por Guilherme Poggio (*)

Cruel, inescrupuloso e exímio navegador. O português Cristóvão Jaques era o homem certo para a missão. Designado capitão-mor da armada responsável pela proteção dos interesses portugueses na América, Jaques deveria caçar corsários e outras naves estrangeiras que estivessem explorando a colônia brasileira clandestinamente. Experiência também  não lhe faltava, já que esta era sua terceira viagem à América do Sul.

A oportunidade para colocar em prática suas habilidades estava próxima. Dias antes, a caravela São Gabriel havia sido despachada para o sul em missão de reconhecimento e trocado tiros com navios franceses em “la bahía”, como era conhecida a Baía de Todos os Santos naquela época. Sabendo da localização, da quantidade e da capacidade no inimigo, Jaques também contava com o fator surpresa para iniciar o combate. Seus adversários estavam prestes a enfrentar um habilidoso navegador na arte da guerra naval.

Brasil esquecido

O relato das três primeiras expedições portuguesas ao Brasil informava ao rei de Portugal, D. Manoel, que além de árvores de pau-brasil, nada mais havia de proveito. Naquele momento, as viagens para a Índia mostravam-se muito lucrativas e a coroa portuguesa voltou seus recursos principais para o comércio com as colônias do Oriente. O Brasil não ficou esquecido, apenas colocado em segundo plano e arrendado para um consórcio de comerciantes portugueses de pau-brasil, liderados pelo português Fernando de Noronha.

A derrubada e o transporte de pau-brasil – André Thevet (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro)

A existência de pau-brasil nas terras recentemente descobertas por Portugal repercutiu muito na Normandia, um dos principais polos têxteis da época. Sabendo da existência de um vasto território abundante em pau-brasil e fracamente defendido, os mercadores privados no norte da França (Bretanha e Normandia) decidiram organizar expedições para a colônia lusitana. Até então o governo francês de Luís XII pouco interveio na ação dos corsários de seu reino. A política oficial francesa começou a mudar com a subida ao trono do Rei Francisco I em 1515. Opositor ferrenho do Tratado de Tordesilhas, partilha territorial feita em 1494 entre Portugal e Espanha, as forças do rei passaram a atacar possessões espanholas por todo o globo. Além disso, rompeu acordos e tratados que tinha com Portugal em 1524 e passou a questionar a legitimidade deste país em relação ao Brasil. Contando com apoio governamental, os corsários franceses passaram a agir no litoral brasileiro de forma mais intensa, inclusive atacando feitorias portuguesas aqui instaladas.

Espanhóis e franceses se encontram no litoral da Bahia

Em julho de 1525, uma frota espanhola partiu do porto de Sevilha com o objetivo de refazer a viagem de Fernando de Magalhães até as Ilhas Molucas (Oceano Pacífico), contornando o extremo Sul da América (posteriormente denominado estreito de Magalhães). Ao se aproximar da entrada do estreito, em pleno inverno austral, a frota foi surpreendida pelo clima rigoroso. A nau São Gabriel, comandada por D. Rodrigo de Acuña, se separou das demais e seguiu rumo Norte pelo litoral brasileiro. Ao atingir o litoral nordestino, parou junto à foz de um rio situado nas proximidades do paralelo 10º S para reparar seu navio.

No dia 21 de outubro de 1526, a nau de D. Rodrigo estava sendo reparada quando foi surpreendida por um ataque dos franceses. Sem poder se defender, D. Rodrigo embarcou num batel com outros sete homens a fim de resolver a questão diplomaticamente. Neste meio tempo, os homens que permaneceram a bordo da São Gabriel tomaram a embarcação e fugiram. D. Rodrigo e seus homens foram aprisionados pelos corsários franceses durante trinta dias. Ao partirem, abandonaram o capitão espanhol com o seu batel. Sem víveres e com poucos remos. D. Rodrigo e seus homens remaram rumo norte, até encontrarem a feitoria portuguesa de Pernambuco. Lá permaneceram.

A armada guarda-costas

Quando Cristóvão Jaques retornou de sua segunda viagem ao Brasil, ficou sabendo do falecimento do Rei D. Manoel. A morte do rei reduziu o prestígio do navegador junto à corte. Jaques procurou por diversas vezes D. João III, sucessor de D. Manoel, para que este financiasse uma nova viagem ao Brasil. Mas o novo rei não lhe deu ouvidos. O monarca mudou de ideia quando o embaixador português na França comunicou-lhe sobre os preparativos franceses para uma viagem à costa brasileira. D. João III mandou preparar uma “armada guarda-costas”. Para comandá-la, escolheu Cristóvão Jaques, homem duro, sem escrúpulos e que conhecia bem a costa brasileira.

A frota comandada por Jaques não era das maiores, mas impunha respeito. Compunha-se de uma nau e cinco caravelas. No meio do caminho, uma das caravelas foi enviada para a Guiné. Os cinco navios restantes seguiram para o Brasil. Ao aportar na feitoria de Pernambuco, Jaques encontrou o espanhol D. Rodrigo. Este lhe informou do ataque que havia sofrido por parte dos corsários franceses um pouco mais ao Sul. Antes de partir para a caça aos corsários, Jaques mandou carregar a nau Hieros com pau-brasil. Enquanto a nau era carregada, uma das caravelas foi enviada em missão de reconhecimento. Algumas informações dão conta de que, ao retornar, a caravela trouxe notícias de uma suposta troca de tiros entre a nau São Gabriel e os corsários franceses na Baía de Todos os Santos. Caso o combate realmente tenha acontecido (narrado posteriormente por D. Rodrigo em sua carta a Cristóvão de Haro), este foi o primeiro combate naval em águas brasileiras. No entanto, pouco ou nenhum significado teve para o futuro da colônia ou para a coroa portuguesa.

