O taxista de Moscou
“Esquadras evidenciam o real poder de combate do Estado.”
Almirante Sergei Georgievitch Gorchkov (1910-88), criador da moderna Marinha soviética³
Por Roberto Lopes
Eu sempre brinco dizendo que o Comando da Marinha deveria mandar erguer um monumento ao pré-sal na praça Barão de Ladário, no Rio de Janeiro, bem à entrada do 1º Distrito Naval. Um esguicho de petróleo de uns 6 m ou 8 m de altura, esculpido em bronze, estaria bom.
Isso porque a Marinha do Brasil tem duas histórias: uma antes e outra depois da descoberta da vasta província petrolífera sepultada no subsolo marinho abaixo da camada de sal, defronte à faixa litorânea que se estende do Espírito Santo a Santa Catarina.
A primeira parte dessa trajetória, entre 1822 e 2008, foi construída nas batalhas fluviais — de canhoneiras praticamente à queima-roupa — da Guerra do Paraguai; na jornada de sacrifício da Divisão Naval em Operações de Guerra, “capturada” por uma epidemia de gripe espanhola na costa ocidental africana enquanto viajava à Europa, nos meses finais da Primeira Guerra Mundial; no esforço de uma armada maltrapilha contra os temíveis submarinos alemães e italianos durante a Batalha do Atlântico, na Segunda Guerra; e na rotina de uma crônica falta de verbas — que, não raro, produziu episódios ridículos acerca da disponibilidade dos seus meios navais.
Revelou-se inútil o cuidado de apontar no mapa os mais de 7.000 km de costas brasileiras; e igualmente improfícuo — enfadonho mesmo — chamar a atenção para o fato de quase todo o comércio exterior do país servir-se do mar.
Até um passado recente o mar era só mais uma fronteira. E o Brasil, como é sabido, não tem inimigos de fronteira com os quais deva se preocupar…
Nos primeiros meses da década de 1990, o ex-conselheiro da embaixada brasileira na União Soviética (durante a metade inicial dos anos 1960), Murillo de Carvalho, desembarcou em Moscou, onde mantinha um pequeno escritório (aos cuidados de uma secretária) dedicado a representações comerciais.
Murillo era, à época, um sexagenário franzino, baixo, calvo, de olhos miúdos e vivazes, com a cabeleira bem aparada que lhe restava em volta da cabeça e o farto bigode, ambos brancos como a neve, contrastando com sua pele morena, queimada do sol.
Desligado da carreira diplomática pelos militares após o golpe de março de 1964, Carvalho, durante o governo Orestes Quércia (1987-91), em São Paulo, fora convocado pela Secretaria do Desenvolvimento Econômico do estado para prestar assessoria à direção do Banespa, que tencionava abrir um escritório na capital soviética.
Conheci-o em 1994, nessa Secretaria.
Ele andava sempre elegante, em ternos bem cortados, e dizia repartir seu tempo entre o Brasil, a cidade de Miami, onde mantinha casa — juntamente com a esposa, uma ex-comissária de bordo finlandesa —, e Paris, onde residia o filho. E também Moscou, naturalmente, onde, segundo a sua versão, tentava intermediar operações comerciais.
A história do taxista de Moscou, Murillo só me relatou cinco ou seis anos depois de nos conhecermos, quando eu já trabalhava na redação da revista *Época*.
Tenho motivos para acreditar que ela é verdadeira (e explicarei por quê).
No táxi que o levaria até o escritório, situado em um subúrbio moscovita, o ex-funcionário do Itamaraty foi interpelado pelo motorista, que percebera, pelo sotaque do passageiro, não ser ele um compatriota.
— Vim do Brasil — precisou explicar Murillo de Carvalho.
Para a surpresa do diplomata brasileiro, o taxista, um cinquentão de pele e olhos claros, abriu um sorriso largo:
— Ah, o Brasil… Praias lindas tem o Brasil. Lindas de verdade!
Exausto pela longa viagem de avião, Carvalho lamentou, intimamente, o azar de, entre tantos choferes de táxi à porta do Aeroporto Internacional Sheremetievo, ter escolhido logo um que gostava de falar… e com saudades do Brasil!
Por uma questão de delicadeza, o brasileiro perguntou quais praias o russo havia conhecido: as do Nordeste? Da Bahia?
— Ah não, não. Eu nunca pude frequentar nenhuma praia do Brasil — apressou-se em esclarecer o tagarela.
— Mas então… — iniciou o passageiro, sem entender bem a conversa.
