Os 150 anos de Riachuelo e suas lições, parte 2:
Quando o inimigo está à vista, o embargo ataca além do horizonte
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Fernando De Martini
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Nesta segunda parte de nossa série comemorativa do sesquicentenário da Batalha Naval do Riachuelo, combate fluvial da Guerra do Paraguai (1864-1870) em que a vitória brasileira ajudou decisivamente a tirar os paraguaios da ofensiva e transferir a iniciativa à Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai), continuaremos focando em fatos que precederam aquele combate de 11 de junho de 1865. Em especial, as decisões relacionadas às especificações, projetos, aquisições e construção dos navios que se destinavam a atender aos interesses do Império do Brasil na região do Prata.
Como mencionamos na parte anterior, após ser impactada pelas notícias do primeiro combate entre encouraçados ocorrido em 9 de março de 1862 em Hampton Roads, na Guerra Civil Americana, a Marinha Imperial buscou adequar seus planos de reequipamento a essa novidade que trazia implicações fundamentais na sua capacidade de manter um bloqueio naval frente a seus vizinhos do Prata.
É hora de entender com mais detalhes como se deu esse processo que poderia permitir ao primeiro encouraçado brasileiro, construído no exterior, reunir-se à divisão da Esquadra que protagonizou o combate com a frota paraguaia. É hora de falar sobre um embargo, assunto que volta e meia ressurge nas discussões sobre reequipamento naval, que hoje mesmo tem exemplos gerando manchetes de jornais pelo mundo, e que bloqueou há 150 anos a rota do nosso primeiro encouraçado rumo a Riachuelo.
Os planos apresentados em março de 1863, visando colocar o Brasil entre os países operadores de encouraçados
O interesse da Marinha pelos encouraçados levou, como vimos na primeira parte desta série, ao segundo envio à Europa do então primeiro construtor e capitão tenente honorário Napoleão Level, do Arsenal de Marinha da Corte, com o objetivo de novamente estudar os desenvolvimentos recentes da construção naval militar. Desta vez, o foco da viagem à França e à Inglaterra foi o estudo das novas belonaves encouraçadas. Em março de 1863, Level já estava de volta ao Brasil. Na bagagem, trouxe planos e orçamentos para três navios: uma corveta e duas canhoneiras, todas protegidas por couraças.
Segundo os planos apresentados à Administração Naval naquele início de 1863, a corveta teria cerca de 60 metros (200 pés) de comprimento entre perpendiculares, com boca de 10,6m e calado de 3,6m. Sua bateria de oito canhões, quatro por bordo, seria abrigada numa casamata à meia-nau com aproximadamente 16 metros de extensão. Este era o sistema de bateria central que se tornava preferível, à época, em relação à tradicional distribuição dos canhões ao longo de todo um costado de borda livre alta. Isso porque permitia maximizar a proteção blindada numa área menor. O projeto da casamata era creditado aos construtores Turner e Reed, com modificações realizadas por Level. A couraça de ferro, cuja espessura era prevista em 4,5 polegadas (cerca de 114mm), deveria tanto proteger a casamata quanto se estender por todo o costado (este de borda livre mais baixa que o sistema anterior), desde a linha d’água até a altura do convés principal e, no sentido oposto, até cerca de 90cm da parte submersa do casco. Essa proteção seria assentada num enchimento de madeira com espessura de 9 polegadas (aproximadamente 229mm) sobre um casco que Level recomendava que fosse construído com ferro.
É importante fazer aqui um parêntesis histórico e técnico. Era para os navios de guerra com cascos de ferro, de maior durabilidade que os de madeira (mas que necessitavam de novos métodos, máquinas e ferramentas para construir e manter), que as potências navais vinham direcionando seus esforços de desenvolvimento e construção, em especial a Inglaterra. A França já construía seus primeiros encouraçados com o casco, e não só a couraça, fabricados de ferro, embora fatores como o volume de produção do metal e a capacidade técnica de alguns de seus estaleiros fizessem demorar a transição para cascos totalmente metálicos nos navios franceses. Vale lembrar que o primeiro encouraçado britânico, o Warrior (finalizado em 1861) já tinha casco de ferro, e era uma resposta ao Gloire francês (completado em 1860), cujo casco era de madeira. O primeiro encouraçado francês construído com casco também de ferro foi o Couronne, cuja construção começara ainda antes que a do Warrior, mas que só foi completado em 1862.