Mapa do Brasil no século XVI (arquivo do IBGE)

Após a partida da Hieros, Jaques seguiu para Sul com uma esquadra composta por quatro caravelas. Disposto a encontrar e afundar as embarcações francesas o português tinha o fator surpresa ao seu lado, além de conhecer o número de naves inimigas. O encontro entre as duas frotas ocorreu em fins de julho de 1527 no litoral baiano. Numericamente o combate estava equilibrado pois a esquadra francesa também era composta por quatro embarcações. Para a surpresa de Jaques, a quarta embarcação da frota francesa era exatamente a caravela que ele havia enviado para a Guiné.

A esquadra portuguesa atacou os corsários de forma impiedosa. Os combates foram violentos e duraram um dia inteiro. Entre os invasores, muitos tripulantes morreram. Possivelmente mais de uma centena, incluindo os pilotos. Os navios franceses estavam quase indo a pique quando muitos marinheiros os abandonaram e se refugiaram em terra. Um grupo se entregou aos portugueses. Conforme o relato de alguns sobreviventes, Jaques mandou enforcar uma parte. Outros foram enterrados até os ombros e tiros de espingarda foram disparados. No final, Jaques ainda conseguiu capturar um galeão de nome Leynon de Saint Pol de Leon e o conduziu até Pernambuco juntamente com alguns prisioneiros.

Reflexos do Combate

Os franceses capturados foram enviados para Portugal, onde permaneceram presos e foram condenados à morte. O grupo que se refugiou em terra foi posteriormente resgatado (possivelmente por outros navios franceses) e repatriado. Ao chegarem na França, relataram ao rei Francisco I sobre as brutalidades sofridas e as crueldades com que foram tratados. Uma carta de protesto foi enviada a D. João III, exigindo o pagamento de reparações. O rei de Portugal negociou por seis semanas com os franceses mas não fez concessões. No entanto, Cristóvão Jaques, que já não gozava de tanto prestígio na corte como no reinado anterior, foi destituído de seu cargo no ano seguinte em função das acusações de crueldade cometidas com os prisioneiros. Jaques voltou a apresentar nova proposta de viagem ao rei em 1529. Desta vez o projeto consistia na colonização do Brasil para por fim às intrusões estrangeiras. D. João III gostou da ideia, mas descartou Jaques. Coube a Martim Afonso de Sousa a missão de colonização do Brasil.

Quanto ao combate de julho de 1527, ele foi o primeiro de muitos outros entre Portugal e França pela costa brasileira. Os franceses só seriam definitivamente expulsos da colônia no século seguinte, quando se retiraram do Maranhão.

(*) O texto foi originalmente publicado no antigo site do Poder Naval OnLine em dezembro de 2007. A versão atual encontra-se ligeiramente modificada e atualizada.

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Tomcat

Parabéns por trazerem de volta esse material tão rico!!! Por favor, não parem!

Wagner Figueiredo

Fiquei abismado com o nome ( Cristóvão Jaques) .
Sou cearense e vim morar em São Paulo.. chegando aqui morei muitos anos em um prédio no qual a rua se chamava Cristóvão Jaques.. história fascinante..se fosse nos EUA já teria vários filmes…..

Willber Rodrigues

3 coisas:

1- excelente texto.
2- não é de hoje que nossa costa é pilhada e precisa de embarcações para patrulhas constantes.
3- impossível não ler esse texto sem lembrar do filme O Mestre dos Mares.

Moriah

Ainda hoje é premente a defesa da costa das terras do Brasil. A última vez que as cartas da capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul relataram, um brigue de prussianos explorava aquelas águas, mas pela graça de deus, a nau Independência interveio sem uso das bocas de fogo e os mesmos fugiram para o Rio da Prata…

GUPPY

Parabéns Guilherme Poggio/Poder Naval pela bela matéria!

Rui Mendes

Excelentes linhas em essas Naus e Caravelas.

Fernando Vieira

“Para a surpresa de Jaques, a quarta embarcação da frota francesa era exatamente a caravela que ele havia enviado para a Guiné”
Como assim? Os franceses capturaram essa caravela no caminho para Guiné ou os portugueses nela que mudaram de lado?

Gutex

A caravela havia sido capturada pelos franceses no caminho para Guiné. Inclusive toda tripulação portuguesa foi jogada ao mar…

Fernando Vieira

Isso de certa forma justifica o tratamento que o Cristóvão Jaques deu aos prisioneiros franceses.

Antonio Palhares

Uma linda história. Muita dificuldade e muita tenacidade. Cujos personagens eram os marinheiros tostados pelo sol dos quatro mundos. Bravos lusitanos.

Alexandre Esteves

Belíssima e fascinante história. Parabéns pela publicação.