionarão caos logísticos e custos adicionais. Um exemplo foi quando o navio cargueiro Even Given [1] encalhou no canal de Suez em março de 2021. Atrasando por vários dias o desembarque de mercadorias.

Com isto em mente iremos analisar os impactos das sanções unilaterais e sua relação com as violações das liberdades do ar e do mar e a inflação global.

  1. As liberdades do ar e do mar

As liberdades do ar e do mar fazem parte do Direito Internacional que os estados signatários devem respeitar. Ainda que alguns países não sejam signatários, em caso de violações, a Convenção Internacional da Aviação Civil (CIAC) [2] e a Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar (CNUDM) [3] serão a base jurídica para julgamento dos Litígios de transporte aéreos e marítimos.

Os órgãos internacionais os quais mediam os litígios e aplicam o CIAC e o CNUDM são a Organização Internacional da Aviação Civil (OIAC) [4] e o Tribunal Internacional do Direito do Mar (TIDM)[5], por vezes, julgados pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) [6]

1.1 Globalização, rotas aéreas e marítimas e inflação global

Após o fim do Mundo Bipolar, com o colapso do bloco socialista, a Globalização do mundo ficou completa porque todas as rotas aéreas e marítimas internacionais foram integradas sobre as convenções do CIAC e do CNUDM, com regras claras de transportes aéreo e marítimo internacionais. Por causa do advento e avanço da internet, tornaram-se céleres os contratos de importação e exportação de mercadorias e commodities, bem como a circulação de pessoas, provocando o aumento de negócios entre países de distintos continentes, com a menor rota possível e a um custo menor.

Podemos notar que se as RAMI foram alteradas ou suspensas por algum motivo, criar-se-á condições para um cenário de inflação global (IG). Haja vista que se aumentarem os preços dos fretes aéreo, marítimo e de contêiner, haverá custos logísticos nas cadeias de suprimentos, sem contar a inflação de ativos das commodities transportadas devido a escassez.

Vimos este cenário quando ocorreu a crise dos contêineres em 2021 [7] e a crise dos navios petroleiros em 2020, por falta de compradores [8]. A falta de contêineres atrasou o embarque de mercadorias, gerando filas nos portos; A falta de compradores deixou navios petroleiros à deriva nos mares e mais uma vez sobrecarregou os portos.

Esse cenário resultou em IG no biênio 2020-2021.  Depois de duas crises globais seguidas, seria prudente manter intactas as RAMI, independente de quaisquer atritos diplomáticos e bélicos, caso contrário, poder-se-á verificar a IG e indícios da Desglobalização.

Contudo, aconteceu uma afronta contra o Comércio Internacional. Foram impostas sanções unilaterais por causa da Guerra proxy na Ucrânia. Desrespeitaram o direito ao tráfego inocente a navios e o direito à passagem de aviões no Hemisfério Norte. Sob a justificativa de defesa da liberdade!

1.2 Países não signatários da CNUDM

Poucos países não ratificaram os dois tratados. Nessa pequena lista estão os EUA, Síria, Peru, Sudão do Sul, Venezuela, Turquia, Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão e Tadjiquistão são os países que ainda não ratificaram a CNUDM.

As motivações desses países de não ratificarem a CNUDM são variadas. Desde o caso dos EUA que tem a soberba de não aceitar que está sujeito ao Direito Internacional [9] como o caso do Sudão do Sul [10], um novo país que ainda levará algum tempo até a assinatura, ratificação da CNUDM.

1.3 Violações dos Direitos do Mar ou liberdades do Mar e disputas territoriais marítimas antes da Guerra Russo-ucraniana

Os Estados Unidos já cometiam violações de liberdades do mar, quando capturou navio iraniano e confiscou a carga do petroleiro Fortune Busher [11] e outros três petroleiros, em 2020; A China construiu ilhas artificiais no Mar do Sul da China [12], dentro de mares territoriais dos países do Sudeste Asiático.

A pirataria somali no Chifre da África pôs em risco a manutenção e segurança das rotas marítimas daquela região [13]. Sem contar outras disputas marítimas que vez em quando aparecem nos noticiários. Essas disputas continuam a ser arbitradas. Um exemplo recente foi a arbitragem entre a Nicarágua e a Colômbia [14] sobre as águas territoriais do arquipélago de San Andrés, em 2022, no qual a Nicarágua teve parecer favorável da CIJ, mas questionada pela Colômbia.