A França continuaria equipando sua frota com encouraçados tanto de casco de madeira quanto de ferro, ao longo dos anos seguintes, para conseguir manter um ritmo de incorporações, nessa fase de transição, que não a deixasse muito atrás dos números da frota britânica (ao final da década de 1860, a Marinha Francesa estava chegando perto, com vinte e seis encouraçados, frente aos vinte e nove da Marinha Real). Mesmo na primeira metade da década de 1870, parte dos novos encouraçados da Marinha Francesa ainda era construída com cascos de madeira protegidos por couraças de ferro, como a classe “Océan”, enquanto na Inglaterra a madeira era utilizada apenas para assentar as couraças sobre cascos (revestimento e estrutura) totalmente em ferro e, mais tarde, em aço. Posteriormente, esse enchimento também seria abolido, prosseguindo o uso do material nos cascos apenas no tradicional embono, que era um revestimento de madeira externo ao casco metálico para protegê-lo do contato direto com a água salgada e, ao mesmo tempo, separar o ferro das chapas de cobre (que desde pelo menos o século anterior vinha sendo usado como revestimento anticrosta nos cascos de madeira), pois o contato direto do ferro com o cobre causava reação eletrolítica, aumentando a corrosão. Em poucas décadas, os avanços em química permitiram trocar o embono pela aplicação, diretamente no casco de metal (já com o aço substituindo o ferro), de camadas de produtos que evitavam a corrosão e a incrustação, as chamadas tintas anticrosta. Mas esta é uma história posterior à do período que tratamos aqui.
Voltando às especificações trazidas por Level em março de 1863 para a corveta encouraçada, suas máquinas deveriam gerar 200 cavalos de força, mesma potência do maquinário que se construiu no Arsenal de Marinha da Corte para a corveta Niterói de casco de madeira (embora provavelmente já incorporasse alguns elementos estruturais em ferro) e propulsão mista (vela e vapor) incorporada naquele mesmo ano, e que já mencionamos na primeira parte desta série. Voltaremos a falar da Niterói oportunamente. Esperava-se que a nova corveta encouraçada, com esses 200 cavalos de força, superasse 10 nós quando propelida a vapor. Também seria dotada de mastros e velame para economizar carvão durante as travessias mais longas – ainda estávamos na época em que a eficiência das caldeiras e máquinas a vapor era baixa, consumindo muito em relação à potência que entregavam.
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Quanto às duas canhoneiras, suas dimensões externas seriam apenas um pouco menores que as da corveta, com aproximadamente 54 metros de comprimento e boca de 9 metros. Porém, pretendia-se um calado proporcionalmente bem menor, com 2,4 metros, permitido pelo fato dos pesos serem menores: a couraça era menos espessa (4 polegadas, cerca de 102mm) e a bateria era apenas metade da especificada para a corveta (quatro canhões no total, dois por bordo, havendo portinholas também à vante e à ré para reposicionar as peças, como era o caso também da corveta), resultando numa casamata proporcionalmente menor, de comprimento inferior a 9 metros. O deslocamento das canhoneiras era previsto para ser inferior a 800 toneladas, enquanto a corveta deslocaria praticamente o dobro (mais de 1.500t). Eram navios de porte bem menor que os encouraçados que se construíam na Inglaterra e França, que chegavam a quase 10.000 toneladas no caso do britânico Warrior. Porém, para operar de forma efetiva na região do estuário do Prata e rio acima, o porte era adequado (os encouraçados franceses e britânicos de grande porte, projetados em geral para batalhas no oceano, tinham calado três vezes maior que os planejados para o Brasil).
