Entrevista sobre a Tese de Doutorado ‘O submarino com propulsão nuclear brasileiro no Planejamento Espacial Marinho’
O Poder Naval entrevistou o Capitão de Mar e Guerra Alexandre Rocha Violante que, em abril de 2023, fez a defesa de sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos – PPGEST, ligado ao Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST-UFF). As opiniões apresentadas pelo autor são oriundas de suas pesquisas científicas e não representam, necessariamente, a posição oficial da Marinha do Brasil nesses assuntos
Poder Naval – O senhor faz uma correlação em sua tese com o SCPN (Submarino Convencionalmente Armado de Propulsão Nuclear) e o Planejamento Espacial Marinho (PEM). Inicialmente, o que é o PEM e para que serve?
Alexandre Rocha Violante – Primeiramente, é uma satisfação falar com você e os leitores do Poder Naval, meu amigo Alexandre Galante. O planejamento consiste no ato de olhar o presente para pensar o futuro e projetá-lo. Assim, o PEM nada mais é que um amplo processo político de países costeiros que abarca todas as áreas de estudos do mar e suas distintas atividades.
Esse planejamento busca ordenar, metodologicamente, os espaços marinhos, o que envolve diversos atores e interesses nas dimensões social, política, econômica, ambiental e, por que não, estratégica. É nesta última dimensão que se encontra a inter-relação do PEM com a defesa, o que é bem relevante, pois, no caso do Brasil, possuímos litoral com 7.367 km de extensão e cerca de 5,7 milhões de km2 de águas sob jurisdição, ou seja, em que se percebe algum tipo de soberania.
Nem todos os países costeiros têm um PEM. Recentemente, em dados da UNESCO, somente 20 Estados possuíam seus Planos de Gestão Espacial Marinho aprovados e em execução, o que abrange em torno de 22% das Zonas Econômicas Exclusivas (ZEE) mundiais. Outros 26 países estão em processo de aprovação de Planos, resultando em números próximos de 25% das ZEE mundiais.
O Brasil se encontra no grupo de cerca de 80 países que se comprometeram, internacionalmente, principalmente na AGENDA 2030, a desenvolver seus PEM, o que resultaria, aproximadamente, a uma cobertura de 47% das ZEE mundiais. Esses planejamentos se encontram em fase inicial ou ainda nem iniciaram.
Poder Naval – Sob esses aspectos, como a defesa é importante para o estabelecimento do PEM? Há outras áreas mais importantes?
Alexandre Rocha Violante – Todas as áreas do PEM são importantes e possuem seus objetivos e interesses, quer queira, quer não, correlacionados. Conservação e proteção, exploração e explotação, bem como a defesa desses recursos vivos e não vivos ocasionam, muitas vezes, conflitos entre diversos atores. No entanto, esses conflitos podem se converter em oportunidades para a construção de um plano de gerenciamento integrado (produto final do PEM) que possibilite um círculo virtuoso de novos projetos, programas e políticas públicas voltadas ao desenvolvimento sustentável.
Repare que a resolução de conflitos internos é mais fácil que a resolução de conflitos externos – quando o número de atores envolvidos e interesse diversos multiplicam-se. Assim, propósitos bem estabelecidos, que possibilitem relações ganha-ganha e atuações coletivas devem prevalecer diante de atuações individuais de setores junto ao poder público. Apenas a coordenação do processo político PEM pela Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (SECIRM) não é suficiente. Faz-se necessária a participação de todos os atores interministeriais, de suas bases, do cidadão comum ligado às atividades marítimas que garantem o seu sustento diário.
Deve-se pensar o PEM com o simbolismo de união ao qual o mar nos remete. Ele é um elo que interliga povos, culturas e economias. Ao mesmo tempo, não há PEM sem essa união, sem que todas as suas atividades sejam realizadas da forma mais integrada e harmônica possível, mesmo diante de diversos conflitos de interesse. E a defesa está incutida em todas as áreas e atividades do PEM, ou pelo menos deveria estar.
Há muitos poucos estudos da área de “defesa militar-naval” no PEM, seja no mundo, seja no Brasil. Boa parte dos pesquisadores e estudiosos compreendem a defesa como uma área secundária do PEM, restrito ao estamento militar, quando, pelo contrário, envolve, ou deveria envolver, toda sociedade.