— Eu explico — atalhou o taxista. — É que fui comandante de submarino na Marinha soviética. E muitas vezes fomos ao litoral do Brasil para fazer reconhecimento, tirar fotografias, essas coisas. O senhor sabe…
Nos anos finais da década de 1980, o então chefe do serviço secreto naval — à época denominado Cenimar (Centro de Informações da Marinha) —, almirante Sérgio Doherty, contou-me que, nos tempos da Guerra Fria, as autoridades brasileiras haviam detectado diferentes indícios da espionagem naval soviética no Atlântico Sul, e até apreendido um mapa do litoral brasileiro que, por suas características gráficas, só podia ter sido feito a bordo de um submarino. (Quem sabe a mando do taxista que serviu Murillo de Carvalho…)
E a verdade é que, naqueles tempos de tensão Leste-Oeste, o reconhecimento militar do litoral brasileiro era só parte do problema, em uma faixa marítima de proteção rarefeita, que abrigava um subsolo marinho de amplas jazidas minerais e uma fauna rica, atraente por seu alto valor econômico.
No início da década de 1970, relatórios internacionais sobre pesca em alto-mar informavam que, em apenas uma temporada de quatro meses, uma frota de cinquenta pesqueiros soviéticos conseguia capturar, em águas adjacentes às jurisdicionais do Brasil, cerca de 2 milhões de toneladas de pescado — o quíntuplo, ou o sêxtuplo, da produção nacional à época — valendo-se de técnicas de alto rendimento mas afeitos predatórios, que comprometiam o equilíbrio biológico e a sobrevivência dos cardumes.
FONTE: Livro As Garras do Cisne
SAIBA MAIS:
A presença naval soviética no Atlântico Sul durante a Guerra Fria
Maldade isso. A história começa a ficar deliciosa, e deixa com um gostinho de “quero mais” pra comprar o livro… Minha carteira vai chorar. “No início da década de 1970, relatórios internacionais sobre pesca em alto-mar informavam que, em apenas uma temporada de quatro meses, uma frota de cinquenta pesqueiros soviéticos conseguia capturar, em águas adjacentes às jurisdicionais do Brasil, cerca de 2 milhões de toneladas de pescado — o quíntuplo, ou o sêxtuplo, da produção nacional à época (…)” Como nada mudou desde então, e como o patrulhamento de nossa ZEE continua pífio ( pra dizer o mínimo …… Read more »
Quanto ao Roberto Lopes, como é uma reprodução literária de 2014, espero que ele esteja bem. Quanto ao pré-sal, olhando em perspectiva, não sei se foi uma benção ou maldição, pois foi um tempo de megalomania naval. Hoje, quase nada sobrou, ou melhor dizendo, soçobrou, restando apenas os velhos interesses corporativos traduzidos em previdências privilegiadas (e ai de quem mexer), conveses corridos inúteis travestidos de multipropósitos, andorinhas velhas chamadas de Falcões, e outras mazelas de sempre … E a simples possibilidade de mais dinheiro, pelo que se viu, não reparou isso, só piorou. Quanto à história do taxista-comandante, não se… Read more »
“E como várias histórias, não importa se canônicas, já valem se encerram objetivos e princípios legítimos.”
Já valem, se forem bem escritas, pelo simples prazer que proporcionam ao lê-las.
Hoje, passados 10 anos da publicação do livro e mais de 15 anos da descoberta do pré-sal e a megalomania que desencadeou na MB, o que se vê de diferente na MB? Ela ficou menor e mais velha…nada mais.
Conterrâneo, o chamado “pre sal” não foi descoberto há 15 anos.
Desde o fim dos anos 70 pesquisas geológicas já indicavam a presença de petróleo acido em diversos pontos do atlântico sul. O que acontece é que o governo brasileiro utilizou esse conhecimento como propaganda econômica/política, depois da ascensão do PT ao poder
Ou a tecnologia para extração em lâmina profunda foi desenvolvida de forma confiável para subsidiar as atividades sem riscos extremos.
Sim, te entendo, mas como você mesmo falou, antes do governo molusco ninguém de fora do meio ligado ao petróleo tinha ouvido falar em pré-sal, que foi, como você escreveu, utilizado como bandeira de propaganda política.
Vamos deixar claro que essa megalomania não “surgiu” na MB, veio do governo federal que decidiu aumentar a marinha de 59 mil para 80 mil militares e prometeu uma frota com 30 navios de combate, 22 submarinos, 2 navios aeródromos, etc. E depois de todos os escândalos de corrupção e de dificuldades de crescimento, não cumpriu com o prometido e deixou a marinha “a ver navios”.