Level também trouxe da Europa as estimativas de custos dos navios, que equivaleria a pouco mais de 56.600 libras esterlinas para a corveta e de 34.500 libras para cada canhoneira, incluindo as máquinas e outros equipamentos. A intenção da Administração Naval era construir ao menos as duas canhoneiras no Arsenal de Marinha da Corte, prosseguindo a política iniciada (e bem-sucedida) desde antes da década anterior para se habilitar o Arsenal e seu pessoal na construção e manutenção de navios modernos, que agora deveriam incluir encouraçados. Para isso, seria preciso adquirir máquinas e ferramentas para trabalhar nas chapas das couraças, estimando-se um custo de 2.800 libras para a aquisição desses equipamentos.
A Marinha encomenda à França o primeiro encouraçado brasileiro, a corveta Brasil
Apesar da pressa ditada pela piora nas relações do Império com os vizinhos do Prata, somente em janeiro de 1864 foi encomendada a construção da corveta encouraçada, cujo casco também seria de ferro, em contrato com a companhia francesa “Forges & Chantiers de la Mediterranée”. A previsão de entrega era até janeiro de 1865 (prazo de 12 meses). As dimensões e especificações finais do navio, que seria batizado com o nome Brasil, ficaram bem semelhantes às apresentadas em 1863, sendo notado apenas um aumento razoável da potência real no eixo para 250 cavalos (o maquinário era acoplado a um eixo e um hélice, sendo que a força nominal era de 1.000 cavalos no indicador Watt). Outras especificações dignas de menção, quando da encomenda, eram a exigência de capacidade das carvoeiras para 6 dias de navegação a toda força, altura de 2,2 metros da linha d’água até o batente inferior das portinholas dos canhões (medida superior à do pioneiro e muito maior Gloire, cuja bateria principal ficava a apenas 1,9m da água), além da proa com o pronunciado formato de aríete (esporão) para abalroar outros navios.
A contratação de uma empresa da França contrastava com encomendas anteriores de navios de guerra no estrangeiro, preferencialmente feitas na Inglaterra. Isso porque as relações diplomáticas do Brasil com a Grã-Bretanha estavam rompidas devido à chamada “Questão Christie”, originada quando os britânicos exigiram uma indenização brasileira pelo desaparecimento da carga de um navio naufragado ao largo do Rio Grande do Sul em 1861. Somou-se a este fato a prisão de oficiais ingleses bêbados no Rio de Janeiro e a atuação inconveniente do embaixador britânico William Christie ao tratar esses assuntos com arrogância exagerada e exigências de punições aos responsáveis. Especialmente quando belonaves inglesas bloquearam a barra do Rio de Janeiro, capturando navios mercantes brasileiros em plena baía de Guanabara para forçar o pagamento da indenização, a opinião pública ficou muito exaltada, numa clara posição antibritânica.
Curiosamente, esses ânimos exaltados pela Questão Christie com a Inglaterra levaram a população a contribuir com fundos para a compra do primeiro encouraçado brasileiro que, como vimos, foi encomendado à França, por meio de subscrição pública. Felizmente, para a Marinha Imperial, havia a alternativa francesa ao seu principal fornecedor de navios de guerra modernos, a Inglaterra. Vale relembrar, evidentemente, que diversas belonaves com características modernas (propulsão mista vela e vapor, substituindo também as antiguadas rodas de pás por hélices) já eram construídas no Brasil, com cada vez maior conteúdo nacional, embora ainda se importasse o ferro para fabricar suas máquinas no Arsenal, e o armamento também fosse importado ou reaproveitado de navios que davam baixa. Enfim, a expectativa era que a França cumprisse os prazos para que, no início de 1865, a frota brasileira pudesse receber seu primeiro encouraçado.
