Classe Tamandaré: contrato foi reajustado para mais de 11 bilhões de reais no ano passado
A construção das 4 fragatas classe ‘Tamandaré’ está ficando mais cara, com praticamente um reajuste divulgado a cada ano desde a assinatura do contrato em março de 2020 . Já são 2 bilhões de reais a mais.
Fernando “Nunão” De Martini
O Poder Naval apurou, a partir dos extratos publicados no Diário Oficial da União (DOU) referentes ao programa da classe “Tamandaré”, que o valor total do contrato aumentou significativamente. O contrato passou de aproximadamente 9,1 bilhões de reais para 11,1 bilhões desde que foi assinado entre a Emgepron e a Sociedade de Propósito Específico (SPE) Águas Azuis em 4 de março de 2020.
São cerca de dois bilhões de reais adicionados ao valor do contrato até o momento, conforme as publicações no DOU, sendo que esses extratos não necessariamente são publicadas no diário logo após a assinatura – há um caso, como veremos, de vários meses entre a assinatura do reajuste e a sua divulgação no DOU. Analisamos a questão, a seguir, com mais detalhes.
Periodicamente, o Poder Naval acessa relatórios anuais de gestão da Marinha do Brasil (MB) que abordam os diversos programas em andamento. Sobre o da classe “Tamandaré”, especificamente, analisamos os relatórios de gestão anuais da Emgepron (Empresa Gerencial de Projetos Navais). Isso porque a Emgepron, empresa pública vinculada ao Ministério da Defesa por intermédio do Comando da Marinha do Brasil, é a responsável pelo programa desde que foi capitalizada em cerca de 10 bilhões e 250 milhões de reais entre 2018 e 2019.
Esse montante foi capitalizado para contratar e realizar os pagamentos tanto dos 4 navios da classe “Tamandaré” (quantia reservada de 9,5 bilhões de reais) quanto do navio polar Almirante Saldanha (quantia reservada de 750 milhões de reais) atualmente também em construção.
Essa pesquisa periódica rendeu matéria bastante detalhada sobre todo o processo de viabilização da classe Tamandaré, publicada pelo Poder Naval em 15 de julho de 2022. Clique no link abaixo para acessar.
Porém, um termo aditivo ao contrato foi assinado quase no mesmo dia da publicação da matéria acima, informação não entrou na matéria. O motivo de não ter entrado é porque sua publicação no Diário Oficial da União (DOU) deu-se apenas no início do mês seguinte, em 2 de agosto de 2022. Mas antes tarde do que nunca: o aditivo foi devidamente “captado” pelo nosso radar, em suas voltas periódicas para cobrir novidades desse programa. E a notícia é preocupante, pois o contrato para os 4 navios foi reajustado para 11 bilhões e 104 milhões de reais. Segue abaixo o texto integral do extrato do termo aditivo e a captura de tela da publicação no DOU:
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO
Publicado em: 02/08/2022 | Edição: 145 | Seção: 3 | Página: 35
Órgão: Ministério da Defesa/Comando da Marinha/Empresa Gerencial de Projetos Navais
EXTRATO DE TERMO ADITIVO Nº EGPN-27/2020-003/01
Número do Processo NUP: 61984.002697/2019-30; Contratante: Empresa Gerencial de Projetos Navais – EMGEPRON, CNPJ n.º 27.816.487/0001-31; Contratada: ÁGUAS AZUIS CONSTRUÇÃO NAVAL SPE LTDA.; CNPJ n.º 36.277.163/0001-63; Espécie: Primeiro Termo Aditivo ao Contrato nº EGPN-27/2020-003/00; Objeto: Modificação dos Apêndices: B (Cronograma do Contrato), C (Formação do Preço), F (Cronograma Físico e Financeiro e das Garantias) e AC (Estrutura Analítica do Programa) do Contrato Inicial; Valor do Contrato Atualizado: R$ 11.104.613.932,36; Prazo de Execução: 04/03/2020 à 03/01/2030; Data de Assinatura: 14/07/2022.