Não se pode normalizar o planejamento, proteção, conservação e o uso de recursos vivos e não-vivos nos espaços de soberania marítima sem que a defesa militar-naval esteja inclusa nesse processo. Não basta ocupar o mar, é preciso defendê-lo das ditas “novas ameaças”, como pirataria, pesca ilegal, contrabando, tráfico humano, de drogas e outros ilícitos transnacionais, sem se esquecer, principalmente, das ameaças estatais, haja vista a multipolaridade vigente e a luta por espaços envolvendo Estados hegemônicos e revisionistas no atual sistema internacional.
Dessa forma, em que pese o crescimento das discussões pela exploração e controle dos oceanos, ainda existem muitas dificuldades do Brasil e de seus vizinhos costeiros em estabelecer uma adequada vigilância de suas áreas de responsabilidade junto a uma legislação marítima internacional, que apresenta lacunas importantes na defesa do Direito do Mar.
Poder Naval – Então como manter nossa soberania no mar?
Alexandre Rocha Violante – Como escrevo na tese, defender é, dentre outros aspectos, ocupar os espaços. É pensar, por exemplo, que o pescador solitário, ao navegar pela grande costa de nosso país, está, de certa forma, colaborando para a defesa desses espaços e das nossas riquezas, que devem ser protegidas, conservadas e utilizadas em prol de um desenvolvimento racional e sustentável. Mas esse tipo de ocupação, empregando apenas ações de presença não é suficiente.
A defesa requer um pensamento estratégico do Estado: proteger a população e o território nacional, resguardar as riquezas, forjar o sentimento de maritimidade, garantir o fluxo comercial e dispor de meios capazes de dissuadir eventuais ameaças que contrariem as conveniências nacionais. Afirmar, em suma, sua soberania.
Os países costeiros angariaram grandes espaços jurisdicionais com o advento da Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar. Entretanto, alguns países importantes do sistema internacional, como os EUA, Israel e Turquia, por exemplo, não são signatários da convenção que regula, simplificadamente, os limites territoriais do mar. Há que se ter uma preocupação quanto a isso.
Convém lembrar que se fiar somente ou majoritariamente no Direito Internacional nem sempre é garantia de respeito à soberania, principalmente quando interesses político-estratégicos e econômicos de outros Estados, com maior poder relativo (hard power), estejam envolvidos. Eles podem não respeitar limites e fronteiras, tanto com relação à escassez de recursos naturais, quanto na busca por maior influência em áreas de interesse estratégico.
Países como a China, Rússia e Índia, por exemplo, que representam juntas mais de um terço da população mundial, já dão sinais de que não aceitarão um papel passivo no atual concerto das nações, ante os atuais blocos hegemônicos formados.
Poder Naval – E como fica o Brasil nesse necessário planejamento espacial na Amazônia Azul?
Alexandre Rocha Violante – O Brasil não possui inimigos no sistema internacional, mas deve ficar atento às movimentações da política internacional, da geopolítica dos blocos hegemônicos e de potências revisionistas.
É fundamental, como passo inicial, conhecer o “mar que nos pertence”. Nessa questão, o Brasil tem fomentado diversos projetos e programas de destaque como o LEPLAC, importante programa que possibilitou ao Brasil angariar capacitação técnica para estabelecimento dos limites exteriores da plataforma continental. Outro programa a se destacar é o PROAREA, que busca identificar e avaliar o potencial mineral de regiões com importância política, estratégica e econômica na “Área”[1], além da soberania marítima, mas relevante na elaboração de propostas que possam garantir a exploração econômica de recursos minerais junto à Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos. Este programa é também estratégico, pois contribui para que o Brasil possa explorar espaços adjacentes à sua soberania marítima, procurando minimizar as consequências da cobiça de outros Estados/atores transnacionais nas proximidades das Águas Jurisdicionais Brasileiras (AJB).