Já sobre as canhoneiras encouraçadas, a serem construídas no Arsenal de Marinha da Corte, aparentemente pouco se avançou ao longo do ano de 1864, assim como para a aquisição dos já mencionados maquinários e ferramentas para trabalhar as chapas de couraça. Pode-se conjecturar que o rompimento de relações com a Grã-Bretanha tenha contribuído para prejudicar a aquisição desses equipamentos – afinal, a França ainda tinha dificuldades industriais para prover uma parcela de seus próprios estaleiros com esse maquinário (tanto que parte de seus navios encouraçados ainda possuía cascos de madeira, como vimos), quanto mais para fornecê-lo ao exterior. Mesmo assim, e apesar dos problemas diplomáticos, conseguiu-se obter na Inglaterra um pequeno lote de canhões raiados no sistema Whitworth, assim como um contrato de fornecimento de moldes e caixas para fundição de projéteis para essas armas, itens que em 1864 já estavam entregues.
Por outro lado, tentava-se variar o fornecedor de armamentos, com infrutíferas tentativas de obter canhões de grosso calibre nos Estados Unidos (que ainda se via com as demandas de sua Guerra de Secessão). O fato é que, ao longo daquele ano, a principal ação para fortalecer a Esquadra com novos navios encouraçados estava a cargo de um estaleiro estrangeiro – embora outras ações relacionadas à frota existente, de navios com cascos de madeira, estivessem em curso. Delas trataremos em outra parte desta série.
A guerra e o embargo ao encouraçado
Enquanto avançava a construção da corveta encouraçada Brasil nas instalações da “Forges & Chantiers de la Mediterranée”, as tensões aumentavam na região em que o navio viria a operar. Como vimos na parte um desta série, o Império vinha buscando intervir mais, desde pelo menos a década de 1850, nos assuntos regionais frente aos vizinhos Argentina, Paraguai e Uruguai. Essa política externa cada vez mais ativa levou, como vimos, à intervenção nos assuntos internos do Uruguai, quando a guerra civil naquele país levou ao poder Manuel Aguirre, contrário à política Imperial. Tudo isso ocorria em meio a problemas que também se avolumavam na fronteira com o Rio Grande do Sul, cujos pecuaristas (estancieiros) vinham sofrendo restrições a seus negócios no país vizinho. Temia-se que essa província, que já tinha histórico separatista (Revolta Farroupilha) iniciasse por conta própria uma guerra com o Uruguai.
Porém, a decisão de intervir no Uruguai não se devia apenas aos assuntos ligados aos interesses gaúchos e à política externa mais atuante do Império, que visava reforçar o papel do Brasil no país vizinho, principalmente frente à Argentina. A política interna (como quase sempre ocorre em sua relação com a externa) também tinha um grande peso. O Império estava sob o governo de um Gabinete do Partido Liberal, que devido à Questão Christie era visto pela opinião pública como fraco nos assuntos externos – o Gabinete Conservador anteriormente no governo havia se portado com mais firmeza quanto a assuntos semelhantes, frente a potências externas. A intervenção no Uruguai era vista como uma oportunidade, para o novo Gabinete, de aplacar as críticas populares aos liberais. Mas essa intervenção trouxe consequências externas não só para a relação com os países do Prata, mas também com um país do outro lado do Atlântico, como veremos agora.
Em 23 de dezembro de 1864, descia da carreira do estaleiro francês a corveta Brasil, passando então à fase de finalização e de instalação de diversos equipamentos. Naquele mesmo mês, reagindo à intervenção do Império no Uruguai, e que ia contra os interesses expansionistas do presidente paraguaio Solano López, o Paraguai invadiu a província de Mato Grosso. Era o prenúncio (e a manobra diversionista) das invasões paraguaias que ocorreriam nos meses seguintes às províncias argentinas de Corrientes e Entre-Rios, e também à província brasileira de Rio Grande do Sul, iniciando a Guerra do Paraguai (também chamada de Guerra da Tríplice Aliança, por estar o Brasil aliado à Argentina e ao Uruguai).