Este foi o primeiro termo aditivo do programa, mas não o primeiro reajuste. Em agosto de 2020 foi assinado um “apostilamento” (tipo de reajuste que prescinde de assinatura de termo aditivo por não haver alterações de cláusulas) em que o contrato original foi reajustado em quase 500 milhões de reais. Veja abaixo o extrato do apostilamento, que só foi publicado no DOU em janeiro do ano seguinte, ou seja, quase 5 meses após a assinatura desse reajuste:
Para comparação, o valor do contrato original assinado em 4 de março de 2020 foi de 9 bilhões e 98 milhões de reais, como se pode verificar na captura de tela, abaixo, da publicação original no DOU:
Em resumo, são praticamente 2 bilhões de reais de diferença entre o contrato original de 9,1 bilhões de reais, de 2020, e o valor atual de R$ 11,1 bilhões, conforme os reajustes divulgados no DOU em 2021 e 2022. Isso considerando não ter ocorrido assinatura de novo reajuste neste ano – ao menos não localizamos nova publicação a respeito no DOU, até o momento de publicação desta matéria. Como vimos, pode haver uma separação de meses entre a assinatura e a sua publicação no Diário Oficial da União.
Fazendo as contas
Com isso, na chamada “conta de padaria” que muitos usam para comparar com o custo unitário de contratos pelo mundo afora (que é a divisão do valor total do contrato pelo número de navios, ainda que os contratos possam incluir outros itens como treinamento, transferência de tecnologia, logística inicial etc) o valor de cada uma das 4 fragatas cresceu consideravelmente, tanto em reais quanto em dólares, moeda em geral utilizada nessas comparações (embora boa parte do custo dos itens importados para a classe “Tamandaré” seja em euros). Passou de 2,27 bilhões de reais por navio em março de 2020, equivalentes a quase 430 milhões de dólares ao câmbio daquele dia (R$ 5,3 para US$ 1), para R$ 2,77 bilhões em 14 de julho de 2022, ou cerca de US$ 508 milhões ao câmbio daquela data (R$ 5,45 para US$ 1).
Ao câmbio mais recente (flutuando em cerca de R$5 para US$1, ainda que nos últimos dias tenha chegado próximo a 4,90 para 1) os 2,77 bilhões de reais por navio equivalem a aproximadamente 555 milhões de dólares nesta “conta de padaria”, e o contrato completo bate em cerca de 2,2 bilhões de dólares.
Em euros, as conversões são as seguintes para cada navio (ainda considerando a conta grosseira de dividir o valor total por 4): 450 milhões de euros quando da assinatura do contrato em março de 2020, 506 milhões de euros ao ser assinado o último reajuste em julho de 2022, e 518 milhões de euros cada navio ao câmbio do final de outubro deste ano.
O contrato completo de 11,1 bilhões de reais, hoje, equivale a cerca de 2,75 bilhões de euros. A conclusão é que os navios estão ficando caros, tanto em reais para o bolso do contribuinte, quanto em dólares e euros na comparação com outras classes de navios e contratos internacionais.
Copo (ou cofre) meio cheio ou meio vazio?
Se há algo de positivo em relação às publicações no DOU, tudo indica que o programa continua a cumprir os prazos. Ainda que o extrato de termo aditivo mais recente mencione alteração em anexo do contrato sobre o “Cronograma Físico e Financeiro”, nele o prazo final para execução continua o mesmo desde a assinatura original em 2020: dia 3 de janeiro de 2030.
Porém, preocupa o fato de que o valor da capitalização da Emgepron destinado ao contrato das fragatas foi de 9,5 bilhões de reais, ou seja, há uma diferença de 1,6 bilhão entre essa reserva original e o contrato reajustado para 11,1 bilhões (o total da capitalização foi de cerca de 10,25 bilhões de reais pois incluiu o navio-polar, como vimos).