Pode-se dizer que o PEM da Amazônia Azul origina-se da CNUDM e, internamente, de políticas públicas como: a Política Marítima Nacional (em atualização) que orienta a aplicação do Poder Naval quanto à segurança e proteção marítima (security), além da segurança do tráfego aquaviário (safety); a Política Nacional para os Recursos Marinhos (PNRM) e seus planos setoriais que visam à consecução de uma gestão integrada dos ambientes costeiro e oceânico para o uso sustentável desses recursos; a Política Nacional de Defesa; e, adicionalmente, políticas públicas de diversos outros setores interministeriais, dada a multidisciplinariedade que o mar possui. Nesse contexto, destacam-se a Política Nacional do Meio ambiente e a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovações (PNCTI).
O segundo passo, ligado ao primeiro, é o estabelecimento de uma Marinha de Guerra crível, que seja capaz de cumprir as tarefas a ela impostas. Aqui destaco, como tarefas básicas à consecução dos objetivos nacionais: a negação do uso do mar, o controle de área marítima, a projeção de poder e a dissuasão. E, para todas elas, o desenvolvimento do projeto do Submarinno Convencionalmente Armado com Propulsão Nuclear (SCPN) é muito importante.
Poder Naval – Bem, já compreendemos a importância do PEM e sua correlação com a defesa. Sobre o SCPN, por que ele é tão importante para o Brasil?
Alexandre Rocha Violante – O projeto da construção do submarino com propulsão nuclear faz parte de um programa maior, o Programa de Desenvolvimento de Submarinos – o PROSUB. Este programa, em parceria com a República Nacional Francesa, foi estabelecido em 2008 e previu a construção de toda infraestrutura portuária, de base e estaleiros específicos, além de unidades industriais importantes para a implementação do projeto de construção de quatro submarinos convencionais (SC) derivados da moderna classe Scorpène (um já entregue à Esquadra – o Riachuelo; o segundo se encontra em testes operativos – o Humaitá) e do primeiro SCPN brasileiro.
O projeto do SCPN iniciou-se em 2012, com o envio de engenheiros à França para qualificação em projetos de construção de submarinos modernos. Ressalta-se que a transferência de tecnologia de hardware ocorre apenas com os submarinos convencionais diesel-elétricos, enquanto a transferência de tecnologia de capital humano (software) abarca tanto os SC e o SCPN. Nenhum tipo de transferência de tecnologia nuclear ocorre nesse programa estratégico.
É interessante salientar que o cerceamento tecnológico, efetuado pelas grandes potências ao Programa Nuclear Brasileiro, vem de longa data, mais intensamente a partir da década de 1950. Em face disso, apenas no final dos anos 1970, precisamente em 1979, devido a várias interrupções do programa, teve início o Programa Nuclear da Marinha, desenvolvido totalmente sob o controle do Centro de Tecnologia da Marinha na USP (CTMSP) e da Marinha, de modo a obter um Reator de Propulsão Nuclear e o domínio do Ciclo do Combustível Nuclear, dentre outros produtos.
A Marinha vislumbrou a possibilidade de construção de submarinos nucleares de ataque com tecnologia nacional, contribuindo para solucionar seu problema de dependência exacerbada dos EUA e da OTAN no controle efetivo das Linhas de Comunicação Marítimas no Atlântico Sul. Assim, incrementar-se-ia sua capacidade de dissuasão, associadamente a uma revolução tecnológica que elevaria o Brasil ao nível de poucas potências mundiais.
Portanto, pode-se afirmar que o SCPN, além de seu alto valor militar para nossa defesa avançada, representa um salto tecnológico imenso, com spin off (espalhamento) para uso civil. A busca por essas etapas importantes do domínio nuclear já perpassa mais de seis décadas de cooperação envolvendo a universidade, indústria e governo (representado pela Marinha do Brasil), na chamada “tríplice hélice” – modelo de inovação em que essas instituições interagem visando ao desenvolvimento autóctone.
Apenas seis países constroem e operam submarinos com propulsão nuclear – os Estados Unidos da América, o Reino Unido, a Rússia, França, China e Índia[2]. Estamos tentando participar desse seleto clube, sem qualquer apoio político dos chamados Estados Nuclearmente Armados.
Poder Naval – O que você espera dessa inter-relação entre esse projeto estratégico tão importante para a soberania nacional e o PEM do Brasil?