Em 2 de março de 1865, a corveta Brasil já estava entregue pelo estaleiro francês à tripulação brasileira que deveria trazê-la ao Brasil, e arvorava a Bandeira do Império. Pouco mais de 10 dias antes, a intervenção no Uruguai havia terminado de maneira favorável ao Brasil, quando Venancio Flores, apoiado pelas tropas e navios do Império, tomou posse da Presidência Uruguaia. Ainda assim, em 6 de março, apenas quatro dias depois de receber o Pavilhão Imperial, a saída da corveta Brasil foi embargada pelo Governo Francês, que alegava atender aos deveres da neutralidade, seja em relação ao conflito do Império com o Uruguai (embora este já tivesse terminado) quanto com o Paraguai.
A Marinha escolhera um estaleiro francês, numa época em que as relações brasileiras com a Inglaterra estavam ruins, e agora era a vez da França colocar um obstáculo ao fortalecimento da Armada, ao embargar a saída do novo encouraçado brasileiro. Durante os três meses seguintes, enquanto uma guerra de verdade ocorria na América do Sul e a divisão da Esquadra Imperial, sob o comando de Barroso, se postava num bloqueio ao Paraguai no rio Paraná, uma batalha diplomática foi travada na Europa para retirar o embargo à vinda da nova corveta encouraçada ao Brasil. Batalha que não envolvia apenas o navio, mas outros encouraçados em construção no Velho Continente para atuar em águas sul-americanas, e que não eram encomendas brasileiras.
A continuidade desse combate de cartas e ofícios sobre as mesas dos diplomatas, enquanto estaleiros corriam contra o tempo e os meios terrestres e navais corriam contra seus adversários, é assunto para a próxima parte desta série. Ainda que os resultados dessa batalha diplomática (para a qual os resultados das batalhas reais também influenciaram) fiquem em suspenso até o próximo texto – ao menos para os leitores que ainda não conheçam os detalhes históricos – já podemos refletir sobre a narrativa acima e concluir com a segunda lição trazida pelos acontecimentos de 150 anos atrás.
A segunda lição de Riachuelo
É interessante perceber como um assunto de política externa com a Inglaterra, a Questão Christie, levou a uma repercussão negativa na política interna, que por sua vez trouxe consequências interessantes para refletirmos. Por um lado, essa repercussão negativa permitiu que parte da indignação popular fosse direcionada à captação de fundos que possibilitaram a construção de uma belonave, num fornecedor não habitual (França), para se viabilizar um meio de eventual emprego na região do Prata. Pode-se conjecturar, evidentemente, que a população estava bem menos interessada em navios para intervenções nos países vizinhos do que para a proteção do Rio de Janeiro a bloqueios, respondendo (ainda que em proporções modestas) aos mandos e desmandos que a Inglaterra demonstrava poder fazer com sua poderosa marinha, como efetivamente fez para exigir a indenização na Questão Christie. Por outro lado, a imagem negativa do Gabinete Liberal frente à população ajudou na decisão deste em intervir no Prata (invadindo o Uruguai), visando passar uma imagem de força à opinião pública interna.
A intervenção brasileira levou à decisão do Paraguai, que tinha seus próprios planos de se expandir na direção do Uruguai e conquistar o domínio da Bacia do Prata, estratégica para todos os países da região, de ir à guerra, para a qual já vinha se preparando (há vários anos quanto à ampliação e equipamento de seu Exército, e bem mais recentemente quanto à Marinha). E esse contexto de guerra na América do Sul levou a França, alegando motivos de neutralidade frente aos dois conflitos em que o Brasil se envolvera (Uruguai e Paraguai), a embargar a saída do primeiro encouraçado brasileiro, construído por um estaleiro francês. Conflitos armados, e os conflitos de interesses que geram em grandes potências (econômicos, políticos, e muitas vezes tendo como pano de fundo a relação dessa potência com outra que lhe é rival), levam frequentemente a embargos no fornecimento de material bélico. Foi o caso do encouraçado Brasil, e vem daí a segunda lição de Riachuelo, que se aprende com os fatos ocorridos poucos meses antes daquele combate naval: Quando o inimigo está à vista, o embargo ataca além do horizonte.