Ainda tenho esperança. Depois que as empreiteiras não deram certo, pode ser que os navios aeródromos venham de um certo frigorífico.
O comandante da MB naquela época era bem afeito a projetos espetaculosos e megalômanos..
Estudos, projetos, planejamento, a MB fez e contínua a fazer, se deixou alguns grandes de lado, está correto, afinal, não foi aprovado pelo congresso, percentual do pré-sal para FFAA como se pretendia, mas um grande permanece desta época, SUBNUC, acertou MB.
Mas recente houve aprovação de aumentos e privilégios esses ainda permanecem onerando em demasia as FFAA.
De longe, o Sr. Ozawa, faz juz ao autor do livro, com o melhor comentário, sem planfetajem.
Hoje a MB é uma fração do que foi na época da Guerra Fria. Basta ver a postagem do proprio Galante sobre o efetivo de antes e o de agora…
https://www.naval.com.br/blog/2013/02/22/a-marinha-do-brasil-em-1980/
Já no fim da URSS marinheiros não estavam sendo pagos ou pagos com atraso e isso não mudou muito na década seguinte, inclusive o filme “Kursk” – que não é grande coisa – sobre o submarino que soçobrou em 2000 mostra isso.
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Então não é de estranhar que pessoal altamente capacitado como um comandante de
submarino se visse obrigado a trabalhar como taxista em outro país e falando em taxista
há um filme que considero muito interessante “Adeus Lênin” onde um taxista trabalhando na Alemanha teria sido um cosmonauta russo.
Sigmund Jan, voou com os soviéticos, creio que no início dos anos 80. Havia o programa Intercosmos em que pilotos de países amigos da URSS voavam em suas missões.
Grato André, como faz um certo tempo que assisti o filme confundi como sendo russo soviético o personagem, quando na verdade era alemão oriental, antes da unificação o taxista do filme.
Exatamente. O fim da URSS praticamente provocou um colapso completo nas Forças Armadas soviéticas. O sucateamento de equipamentos, meios e instalações foi gigantesco. Com o pessoal, foi isso que você falou, com grandes contingentes deixando o serviço e migrando para outras profissões e mesmo países. Em 1994, aqui na UFSM, tive um professor russo, de ciências farmacêuticas, que havia vindo para o Brasil no iniciozinho da década de 90 por absoluta e completa falta de perspectiva e condições de vida na rússia pós dissolução da URSS. Nao sei onde ele reside hoje, mas até alguns anos atrás ele ainda morava… Read more »
Imagino o que esse professor teria/tem de interessante para contar dado o que vivenciou principalmente na década de 1980.
Pois é, Dalton. Na época, eu tentei conversar sobre isso com ele, mas se mostrou meio fechado e receoso, talvez não acostumado com a possibilidade de poder falar o que quisesse sem sofrer alguma represália por isso. Por isso, preferi não insistir. Das poucas coisas que ele disse foi que ganhava um salário, em rublos, equivalente a 60 reais … lembrando que o salário mínimo no Brasil, em 1994, era 70 reais.
Adoraria conversar com o teu ex-professor russo. Cada história sobre a vida na URSS, as diferenças em educação, cultura, esporte, ciência e tecnologia e as impressões dele.
Sim!! Pena que ela era um tanto reservado. Depois de algum tempo, ele casou com uma mulata gaúcha.
Milhares de espião russo espalhados pelo mundo matando Com polônio 210 ou sendo jogado pela janela, o professor sabe que o ex taxista da KGB virou Presidente (ditador) o homem mais rico e poderoso do mundo que manta matar qualquer um traidor da pátria.
Traduz pra nós, por favor…
A realidade trás ótimas literaturas. Em Oiapoque tem o bairro do russo, caminho do quartel de crivelandia do norte… o nome do bairro é devido a localização os geradores a diesel comprados da Rússia e Ucrânia que iluminavam a cidade. Dois Russos moravam numa casinha ao lado. Também tinha um polonês que trabalhava como piloto na Guiana Francesa, fazia acrobacias ao chegar na cidade com seu teco-teco para visitar a namorada. Todo mundo tomava uma cerveja na praça. Junto dos padres e funcionários da Funai. Logo a cima das cachoeiras, tinha um japonês que fugiu da guerra e morava numa… Read more »
A descoberta do pré-sal no Brasil gerou grandes expectativas em relação ao uso dos recursos para o desenvolvimento social e econômico do país. Em 2010, a Lei 12.351 instituiu um modelo de partilha de produção, garantindo à Petrobras uma participação mínima de 30% nos consórcios de exploração e a criação de um Fundo Social, com o objetivo de direcionar parte dos lucros para saúde, educação e combate às desigualdades sociais. No entanto, as receitas geradas não atingiram os níveis esperados, devido a diversos fatores, como a alta complexidade da exploração do pré-sal, questões econômicas e cortes no orçamento da Petrobras.… Read more »
Que baita texto para apenas colocar nos outros a culpa pela nossa desonestidade e pelas nossas mazelas. Ainda continua nessa de querer colocar a culpa na Lava-Jato?? É uma inversão total de valores…é o poste mijando no cachorro…
Favor não desviar o assunto da matéria para Lava Jato e questões afins. Comentários fora do tópico serão deletados.