Alexandre Rocha Violante – Para começar a responder, socorro-me das palavras do Professor Emérito da UFF, meu orientador e amigo, Eurico de Lima Figueiredo ao afirmar que o poder e a política devem vincular-se à independência nacional e está à defesa e ao desenvolvimento. Não ocorre verdadeiro desenvolvimento sem sistemas críveis de defesa. Logo, desenvolvimento e defesa são conceitos que não podem ser pensados isoladamente.
Desse pensamento percebe-se que o desenvolvimento sustentável está intrinsicamente correlacionado com a defesa. Ao refletirmos o Planejamento Espacial Marinho no SCPN, constatamos uma integração entre as vertentes civil e militar que só se separam por abstrações teóricas. Não há PEM sem a manutenção da soberania marítima. e não há soberania sem que uma Marinha crível se estabeleça para contribuir aos objetivos nacionais de conservação, proteção e uso desses espaços marinhos, com segurança, na Amazônia Azul.
Entretanto, a Defesa Nacional ainda é uma área de concentração de pesquisa muito restrita a poucos estudiosos- a maioria militares. Uma mudança de perspectiva no processo de cooperação e integração multissetorial do Estado brasileiro possibilitará a compreensão de que os Estudos Marítimos e os Estudos Estratégicos sejam mais valorizados, compreendidos e estimulados ao debate. Quanto mais pesquisadores, civis e militares pensarem a defesa, mais se compreenderá sua importância ao desenvolvimento, manutenção da soberania e maior projeção internacional. Tudo isso passa, necessariamente, pela nossa última fronteira, a fronteira leste, a Amazônia Azul, que precisamos (re)organizar com todos os seus stakeholders.
Como discuto na tese de doutorado, há muitos países bem adiantados no processo de integração de uma defesa crível e desenvolvimento sustentável nesses espaços especiais de poder. Os Estados que melhor estabelecerem e coordenarem projetos e planos correlacionados ao desenvolvimento poderão alcançar outro nível estratégico no sistema internacional, dentro de uma contra racionalidade a um pensamento hegemônico, ou seja, uma irracionalidade ao cerceamento explícito e implícito de tecnologias sensíveis a países periféricos.
Essas possíveis formas de transgressão a um status quo que se mantém desde o final da 2a Guerra Mundial passa pela educação básica, fundamental e de nível universitário que compreenda investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e em Ciência, Tecnologia e Inovação (C, T&I), como indispensáveis ao desenvolvimento autônomo e independente, sem maiores submissões a interesses externos. Somente assim, encontraremos condições ótimas para que a binômio defesa e desenvolvimento se mature.
Nossa realidade é difícil. Por vezes, nossas elites política, econômica e intelectual cerceiam programas estratégicos sob argumentos rasos, similares à uma escolha entre “o canhão ou a manteiga”. Muitos ainda não atinaram para que não há desenvolvimento sem ser soberano. Para tal, são necessários investimentos estatais em áreas estratégicas, e a educação é uma dessas áreas além da defesa. Na atualidade, permanecem as discussões sobre o que é gasto e investimento. Enquanto isso, o Brasil continua, a passos largos, seu processo de desindustrialização e transformação em uma grande fazenda modernizada, cuja economia, depende cada vez mais da variação do preço das commoditties.
Poder Naval – Sobre a AUKUS, você acha que mais ajuda ou atrapalha no processo de implementação do SCPN?
Alexandre Rocha Violante – Excelente pergunta, mas temo deixar seus leitores sem uma resposta clara. Ainda há muitas poucas informações concretas de como ocorrerá essa cooperação internacional, esse acordo de defesa envolvendo dois países nuclearmente armados – EUA e RU – e um país não nuclearmente armado do hemisfério sul, signatário do TNP e de seus protocolos adicionais, mas não participante do chamado Sul Global. À princípio, o objetivo é o fornecimento de submarinos convencionais de propulsão nuclear à Austrália, como um “pacote fechado”, com transferência de tecnologia em inteligência artificial, técnicas quântica, cibersegurança e em outras áreas que não a de de hardware nuclear. Desse modo, a Austrália não seria capaz de desenvolver a propulsão nuclear de seus submarinos.