Hoje mesmo, há exemplo de uma intervenção de um país sobre outro levando a embargos de navios. E a própria França, que há 150 anos já era alternativa a problemas que se poderia ter com um grande produtor de armas (a Inglaterra, maior potência do século XIX) e que hoje também é vista por esse prisma (como alternativa aos Estados Unidos), protagoniza esse embargo atual: é o caso dos dois navios anfíbios classe “Mistral” encomendados aos franceses pela Rússia, cuja entrega foi suspensa após os russos intervirem no conflito separatista da Ucrânia. Evidentemente, 15 décadas se passaram entre um embargo e outro, e muitos outros embargos envolvendo diversas outras potências e fornecedores de armas ocorreram nesse meio-tempo. E, provavelmente, ocorrerão no futuro ao redor do mundo.
O fato dessa situação se repetir em contextos e épocas bem diferentes, envolvendo navios encomendados à França, é uma coincidência que serve para realçar como problemas do passado podem ser reprisados no futuro, seja com este ou aquele país fornecedor, tradicional ou alternativo, de novas ou antigas relações estabelecidas, com histórico ou não de embargos. A própria Marinha do Brasil viveu uma situação similar junto a outro fornecedor pretendido, os Estados Unidos, em meados da década de 1930 (praticamente setenta anos após Riachuelo): na ocasião, tudo estava acordado para o arrendamento de seis contratorpedeiros usados da Marinha dos EUA (para permitir a baixa dos remanescentes da nossa “Esquadra de 1910” enquanto não se construíam contratorpedeiros novos) e ruidosos protestos da Argentina, ainda que sua Armada fosse à época muito mais poderosa que a brasileira, levaram o acordo a ser desfeito. A situação acabou, felizmente, sendo aproveitada por brasileiros e americanos, interessados em ampliar suas relações às vésperas da Segunda Guerra Mundial, para aprofundar o apoio destes últimos à construção de contratorpedeiros no Brasil, em especial na virada das décadas de 1930-40.
Este exemplo da década de 1930 mostra que, quando o embargo ataca além do horizonte, o que importa é ter capacidade local para encontrar alternativas e manter abertas as possibilidades de negociar, internacionalmente, para contornar a situação. Isso desde que, obviamente, se tenha como foco o objetivo maior, que é o reequipamento e modernização dos meios navais (embora a lição se preste às outras forças). O exemplo também mostra que embargos podem ocorrer a qualquer momento, com qualquer fornecedor, fazendo seu ataque desde além do horizonte – e é preciso não esquecer as lições do passado para se manter pronto a enfrentar esse tipo de risco.
O que importa, para a continuidade da nossa reflexão, é voltar aos acontecimentos de 150 anos atrás e ver como a situação do embargo à saída do primeiro encouraçado brasileiro foi enfrentada, além de abordar outros assuntos interligados a essas negociações que ocorriam em meio aos primeiros combates da Guerra do Paraguai. Este é um tema para a próxima parte desta série comemorativa do sesquicentenário da Batalha Naval do Riachuelo.
Nota – Esta série de textos não segue padrões acadêmicos, portanto optamos por não inserir notas de rodapé ou entremear a narrativa com citações e referências à bibliografia e documentação consultadas e analisadas. Estas serão listadas na última parte dessa série.
VEJA TAMBÉM:
Parabéns Nunão pela excelente matéria.
Abraços
Obrigado, Luiz Monteiro! Tem mais a caminho.
Abraço
Prezado NUNÃO, só existe uma palavra para dizer dobre o post; FANTÁSTICA. Um grande abraço do MENDES.
Estamos tão ou mais dependentes de fornecedores externos quanto há 150 anos atrás. Não aprendemos com nossos erros nem observando os erros alheios.
Como às vésperas das duas grandes guerras, frente ao aumento de tensões internacionais, estamos com as calças na mão.
Obrigado, Mendes. Um abraço para você também.
Em breve, novos capítulos. Depois, espero também continuar a série sobre o Parnaíba e a Flotilha de Mato Grosso, que precisei interromper após a primeira parte por falta de tempo para editar as fotos.