1.4 Violações das liberdades do ar e do Direito do mar por causa de sanções unilaterais entre países do Norte Global

Em 2021, podemos considerar como violação do ar, a interceptação pela força aérea bielorrussa do voo da empresa aérea Ryanair que foi forçado a aterrissar na Bielorrússia, quando serviços de segurança daquele país prenderam o opositor Roman Protasevich. [15].

Quando iniciaram as hostilidades entre a Rússia e a Ucrânia, foi verificado o aumento do número de violações do ar e do mar no mundo. A União Europeia, EUA, Canadá, proíbem voos comerciais; O Governo Joe Biden [16] e a Comissária da União Europeia, Úrsula Von Der Leyen [17] impuseram sanções unilaterais contra a Rússia, banindo todas as rotas aéreas entre EUA, União Europeia e Rússia. Em resposta, o governo Putin (Rússia) confiscou 740 aviões de propriedade de empresas europeias e norte-americanas [18].

No curto período de quase um trimestre de 2022, praticamente multiplicaram-se o número de violações de liberdades do ar e do mar, por quatro dezenas de países, a maioria no Hemisfério Norte: EUA, Reino Unido, Canadá, Japão, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, países membros da União Europeia e a Rússia.

O direito à passagem de aviões, direito ao tráfego inocente de navios mercantis se tornou uma dúvida, sem contar outros direitos à livre circulação de aviões e navios comerciais. O respeito aos contratos se tornou uma incerteza, portanto toda a cadeia de suprimentos está comprometida por causa da suspensão das rotas aéreas e marítimas do Hemisfério Norte. Prejudicando países do Sul Global. [19].

  1. Inflação global e as violações de liberdades do ar e do mar

Nos noticiários, analistas explicam que a IG [20] se deve a Guerra Russo-Ucraniana, porém está incorreta. Discordo dessa análise.

Um dos fatores que pesou consideravelmente na IG foi a suspensão de RAMI entre a União Europeia e a Rússia. Desencadeada pelas sanções unilaterais entre as partes envolvidas direta ou indiretamente na Guerra Russo-ucraniana. Haja vista que as mudanças de rotas aéreas e marítimas impactaram no aumento dos custos logísticos como frete aéreo, frete marítimo e frete de contêiner. Simplesmente a circulação de bens e pessoas foi prejudicada entre países do Norte Global!

Isso gerou caos logístico e acentuou a crise de containers que já ocorria desde a pandemia de Covid-19, prejudicando a cadeia de suprimentos. Portanto as sanções unilaterais das partes envolvidas da guerra proxy provocou alta nas cotações de commodities nas principais Bolsas de Valores do Norte Global. Observando esse detalhe, podemos notar que a  IG não foi provocada pela Guerra russo-ucraniana.

Devemos lembrar que várias sanções unilaterais se caracterizaram como violações de liberdades do Ar e do Mar. Por isso, podemos relacionar a IG às sanções unilaterais e as violações das liberdades do Ar e Direitos do Mar.

Seria preciso acelerar as negociações diplomáticas entre Rússia e Ucrânia sem prejuízo das rotas aéreas e marítimas, pois já ocorreram outras guerras no mundo, como as Guerras civis etíope, iemenita, birmanesa e as Guerras Azeri-armena; houve escaramuças entre a China e a Índia. E, mesmo assim, as RAMI foram mantidas!

Considero insana a interferência das RAMI promovidas pelos países do Norte Global, pois provoca IG as suas economias e prejudicará consideravelmente os países do Sul Global. Haja vista que as cotações de commodities estão atreladas às Bolsas de Valores do Norte Global.

Outros efeitos das sanções unilaterais são a escassez de commodities, aumentando suas cotações nas principais Bolsas de Valores. Caso outra crise ocorra, como estiagens de safra, inundações ou lockdowns nas cidades chinesas, elevará os custos de vida nas Economias domésticas dos países do Sul Global.

2.1 Enfraquecimento da OIAC, OMI, da TIDM e da CIJ

Se tardar a abertura de processos jurídicos para julgamento das violações das Liberdades do Ar e do Mar, a OIAC, a OMI, o TIDM e a CIJ estarão enfraquecidas como organismos internacionais multilaterais. Perdendo a confiança dos países signatários como instâncias internacionais de arbitragem. Isso gerará riscos à manutenção das RAMI e consequentemente aumento de custos logísticos. O que de fato já aconteceu quando o Irã confiscou dois navios gregos [21] em resposta a ação grega contra navios mercantes iranianos. Além da IG, a Insegurança Jurídica Internacional está sendo consequências das sanções unilaterais.

