Um encouraçado contra o forte – parte 3
por Guilherme Poggio (*)
A movimentação dos navios e o combate
Na madrugada do dia 4 para o dia 5 os oficiais envolvidos no planejamento do ataque reuniram-se a bordo do encouraçado Minas Geraes e discutiram os detalhes da ação. O São Paulo seguiria na frente e logo atrás dele viria o Minas Geraes, mais para bombordo. O contratorpedeiro Paraná, com a flâmula de contra-almirante arvorada, apenas acompanharia o bombardeio. Por volta das onze da noite o São Paulo recolheu o ferro e seguiu rumo à entrada da Baía de Guanabara.
Assim que soou o aviso de postos de combate às 7h25 a tripulação guarneceu as torres principais de 305mm com exceção da 4, cuja guarnição encontrava-se dividida pelas demais. Por falta de pessoal, as baterias de 120mm das casamatas também não foram guarnecidas. Neste mesmo momento ouviram-se dois disparos provenientes do forte. Não vieram na direção do encouraçado. Nem tão pouco foi possível identificar a direção dos mesmos a partir do navio, mas eram granadas de 190 mm disparadas contra instalações terrestres.
Às 7h55, vinte minutos após a guarnição suspender em postos de combate, a torre 2 do São Paulo realizou o primeiro disparo. Este seguiu na direção do Forte de Imbuí e felizmente caiu na água. Foi um disparo acidental, devido ao apontador ter calcado a chave de fogo. Exatamente às 8h00, o Forte da Vigia sinalizou para o encouraçado e este disparou sua primeira salva de cinco tiros em direção ao forte.
Devido ao nevoeiro baixo não foi possível observar o ponto exato atingido pelas granadas. Segundo relato do encarregado geral do armamento a bordo do encouraçado São Paulo, capitão-de-corveta Guilherme Ricken, os tiros foram “curtos, com boa direção”. Porém, pelo relato do capitão Euclides da Fonseca, os tiros foram “longos e, portanto, perderam-se”. É mais provável que o relato do capitão Euclides esteja correto, pois além de estar mais próximo do local da queda das granadas, a observação do capitão-de-corveta Ricken foi afetada pelo nevoeiro baixo.
Nova salva foi disparada pelo navio dezoito minutos depois. Mas antes disso, o forte havia disparado duas vezes, seguido por mais três disparos logo em seguida. Tanto a fumaça das chaminés do navio como a fumaça cinza dos disparos da cúpula de 190mm não permitiram confirmar o acerto sobre o alvo. A terceira salva foi feita às 8h22 e novamente a guarnição não pôde observar em relação aos acertos. Enquanto isso, o forte continuava disparando, mas não contra o encouraçado.
A última salva do São Paulo foi dada às 8h30 e desta vez, pela fumaça levantada pela explosão das granadas de aço (com carga de projeção reduzida em três quartos), a fortificação foi atingida.
Às 9h07 o Forte da Vigia confirmou a rendição do Forte de Copacabana, que içou uma bandeira branca. O sinal de cessar-fogo (bandeira P) foi içado pelo Forte da Vigia para o São Paulo. Mesmo com esta confirmação, o encouraçado continuou atento, navegando entre a Fortaleza de Santa Cruz e a Ilha Rasa até o período da tarde, quando recebeu ordens para retornar e fundear no poço. O Minas Geraes havia retornado para o poço às 9h45 e acabou não executando nenhum disparo contra o forte. O contratorpedeiro Paraná, onde estava o Chefe do Estado Maior da Armada, só regressou após o cessar-fogo.
Ao todo, o São Paulo disparou cinco salvas contra o forte, totalizando 19 ou 20 granadas (dependendo da fonte pesquisada). Segundo relato do capitão Euclides, foram dezesseis disparos, sendo que “quatorze foram longos e, portanto, se perderam. Apenas dois atingiram o frontão esquerdo da frente da obra, lado do mar”.
Questões em aberto
Após a leitura do relato acima, a primeira pergunta que surge é: por que o forte não disparou contra os navios? Para responder a esta indagação, a única fonte de informação vem dos próprios revoltosos. Conforme relato do capitão Euclides, a cúpula encontrava-se no rumo da Vila Militar quando o tenente Siqueira Campos alertou-o sobre a presença de três navios que transpunham a barra. A elevação dos canhões fora baixada para 0º e a cúpula foi então manobrada na direção dos mesmos. Durante o giro para leste, houve perda de pressão hidráulica por falha no motor diesel que vazava óleo. A cúpula parou no rumo do Forte da Vigia. O eletricista alertou o capitão Euclides de que os copos do motor diesel foram arrancados durante a confusão. Sem dúvida, um ato de sabotagem contra os revoltosos.
