País temia um conflito de ‘grandes proporções’ nas Ilhas Malvinas
A invasão militar das Malvinas levou o governo brasileiro a prever que a Argentina tentaria arrastar a América do Sul para “um conflito de grandes proporções, com consequências desastrosas, em todos os campos, para os países ocidentais” – mostram documentos do Conselho de Segurança Nacional e do Itamaraty.
Estava certo. O governo argentino realmente cogitou “internacionalizar a guerra”, confirmou o chanceler Nicanor Costa Méndez nos autos do inquérito militar realizado logo depois do conflito, mas só liberados há duas semanas. Foi um tema “considerado em várias oportunidades”, ele disse. Recuou diante do risco de um confronto envolvendo diretamente os Estados Unidos e a União Soviética: “Justamente por isso nunca, pelo menos por meu intermédio, a Argentina pediu ajuda à URSS ou a países de influência soviética, ou à China comunista” – completou Méndez.
Era crescente em Washington a preocupação com o nível de interferência de Moscou na crise. No dia 17 de abril, Londres informou à Casa Branca ter confirmado a disposição soviética em “oferecer navios, aviões e mísseis à Argentina, em troca de cereais”.
Dois dias depois, em Brasília, o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) alertou para o deslocamento de “agentes soviéticos” do Peru para Buenos Aires e Montevidéu, para auxiliar a Marinha argentina “a levantar dados” sobre a frota britânica, que estava a caminho. “Os soviéticos”, informou o Cenimar, “solicitaram a (Muamar) Khadafi que a Líbia fornecesse à Argentina aviões e mísseis de procedência russa, para que a União Soviética não surgisse sozinha como responsável pelo fornecimento de armas”.
Acrescentou: “O embaixador cubano em Buenos Aires, cujo avião foi interceptado no espaço aéreo brasileiro, foi portador de uma mensagem de Fidel Castro aos argentinos em que, em nome do governo de Angola, oferece as bases aéreas angolanas como escala operacional para manter uma ponte aérea entre a Líbia e a Argentina”.
Khadafi, que Reagan chamava de “cachorro louco”, era um bom cliente de Moscou. Entre 1978 e 1982, acumulara US$ 12 bilhões em pedidos de armas russas para os seus arsenais cavados em torno de Trípoli.
Na tarde da quarta-feira 26 de maio, um cargueiro da Aerolíneas Argentinas desceu no aeroporto de Recife. Foi reabastecido e seguiu para Trípoli. Voltou 48 horas depois. Um dos tripulantes, o navegador, estava sob licença psiquiátrica – relata o jornalista Gonzalo Sánchez em livro recém-lançado sobre os pilotos civis na guerra.
O fluxo na ponte aérea de armas para Buenos Aires crescia. Chegou à média de dois voos diários com escalas em Recife. Outros cargueiros entraram na rota – e nem sempre eram civis. Alguns desfilaram pela pista pernambucana exibindo na fuselagem bandeiras de países “neutros”, como Libéria e África do Sul.
Em Washington, o embaixador brasileiro Antonio Azeredo da Silveira assistiu, na segunda-feira 31 de maio, ao anúncio do presidente Reagan sobre negociações com os russos para redução dos arsenais nucleares. Ex-chanceler do governo Ernesto Geisel, Azeredo aprendera a ler nas entrelinhas. Escreveu um telegrama curto, classificou como “secreto-urgentíssimo” e enviou ao Itamaraty: “Tudo faz crer que esse entendimento, entre os EUA e a URSS, anula, pelo menos no momento, a possibilidade de uma ajuda concreta da União Soviética à Argentina na crise do Atlântico Sul”.
Na mesma tarde, o embaixador russo em Buenos Aires, Serguei Striganov, conversou por 40 minutos com o general Galtieri. À saída da Casa Rosada, Striganov disse que o apoio soviético se limitaria às áreas “política e diplomática”.
Restavam poucos aliados, Brasil e Peru entre eles. O Peru se dispôs a atender sem limitações aos pedidos argentinos – principalmente, aqueles recusados pelo Brasil com a diplomática alegação de “não engajamento ostensivo”. Lima enviou uma dezena de caças Mirage, pela rota Bolívia-Brasil para evitar os radares do Chile, que se aliara à Inglaterra. Abriu aeroportos e contas para compras de armas.
O Peru também se envolveu em compras de mísseis no mercado paralelo. Numa delas, repassou US$ 9,6 milhões à Difensa Establishment, de Liechnstein, como adiantamento da compra de uma dúzia de Exocets – preço seis vezes acima da tabela.
Restaram US$ 2,4 milhões (20% do valor total) a serem pagos na entrega, mas os mísseis nunca chegaram. O dinheiro foi depositado numa conta (100-2-0039245) do adido da Marinha argentina no Banco Continental, em Lima. E desapareceu.
A capital das Malvinas já estava cercada, na manhã da quinta-feira 3 de junho, quando ouviu-se o alarme no Comando Aéreo do Rio: avião britânico invadira o espaço aéreo nacional e pedia autorização para pouso de emergência, por falta de combustível.
Caças Northrop F-5 foram enviados para escoltar o bombardeiro XM597 Vulcan, alcançado a 340 quilômetros ao sul de Copacabana. Regressava de um ataque nas Malvinas e uma pane hidráulica anulara suas chances de voar por cinco horas sobre o Atlântico até a base da Ilha de Ascensão. Carregava dois sofisticados mísseis norte-americanos AGM-45 Shrike, desenhados para destruir radares. Um foi despejado no mar, junto com os códigos de batalha. O outro ficara preso no porão.
Ao aterrissar, o Vulcan virou sinônimo de crise entre o Brasil e o Reino Unido. O governo Tatcher protestou, alegando que o Brasil apreendia o avião enquanto “facilitava a tarefa perturbadora de Khadafi” no tráfego de armas.
Em Brasília, o embaixador britânico William Harding e o embaixador norte-americano Anthony Motley estavam mais preocupados com o míssil do que com o avião. Era uma tecnologia nova e estratégica da Otan, projetada para competir com o sistema soviético ar-terra S-75. Harding e Motley insistiram em obter garantias de preservação do míssil em local “fechado” e “selado” – contou o chanceler em memorando ao presidente, que classificou como “secreto-exclusivo”.
O governo britânico ameaçava com “sérias consequências”. O chanceler considerou-a “desproporcional”, lembrando ao embaixador que a posição brasileira não era “estritamente de neutralidade”. Harding argumentou com “claras evidências” sobre a ponte aérea de armas para a Argentina. “Lembrei” – escreveu Guerreiro ao presidente Figueiredo – “que a vistoria no avião da Aerolíneas não constatara armas”.
O bombardeiro e o míssil foram devolvidos 72 horas antes de o general argentino Mario Menéndez se render ao comandante britânico Jeremy Moore, na tarde de 14 de junho, na capital das ilhas.
Acabava a Guerra das Malvinas. Começava o epílogo da ditadura militar na Argentina.
FONTE: Yahoo notícias