Deve-se prezar pela manutenção e proteção das RAMI para o mundo pós-pandemia. Evitando a Desglobalização [22]. Se caso esse cenário geopolítico se acentuar, verificaremos um longo período de IG, acentuado ao cenário de pós-pandemia e crise climática.

2.2 A reação diplomática do Brasil e do Sul Global às violações das liberdades do Ar e do Direito do Mar.

O Brasil é um estado signatário da CIAC e da CNUDM. Nosso país possui excelente histórico de respeito às RAMI. Bem como a maioria dos países do Sul Global os quais respeitam esses dois tratados. E agora esses países estão sendo prejudicados indiretamente por causa da IG provocada por sanções unilaterais de países do Norte Global. Aliás, os países do Norte Global desrespeitam abertamente a CIAC e a CNUDM durante as tensões entre a OTAN e a Rússia.

Primeiramente, o Brasil, através do Itamaraty, deve se posicionar como defensor das Liberdades do Ar e Direitos do Mar. Alertando pelo respeito das RAMI. Nesse posicionamento, nosso país poderá se colocar como mediador pelo restabelecimento dessas mesmas rotas.

Ao passo que nosso país, articulado com outros estados, deve entrar com ações na OIAC, TIDM e CIJ para exigir a normalização das rotas aéreas e marítimas internacionais. E devem protestar diplomaticamente em conjunto na Assembleia Geral da ONU. Apresentando uma resolução contra as sanções unilaterais.

  1. Crítica aos Liberais

Está a ocorrer a IG e início do processo de Desglobalização, pois as RAMI que existiam até a Guerra russo-ucraniana foram alteradas ou suspensas devido às sanções unilaterais entre países do Norte global.

A Liberdade de Aviação Civil e a Liberdade de Navegação e portanto o Livre Comércio estão sendo prejudicados escancaradamente com os aplausos de liberais  do século XXI [23]. Assim tento entender. Por quê?!

Onde está a defesa do Liberalismo econômico se as sanções unilaterais adotadas pelos países do Norte global lembram as antigas medidas mercantilistas do século XVIII?

Onde está a defesa do Liberalismo econômico se o livre acesso aos portos e aeroportos foi suspenso ou alterado por uma decisão sem nenhum critério previsto na CIAC e na CNUDM?

Não sei se os autoproclamados liberais do século XXI se lembram, mas os dispositivos que constam na CIAC e na CNUDM são inspirados no Liberalismo econômico e fazem parte do que se chama de Ordem Liberal Internacional [24].

A CIAC foi assinada e ratificada entre os países aliados durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto a CNUDM foi assinada nos ano 80 e passou a vigorar nos anos 90, após a queda do Bloco Socialista!

As sanções unilaterais estão a desacreditar a CIAC e a CNUDM. Isto obrigará os estados signatários a repensarem se compensa continuarem como partes desses Acordos.

A espinha dorsal da Globalização desde a queda do Bloco Socialista foi à integração completa das rotas aéreas e marítimas internacionais, com as menores rotas possíveis, com contratos de exportação e importação negociados em tempo real, o qual o aumento da velocidade da internet tornou céleres a assinatura de contratos e tudo isso foi jogado pelo ralo por causa de sanções unilaterais com aplausos de liberais do século XXI!

  1. Conclusão:

 As sanções unilaterais são a principal causa da inflação global no primeiro semestre de 2022, pois suspenderam ou alteram as rotas aéreas e marítimas internacionais. Gerando caos logístico e crise de abastecimento de commodities, com o o aumento das cotações dessas commodities nas principais Bolsas de Valores do Mundo e escassez.

Os liberais do século XXI são na verdade ideólogos do unipolarismo, que destoa de qualquer liberalismo econômico. Haja vista os aplausos às sanções unilaterais em prejuízo do Comércio Internacional.

Sugere-se maior protagonismo geopolítico do Sul Global, especialmente do Brasil para reagir às decisões unilaterais e irresponsáveis do Norte Global, que está a prejudicar as cadeias de suprimentos. O Brasil deve se posicionar como mediador para o restabelecimento das rotas aéreas e marítimas internacionais. Nosso país deve se articular com demais países do Sul Global pelo respeito as Liberdades do Ar e do Mar.


*Professor de ensino básico a Analista Político – wagnosotero@yahoo.com

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