A Emgepron, conforme noticiado mais de uma vez neste site, aplicou o valor capitalizado para não sofrer perdas com a inflação durante o período de pagamentos do contrato. O valor disponível, porém, logicamente vai diminuindo conforme os pagamentos são feitos à SPE Águas Azuis.
Pode-se fazer um cálculo aproximado do quanto já foi pago e o quanto ainda restava pagar, menos até 31 de dezembro de 2022. E também é possível ter uma ideia, grosso modo, do rendimento anual das aplicações do montante da capitalização, a partir das informações dos relatórios de gestão da Emgepron publicados entre 2020 (ano de assinatura do contrato) e 2022 (ano das informações do último relatório).
Fazendo mais contas
Em 2020, o pagamento à SPE Águas Azuis foi relativamente pequeno. Em parte, acreditamos que isso se deu porque o contrato, assinado em 4 de março, entrou em execução apenas em 4 de setembro, “após terem sido cumpridas as condições de eficácia previstas”, segundo o relatório de 2021, restando poucs meses naque ano para a execução. Só então foi iniciado oficialmente o cronograma de atividades. O relatório de 2020 menciona a realização de apenas 95,7 milhões de reais para o programa das fragatas, em relação ao originariamente orçado de 1 bilhão e 526 milhões de reais, devido a “problemas enfrentados pelo Consórcio Águas Azuis em 2020, atrasando a etapa inicial do contrato e levando a EMGEPRON a executar menos que o previsto”.
Supomos que os problemas tenham ocorrido devido ao primeiro ano da Pandemia do Coronavírus, que afetou todas as cadeias de produção globais. Conforme o relatório, “a execução dos valores orçados foi postergada para o exercício de 2021”.
De fato, no ano de 2021 foi executado um total de 1 bilhão e 106 milhões de reais para o programa das fragatas classe Tamandaré. Já no ano de 2022, a Emgepron informou a execução de 2,25 bilhões de reais no programa.
Assim, segundo as informações dos relatórios de 2020 a 2022, a soma dos valores repassados à SPE Águas Azuis para a construção das 4 fragatas chegou a aproximadamente 3 bilhões e 451 milhões de reais em 31 de dezembro do ano passado. Como o contrato atualmente está em 11,1 bilhão de reais com os reajustes já mencionados, faltaria pagar cerca de 7,6 bilhões.
Porém, originariamente o valor destinado ao programa era de 9,5 bilhões, e na “conta de padaria” entre esse valor e o que já foi pago, restariam apenas uns 6 bilhões de reais em caixa ao final do ano passado.
Na verdade, restou consideravelmente mais do que isso disponível: a Emgepron relatou que em 31 de dezembro de 2022 tinha em caixa, para o programa das fragatas classe Tamandaré, um total de 6,96 bilhões de reais. Isso representa cerca de 900 milhões a mais do que haveria na conta simples em que se desconta os 3,45 bilhões pagos dos 9,5 bilhões reservados. A diferença é o rendimento do valor aplicado ao longo dos anos.
Isso fica mais claro ao olhar o quadro apresentado no relatório de 2022, no caso um quadro focado apenas no caixa do ano passado:
Percebe-se que, entre 31 de dezembro de 2021 e 31 de dezembro de 2022, o valor reservado para o programa das fragatas classe Tamandaré (PFCT) caiu de 8,6 bilhões para cerca de 6,9 bilhões, ou seja, 1,7 bilhão a menos. Porém, como vimos, no mesmo relatório a empresa informou ter repassado à SPE Águas Azuis 2,25 bilhões de reais. Assim, há uma diferença positiva de pouco mais de 500 milhões (2,25 bi – 1,7 bi) entre o que deixou o caixa e o que deveria estar lá. Essa diferença, ao que tudo indica, é o rendimento das aplicações financeiras, ao longo de 2022, do valor reservado ao programa.