No entanto, esse objetivo final poderá ser modificado, à medida que conflitos perpassam as cooperações internacionais. Crescem as tensões no Mar Negro, no Mar do Sul da China, no Oceano Índico, por disputas por espaço e poder que envolvem atores revisionistas ao status quo vigente, como Rússia, Índia e China, esta última mais assertiva em robustecer seu Poder Naval relativamente à USNavy, não apenas em números de meios, mas, principalmente, em nível tecnológico.
Ainda inserido nessa “insubordinação hegemônica” do Estado brasileiro, que é a entrega do primeiro SCPN à nossa Esquadra, desde 2012, com o avanço desse projeto estratégico incrementam-se pressões externas para a adesão aos protocolos adicionais, de 1997, ao TNP. Este fator envolve uma aceitação mais intrusiva de um controle internacional severo e sujeito a inspetores internacionais da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) ao Programa Nuclear da Marinha de enriquecimento de urânio para fins pacíficos, em qualquer hora e local, inclusive sem aviso prévio. A adesão, sem maiores contrapartidas e entendimentos poderá afetar o desenvolvimento do sistema de propulsão nuclear do submarino brasileiro, pois seria possível revelar segredos industriais que se originam dos anos 1970, como, por exemplo, a tecnologia de ultra centrífugas a céu aberto, entre outros.
Cabe ressaltar que o Programa Nuclear da Marinha já se encontra sob salvaguardas da AIEA, estabelecidas desde 1991, por meio do acordo quadripartite envolvendo a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC). O Brasil tem cumprido todas as formalidades e exigências da AIEA quanto ao uso de combustível nuclear, de modo a evitar, a todo custo, uma imposição dos cinco países nuclearmente armados para a adesão ao Protocolo adicional do TNP. O Brasil foi o primeiro país não nuclearmente armado, aderente ao TNP, a apresentar a 1a proposta de salvaguardas nucleares, os chamados procedimentos especiais para desenvolvimento e uso de combustível nuclear para fins pacíficos em reatores, tanto para o LABGENE quanto para o SCPN. Com isso, a AIEA poderá realizar inspeções programadas para acompanhar os elementos combustíveis até certo ponto, controlando o que entra e sai, dentro de uma lógica de uso pacífico que prevê o enriquecimento em níveis menores do que os empregados em armamentos nucleares.
Vamos esperar que os anseios do Brasil, neste que é, apesar de algumas controvérsias, o único projeto de Estado e estratégico de fato, pois apresenta alto grau de desenvolvimento de tecnologia de uso dual, importantíssimo aos mais diversos setores de desenvolvimento nacional, como a indústria de defesa, de geração de energia limpa, a indústria farmacêutica, o agronegócio e outras de uso multipropósito possam alavancar seus objetivos sem as costumeiras restrições orçamentárias e impedimentos externos.
Como explica o geógrafo brasileiro Milton Santos, mais conhecido no exterior, principalmente na França, onde foi laureado com o prêmio Lautran Vud (o prêmio Nobel da Geografia), a globalização é perversa aos atores periféricos e benéfica aos atores centrais, pois o mundo de hoje é cenário da compressão espaço-tempo, em que a informação é transmitida aos locais escolhidos no momento desejado. Aumenta-se a produtividade, a eficácia e maior rentabilidade daqueles que controlam as técnicas especiais, sensíveis. Com isso, os recursos passam a valer mais de acordo com o local a que pertencem, de sua qualificação geográfica.
Esse é o tempo dos Estados primeiro-mundistas e dos grandes atores transnacionais, enquanto o tempo dos demais Estados periféricos, subdesenvolvidos e, até mesmo, nomeados como “em desenvolvimento” (para amenizar suas realidades) utilizam técnicas que apenas mantêm a roda do sistema de produção e financeiro mundial em funcionamento, sem substantivas participações nas benesses da globalização. Estes Estados tornam-se mero distribuidores de matérias-primas, espaços de destruição que garantem reservas estratégicas ao consumo exacerbado e ao crescimento econômico resrrito a alguns poucos atores, que desenvolvem os ditos espaços especiais de desenvolvimento
Assim, tecnologias sensíveis, como a nuclear e outras da revolução industrial 4.0, devem pertencer a uma gama restrita de atores – os Estados Nuclearmente Armados e empresas transnacionais que rendem dividendos aos Estados possuidores dessas técnicas de produção. Isso acaba por justificar a acelerada luta por espaços geográficos, recursos vivos e não vivos, além de vantagens competitivas envolvendo o “Sul global” e o “Norte desenvolvido”.