Este aí é mais um comentário feito com IA.
Obrigado. Yuval Noah Harari, em seu mais novo livro, levanta questões importantes sobre a IA. Hoje, inclusive, a ONU adota um certo consenso sobre seu uso. Mas ainda sou um humano, à moda antiga, que precisa checar informações e gastar horas teclando, vendo, analisando e reinterpretando palavras, seja por força da profissão ou pelo prazer de escrever, ou pela busca da palavra certa. Não posso dar um veredito final sobre o livro, pois ainda estou me deleitando com a leitura de alguém tão inteligente. Contudo, o tema do artigo pode render uma bela trama para um filme tupiniquim. Todavia, o… Read more »
Já que tocou no tema “sabotagens”, lembrar que o Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN) foi completamente desmantelado, sucateado. Não vou dizer em qual governo começou, pra não criar polêmica. Hoje, os concursados da ABIN devem usar crachá de “agente secreto”…
Então, poderia deletar o dele também, pois eu respondi (fora do tópico, concordo), e o meu foi deletado.
Agora, meu comentário anterior voltou…então, desconsiderem o que escrevi acima…😜
🙄🙄
Por que será que temos a impressão que o mundo ficou menos interessante depois da queda da URSS? Há um certo saudosismo nostálgico daquela época.
Síndrome da Geração Z… juventude tem trazido tudo que é velho a moda
O mundo unipolar é bom para os americanos e ruim para todos .
O mundo multipolar é bom para todos e ruim para os americanos.
A história é crível, o próprio Vladimir Putin também trabalhou por uns tempos de taxista, após o colapso soviético. Sobre os astronautas do programa Interkosmos, li um pouco sobre a vida de alguns deles, um dos que me chamou a atenção foi o do oficial sirio Muhammed Ahmed Faris que desertou e se juntou à oposição armada contra o regime de Assad. afegãos, cubanos, mongois, foram lançados ao espaço como gesto de aproximação geopolítica. Quando Marcos Pontes voou em 2006, essa turma toda já tinha ido para o espaço pelos mesmos motivos, 20 anos antes. Sobre a Marinha do Brasil… Read more »
Um cubano foi ao espaço antes dos militares negros de um programa americano…. Mas é esquecido pela nasa…
Excelente texto. Infelizmente o desenvolvimento econômico brasileiro é sempre liderado por pessoas sem a competência necessária para executar tal tarefa.
Uma das causas deste flagelo está atrelada à política e sua inércia em promover reformas estruturantes e quebrar privilégios de grupos/pessoas.
Imagino o cidadão estar em Moscou, chamar um táxi e de repente: “Você está no táxi do Vladimir! Aceita um chá?”
“Isso porque a Marinha do Brasil tem duas histórias: uma antes e outra depois da descoberta da vasta província petrolífera sepultada no subsolo marinho abaixo da camada de sal…”
Parece que perdi alguma parte da história da MB. Uma antes, outra depois do pré sal?
Dois submarinos convencionais, uma promessa de submarino nuclear, e uma Frogeta (por hora). De resto, vão iniciar o descomissionamento de inúmeros meios.
Acredito que ele estava falando de expectativas de novas embarcações. Antes e depois do pré-sal que, como muitos falaram aqui, foi utilizado politicamente para gerar também expectativas na população mais carente do país simultaneamente aos desvios financeiros. Concordo que avançamos tecnologicamente no processo de extração em altas (ou baixas) profundidades. Mas, na bem da verdade, o que mais se avançou com a divulgação do pré-sal foram esquemas de corrupção. Infelizmente todos os condenados foram inocentados. Mas esse é nosso Brasil, e assim que reforçamos nossa maior característica lá fora. E não são a beleza de nossas praias, samba ou futebol.… Read more »