Obviamente, a porcentagem dos ganhos pode variar ano a ano, mas esses cerca de 500 milhões de rendimentos em 1 ano servem de parâmetro.
Pode-se fazer uma conta semelhante sobre o ano de 2021: se teoricamente havia 9,4 bilhões ainda em caixa após os 95 milhões pagos em 2020, e ao longo de 2021 foram pagos 1,1 bi (conforme o relatório de 2021, como já vimos), deveria haver 8,3 bilhões em caixa em 31 de dezembro de 2021. Mas, conforme o quadro acima, havia 8,6 bi, ou 300 milhões a mais. Ou seja, mais um parâmetro para rendimento em 1 ano: cerca de 300 milhões. Na média dos dois anos, temos 400 milhões de reais de rendimento anual.
Como resultado das aplicações, um “rombo” que poderia ser de 1,6 bilhões entre o valor originariamente reservado de 9,5 bilhões e o valor reajustado do contrato, atualmente em 11,1 bilhões, é bem menor. Como vimos, em 31 de dezembro a Emgepron tinha em caixa para o programa da classe Tamandaré 6,9 bi, e uma projeção de pagamentos de 7,6 bi divididos entre os próximos anos (11,1 bilhões do contrato atual menos os 3,45 pagos). Nessa conta, o “rombo” é de cerca de 700 milhões de reais, ou menos de 50% do “rombo” se o montante não estivesse aplicado.
Potencialmente, essa diferença de 700 milhões será coberta pelo resultado das aplicações financeiras ao longo dos anos que ainda restam para os pagamentos. Ainda que o valor total aplicado caia, e junto com ele o rendimento anual (e nessa lógica o rendimento será menor do que os 500 milhões que aferimos em 2022, ou mesmo que os 300 milhões de 2021, pois há diversas variáveis envolvidas), consideramos plausível que as contas batam ao final do período. Mas em caso de novos reajustes dificilmente o rendimento das aplicações bastará para cobrir a diferença.
Ainda que não haja novos reajustes e que, hipoteticamente, os rendimentos do montante aplicado bastem para cobrir os pagamentos do contrato de 11,1 bilhões de reais, fica o gosto amargo de uma reflexão: caso os reajustes no contrato não tivessem chegado a cerca de 2 bilhões em relação aos 9,1 bi iniciais, esses rendimentos poderiam reverter em equipamentos adicionais para os navios, por exemplo.
Fazendo perguntas
As conclusões acima são nossas, baseadas no que temos de informações disponíveis nos relatórios de gestão e nas publicações do Diário Oficial da União. O ideal é que dúvidas como estas possam ser respondidas pela própria Emgepron, mesmo porque extratos do DOU carecem de detalhamentos.
Será que os rendimentos do valor capitalizado, ainda esperados para os próximos anos, realmente cobrirão o aumento em relação ao valor original? Ou será necessário aumentar a capitalização da Emgepron, ou mesmo outro tipo de operação para cobrir uma eventual diferença?
Por que foi necessário aumentar o valor do contrato, primeiro em cerca de 0,5 bilhão, depois em pouco mais de 1,5 bi, passando dos 9,1 bilhões contratados em março de 2020 para os 11,1 bilhões conforme o último reajuste de julho de 2022?
Foram questões de ordem técnica, como mudanças nos equipamentos, ou foram reajustes relacionados à inflação dos produtos de defesa em todo o mundo, que ocorreram devido à Pandemia e à Guerra na Ucrânia? Ou foram ajustes relacionados ao câmbio? Pode-se esperar novos reajustes?
Enviamos perguntas como estas acima à Emgepron
Após uma semana do envio das perguntas, ainda não obtivemos respostas, então decidimos publicar esta matéria sem elas. Quando a empresa nos enviar as respostas aos questionamentos enviados, publicaremos no Poder Naval para complementar os fatos aqui mostrados aos nossos leitores.