Poder Naval – Quais foram os resultados da avaliação do PEM e do SCPN?
Alexandre Rocha Violante – Muitos. Espero que todos os seus leitores fiquem curiosos para conhecê-los. Caso desejarem, eles podem aprofundar-se em detalhes com a leitura de minha tese de doutorado que, brevemente, estará disponibilizada na Rede BIM da Marinha, no repositório de teses da CAPES, na página do PPGEST/INEST-UFF e no Observatório do PROCAD-DEFESA.
Dando um spoiler, no capítulo final: “Conclusões e Implicações do SCPN no PEM”, apresentei um paralelo entre tais projetos estratégicos (PEM e SCPN), suas consecuções e perspectivas de implementação, corroborando as teses iniciais apresentadas de que o Planejamento Espacial Marinho ainda não possui centralidade maior à Defesa Nacional, e que o desenvolvimento do SCPN, apesar de indispensável à soberania nacional, tem apresentado gaps estruturais derivados de um pensamento estratégico naval subordinado a interesses externos.
Esses projetos, entre 2012 e 2022, apresentaram dificuldades que, se não interromperam as discussões do PEM e a continuidade do SCPN, demonstraram, salvo alguns períodos excepcionais, o não entendimento pelo poder político como projetos de Estado importantes à consecução dos objetivos fundamentais da Nação.
Poder Naval – Quais são suas considerações finais?
Alexandre Rocha Violante – Alexandre Galante, já nos conhecemos há muito tempo. Foi muito bom ser entrevistado pelo amigo, aqui no Poder Naval. Você é um dos precursores do importante papel desempenhado por pesquisadores civis na área da Defesa, que buscam tornar-se temas tão importantes, populares na sociedade. Seu exemplo foi seguido por muitos. Observamos, nas duas últimas décadas, a multiplicações de revistas, blogs e outras plataformas digitais com conteúdo relevante sobre as Marinhas, Exércitos e Forças Aéreas não apenas do Brasil, mas de diversos países do mundo. Isso reflete o começo da solidificação de um pensamento estratégico crítico, principalmente sobre que Marinha queremos e que tarefas as FFAA devem desempenhar ante as ameaças interestatais em curto, médio e longo prazo.
Espero, também, que minha pesquisa contribua, juntamente com seu trabalho de divulgação da Defesa Nacional, para que as relações entre civis e militares cada vez mais se estreitem, possibilitando se pensar um Brasil uno para todos os cidadãos, independente de suas orientações políticas, credo, cor, sexo etc. É assim que ocorre nas grandes potências, em que nada é mais real e nacional do que a sua Defesa, devendo seus interesses serem resguardados onde quer que estejam. Para os países menos aquinhoados pelo poder, nada é mais ideal e menos nacional do que sua própria Defesa. Só assim o Brasil será respeitado não apenas por seu povo, mas pelos blocos hegemônicos, líderes do atual sistema multipolar em que estamos inseridos, onde o conflito se destaca mais que a cooperação.
Sobre o mundo conflituoso em que vivemos, este faz parte das relações humanas, tanto em nível micro, na política das pequenas coisas do dia a dia, até em nível macro, nas grandes decisões pela guerra para a obtenção dos objetivos políticos que, como bem conceitua Clausewitz, é a continuação da política por outros meios. Na verdade, apesar de diversos filósofos, cientistas sociais e cientistas políticos tentarem explicar a natureza do homem como neutra ou como boa, cada vez mais pesquisas científicas sérias, como a do cientista israelense Azar Gat, no livro: “War in Human Civilization”, apresenta evidências históricas de que a guerra é um fenômeno universal, presente em todas as culturas e épocas, e que não pode ser completamente eliminada, pois é, simplificadamente, um instrumento de conquista, expansão territorial e controle de recursos, além de um meio de proteção contra invasões externas. Sua obra nos ensina que as tentativas de contenção da violência em diferentes culturas e períodos históricos, como as leis de guerra, os tratados internacionais e os esforços de cooperação internacional logram êxito apenas parcialmente e em períodos bem restritos. Assim, empiricamente, talvez Hobbes tenha sido o contratualista que mais tenha se aproximado da verdade.