Não se sabe se este ato era do conhecimento das tropas legalistas e dos comandantes que participaram do combate. Mas por que a Marinha colocou em risco suas principais unidades de combate? A ação ocorreu à luz do dia, sob tempo bom (somente a visibilidade estava prejudicada pelo nevoeiro baixo). O combate foi travado em curta distância e a baixa velocidade. A blindagem dos navios não era suficiente para resistir aos impactos disparados pelo forte e este mostrava-se um alvo difícil de ser eliminado. Ou seja, quase todos os elementos táticos do combate agiam desfavoravelmente à ação dos navios.
No entanto, a dúvida permanece. A cúpula dos canhões de 305mm estava avariada, mas e as demais peças? Sabe-se que os canhões de 190mm estavam plenamente operacionais no momento do ataque. Os disparos contra os alvos em terra demonstram isso. Em momento algum a cúpula foi manobrada na direção do São Paulo. Sob o comando do tenente Siqueira Campos, os canhões fizeram dois disparos pouco antes de avistarem o encouraçado. Depois da segunda salva disparada pelo São Paulo, outros dois disparos de 190mm foram feitos, mas também não seguiram na direção do navio. Ao todo, mais de dez disparos foram feitos entre as 7h35 horas (momento em que o São Paulo transpôs a barra) e as 8h28 horas (dois minutos antes dos últimos disparos do São Paulo) e nenhum deles seguiu na direção dos navios.
Não se conhece a operacionalidade do canhão de 75mm (face norte) naquele momento, mas mesmo este seria de grande valia, pois o São Paulo estava dentro do seu alcance.
Outro ponto em aberto é a real posição do São Paulo durante o combate. Cruzando as informações referentes à ordem de batalha estabelecida previamente, chegou-se a duas hipóteses excludentes. Ou o navio manteve a velocidade definida de 9 nós ou manteve o setor de fogo pré-estabelecido. Para a elaboração das duas hipóteses, partiu-se do princípio de que o primeiro disparo foi feito no alinhamento entre a fortaleza de Santa Cruz e o Forte de Copacabana numa distância aproximada de 6.000 metros.
No primeiro caso, adotando-se a velocidade de 9 nós constante, ficou demonstrado que o São Paulo percorreu uma distância equivalente a 4,5 milhas náuticas ou aproximadamente 8340 metros entre a primeira e a última salva. Sendo assim, as outras quatro salvas foram disparadas fora do setor de fogo previamente estabelecido e parte do bairro de Copacabana estaria à mercê de eventuais disparos longos (principalmente nos últimos dois disparos).
Comparativo entre as duas possibilidades das posições do São Paulo durante o combate. Na imagem da esquerda estão identificados os pontos de onde partiram as salvas, mantendo-se a velocidade de 9 nós e os horários dos disparos. Na direita a área restrita do setor de fogo limitado às marcações verdadeiras do forte entre 250º e 227º.
Na segunda hipótese, mantendo-se todas as salvas dentro do setor de fogo previamente definido, o encouraçado praticamente permaneceu parado. Acredita-se que esta segunda hipótese seja a mais correta, pois realmente existia a preocupação de minimizar a exposição da população ao risco e, se os relatos do capitão Euclides estiverem corretos, os “tiros longos” perderam-se no mar. Caso esta segunda hipótese se confirme, o estado de quase imobilidade do São Paulo é mais um elemento tático desfavorável para a ação do navio, reforçando a tese do conhecimento prévio por parte da forças legalistas em relação à sabotagem da cúpula de 305mm.
O desfecho
Durante o combate, o ministro Pandiá Calógeras telefonou para o forte com o propósito de negociar o cessar-fogo. O capitão Euclides deixou então o forte e seguiu para o palácio do Catete para negociar com o ministro da Guerra, mas foi preso. Diante deste desdobramento, o restante dos revoltosos tomou uma atitude idealista. Não mais combateriam no forte. Sairiam para combater as tropas legalistas. Antes disso, uma bandeira foi cortada em 29 pedaços, que foram distribuídos para cada um dos 28 revoltosos. O tenente Siqueira Campos guardou a vigésima nona peça para ser entregue ao capitão Euclides quando o encontrasse.
Caminhando pela orla, os revoltosos seguiram na direção do Leme. Alguns abandonaram a marcha logo no início, parte do grupo seguiu em frente até encontrar resistência. O combate com as tropas legalistas durou das 13h45 até as 15h. Não se sabe exatamente quantos homens combateram até o final, mas o grupo ficou eternizado como “os dezoito do Forte”. Destes, somente dois sobreviveram; os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes. O governo imaginou ter, assim, sufocado a revolta e contido os ímpetos dos militares. Mal podia desconfiar que este era o início de um ciclo de revoltas que só terminaria sete anos depois.
(*) O texto foi originalmente publicado no antigo site do Poder Naval OnLine em novembro de 2008. A versão atual foi ligeiramente modificada e atualizada.
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