De fato, nossas relações sociais iniciaram-se muito mais por meio do conflito que pela cooperação. Isso é bem representado na pesquisa paleontropológica, sobre a evolução humana, realizada por Arthur C. Clarke, que subsidiou parte de seu romance, “2001: uma odisseia no espaço”, de 1968, posteriormente levado às telas cinematográficas no mesmo ano, sob a direção de Stanley Kubrick. Esta obra, em sua parte inicial, mostra como nossos antepassados, há milhões de anos atrás, na chamada “Aurora do Homem”, organizaram-se como comunidades políticas, criaram ferramentas importantes à evolução, como ossos de outros animais, sofisticando a caça e, por conseguinte, a ingestão proteica, proporcionando-lhes incrementar suas inteligências e dominarem outras comunidades pelo uso da força. O salto no tempo mostra a evolução do homem e dessas ferramentas na era espacial. Ou seja, desde os primórdios da vida humana na Terra, a guerra se mostra uma realidade. Negá-la ou minimizar sua possibilidade, como alguns estudiosos apresentam, acabam por colaborar com uma “harmonia de interesses” dos grandes atores globais para a manutenção do status quo, incrementando desigualdades tecnológicas, subordinações e dependências, ou, ainda, levando a uma utopia desejável, mas ainda distante e que não coaduna com a natureza humana.
Concluo, rogando que nossa sociedade compreenda, por meio das universidades, FFAA, governo e empresas, que apenas com o domínio de capacidades, de tecnológicas sensíveis, o Brasil alcançará as técnicas necessárias para libertar-se das amarras do subdesenvolvimento, causado não apenas por cerceamentos externos, mas por um pensamento estratégico colonial e subordinado às grandes potências, que se alimenta de um complexo de vira-latas, em que tudo que vem de fora é melhor do que o aqui desenvolvido. O desenvolvimento do SCPN e do PEM da Amazônia Azul fazem parte dessas escolhas emancipadoras.
Término, novamente, com palavras do cientista prussiano Carl Von Clausewitz: “Lembrai-vos da Guerra”!
Muito obrigado, um forte abraço e vamos em frente!
Alexandre Rocha Violante é Capitão de Mar e Guerra, 1o Doutor formado no Brasil na área de conhecimento específica dos Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pelo PPGEST, ligado ao Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST-UFF). Atualmente é Instrutor de Relações Internacionais da Escola de Guerra Naval (EGN), Professor Colaborador da Graduação em Relações Internacionais na UFF, ministrando, voluntariamente, a disciplina “Poder Naval na História”, e Coordenador Científico da Revista Caderno de Ciências Navais.
Participa, ainda, voluntariamente de cinco grupos de pesquisa:
- Projeto Paddle – gerenciamento dos oceanos, como pesquisador associado à Universidade de Sevilla, Espanha.
- Estudos Marítimos e Ciências do Mar, como Pesquisador da Escola de Guerra Naval;
- Centro de Estudos Estratégicos e Planejamento Espacial Marinho (UFF/UFPEL), como pesquisador da região sudeste;
- Salvaguardas para o Submarino Convencionalmente Armado com propulsão nuclear do PROCAD – DEFESA, liderado pelo INEST-UFF em parceria com a EGN; E
- Coordenador Executivo do Grupo de Estudos de Estratégia Naval da EGN.
[1] Conforme o art.136 da CNUDM, a “Área” é definida como bem comum da humanidade. Ou seja, os fundos marinhos e subsolo além da plataforma continental são espaços em ques nenhum Estado exerce quaisquer direitos de soberania sobre recursos os recursos (vivos ou não vivos) lá existentes. Na “Área”, sua exploração é concedida pela Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos.
[2] Estado não signatário do TNP e que teve pesquisas nucleares apoiadas pela então URSS.